terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Paixão


Ficávamos no quarto até anoitecer, 
ao conseguirmos situar num mesmo poema o coração e a pele
quase podíamos erguer entre eles uma parede
e abrir depois caminho à água.

Quem pelo seu sorriso então se aventurasse
achar-se-ia de súbito em profundas minas,
a memória das suas mais longínquas galerias
extrai aquilo de que é feito o coração.

Ficávamos no quarto, onde por vezes
o mar vinha irromper. É sem dúvida em dias de maior paixão
que pelo coração se chega à pele.
Não há então entre eles nenhum desnível.
***
(Luís Miguel Nava)

Litania



O teu rosto inclinado pelo vento;
a feroz brancura dos teus dentes;
as mãos, de certo modo, irresponsáveis,
e contudo sombrias, e contudo transparentes;

o triunfo cruel das tuas pernas,
colunas em repouso se anoitece;
o peito raso, claro, feito de água;
a boca sossegada onde apetece

navegar ou cantar, ou simplesmente ser
a cor dum fruto, o peso duma flor;
as palavras mordendo a solidão,
atravessadas de alegria e de terror,

são a grande razão, a única razão.
***
(Eugénio de Andrade)