sexta-feira, 12 de outubro de 2018

A solidão da noite


A solidão da noite
toca violoncelos no meu peito.
O corpo recebe o rumor
de uma concha do mar.

Beijo as grinaldas
que derramas no meu rosto.
As palavras misturam-se
em lamentos desfolhados.

Consagro à madrugada
as cinzas dos pecados que pressinto.
Não há dúvidas que o amor
é uma sensação contraditória.

***
(Cláudio Cordeiro)

Sei ao chegar a casa


Sei
ao chegar a casa
qual de nós
voltou primeiro do emprego

Tu
se o ar é fresco

Eu
se deixo de respirar
subitamente

***
(António Reis)

Carícia


A pele é o mar:

aqui desaguam

os rios da vida.

A pele é o cântaro:

aqui se guardam

todas as águas,

chuvas de alegria

ou lágrimas.

A pele é o mapa:

aqui se gravam

todos os ventos.

Escreva na pele do outro,

com a ponta dos dedos,

o alfabeto mais antigo,

sussurro,

estrela,

carícia.

***
(Roseana Murray)

Já ninguém morre de amor


Já ninguém morre de amor, eu uma vez
andei lá perto, estive mesmo quase,
era um tempo de humores bem sacudidos,
depressões sincopadas, bem graves, minha querida,
mas afinal não morri, como se vê, ah, não,
passava o tempo a ouvir deus e música de jazz,
emagreci bastante, mas safei-me à justa, oh yes,
ah, sim, pela noite dentro, minha querida.
a gente sopra e não atina, há um aperto
no coração, uma tensão no clarinete e
tão desgraçado o que senti, mas realmente,
mas realmente eu nunca tive jeito, ah, não,
eu nunca tive queda para kamikaze,
é tudo uma questão de swing, de swing, minha querida,
saber sair a tempo, saber sair, é claro, mas saber,
e eu não me arrependi, minha querida, ah, não, ah, sim.
há ritmos na rua que vêm de casa em casa,
ao acender das luzes, uma aqui, outra ali.
mas pode ser que o vendaval um qualquer dia venha
no lusco-fusco da canção parar à minha casa,
o que eu nunca pedi, ah, não, manda calar a gente,
minha querida, toda a gente do bairro,
e então murmurarei, a ver fugir a escala
do clarinete: — morrer ou não morrer, darling, ah, sim

***

(Vasco Graça Moura)

Ter-te




Ter-te longe
e desejar-te aqui,
onde o frémito do corpo acontece.
Aqui, lugar onde
o vício dos olhos e das mãos me inquieta.
*
Ah, ter-te perto
suster a respiração,
cerrar os olhos
e deixar que tudo comece
e acabe em ti.
*
Ensaiar o voo da águia
e suavemente planar sobre a superfície
sinuosa do teu corpo perfeito
no asa-delta da paixão.
*
Ter-te perto,
sentir o perfume da tua presença
pelo calor do corpo,
pela claridade dos olhos
e pensar
que o sol e a alegria
de cada manhã,
nascem exactamente em ti.
***
(Miguel Afonso Andersen)