quarta-feira, 4 de junho de 2014

Há noites


Há noites que são feitas dos meus braços
E um silêncio comum às violetas.
E há sete luas que são sete traços
De sete noites que nunca foram feitas.
Há noites que levamos à cintura
Como um cinto de grandes borboletas.
E um risco a sangue na nossa carne escura
Duma espada à bainha dum cometa.
Há noites que nos deixam para trás
Enrolados no nosso desencanto
E cisnes brancos que só são iguais
À mais longínqua onda do seu canto.
Há noites que nos levam para onde
O fantasma de nós fica mais perto;
E é sempre a nossa voz que nos responde
E só o nosso nome estava certo.
Há noites que são lírios e são feras
E a nossa exatidão de rosa vil
Reconcilia no frio das esferas
Os astros que se olham de perfil.
***
(Natália Correia)

Talvez não saibas


Talvez não saibas
Mas dormes nos meus dedos
De onde fazem ninhos as andorinhas
E crescem frutos ruivos e há segredos
Das mais pequenas coisas que são minhas

Talvez tu não conheças, mas existe
Um bosque de folhagem permanente
Aonde não te encontro e fico triste
Mas só de te buscar fico contente

Ao meu amor quem sabe se tu sabes
Sequer, se em ti existe, ou só demora
Ou são como as palavras essas aves
Que cantam o teu nome e a toda a hora

Talvez não saibas, mas digo que te amo
A construir o mar em nossa casa
Que é por ti que pergunto e por ti chamo
Se a noite estende em mim a sua asa

Talvez não compreendas, mas o vento
Anda a espalhar em ti os meus recados
E que há por do sol no pensamento
Quando os dias são azuis e perfumados

Oh meu amor quem sabe se tu sabes
Sequer, se em ti existe, ou só demora
Ou são como as palavras essas aves
Que cantam o teu nome e a toda a hora
***
(Joaquim Pessoa)

Poema do eterno retorno



Há o teu rosto dentro do teu rosto: único e múltiplo.
As tuas mãos de outrora nas tuas mãos de agora
Há o primeiro amor que é sempre o último
antes do tempo ou só depois da hora.

E vinhas de tão longe. E era tão fundo.
Eu conheço-te. E era por mim. E era por ti. E era por dois.
E havia na tua voz o princípio do mundo.
E era antes da Terra. E era depois.
***
(Manuel Alegre)

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Sexo oral


Primeiro a tua língua molha o meu
coração, num vagar de fera. Estendo
aurículas e ventrículos sobre a mesa, entre
os copos que desaparecem. Não há mais
ninguém no bar cheio de gente. Abres-me agora os
pulmões, um para cada lado, e sopras. Respiras-
-me. O laser das tuas palavras rasga-me o lobo
frontal do cérebro. A tua boca abre-se e fecha-se,
fecha-se e abre-se, avançando
por dentro da minha cabeça. As minhas cidades
ruem como rios, correndo para o fundo dos teus olhos.
O tempo estilhaça-se no fogo
preso das nossas retinas. O empregado do bar
retira da mesa o nosso passado e arruma-o na vitrina,
ao lado dos exércitos de chumbo.
Entramos um no outro,
abrindo e fechando as pernas
das palavras, estremecendo no suor dos
olhos abraçados, fazendo sexo
com a lava incandescente dessa revolução
imprevista a que damos o nome de amor.
***
(Inês Pedrosa)

Medo


Ouve o grande silêncio destas horas!
Há quanto tempo não dizemos nada…
Tens no sorriso uma expressão magoada,
tens lágrimas nos olhos, e não choras!

As tuas mãos nas minhas mãos demoras
numa eloquência muda, apaixonada…
Se o meu sombrio olhar de amargurada
procura o teu, sucumbes e descoras…

O momento mais triste de uma vida
é o momento fatal da despedida,
- Vê como o medo cresce em mim, latente…

Que assustadora, enorme sombra escura!
Eis afinal, amor, toda a tortura:
- vejo-te ainda, e já te sinto ausente!
***
(Virgínia Vitorino)

Tento empurrar-te de cima do poema



Tento empurrar-te de cima do poema
para não o estragar na emoção de ti:
olhos semi-cerrados, em precauções de tempo
a sonhá-lo de longe, todo livre sem ti.

Dele ausento os teus olhos, sorriso, boca, olhar:
tudo coisas de ti, mas coisas de partir…
E o meu alarme nasce: e se morreste aí,
no meio de chão sem texto que é ausente de ti?

E se já não respiras? Se eu não te vejo mais
por te querer empurrar, lírica de emoção?
E o meu pânico cresce: se tu não estiveres lá?
E se tu não estiveres onde o poema está?

Faço eróticamente respiração contigo:
primeiro um advérbio, depois um adjectivo,
depois um verso todo em emoção e juras.
E termino contigo em cima do poema,
presente indicativo, artigos às escuras.
***
(Ana Luísa Amaral)

Sem palavras



Quando eu tinha o teu amor
Não me sentia à vontade
Para dizer quanto te queria.
Mas não podia supor
Que, por guardar a verdade
Tu julgasses que eu mentia.

Podia continuar mudo
Que as palavras não são tudo
Mais importa o que é vivido,
Mas digo-te cá do fundo
Que ainda dava a volta ao mundo
Na roda do teu vestido.

Quando estiveste ao meu lado,
Faltou-te da minha boca
Uma jura de paixão
E, ao veres-me assim tão calado
Cismaste até ficar louca,
Numa história de traição.

Agora, que já te entendo,
Confesso que me arrependo
Do meu coração tão fraco
E digo sem hesitar:
Gostava mais de cantar
Com as bandas do teu casaco.
***
(Maria do Rosário Pedreira)