segunda-feira, 13 de maio de 2019

Quis


Quis voltar
e fiquei.
Quis perder
e venci.
Quis sonhar
e acordei.
Quis ser criança
e cresci.
Quis chorar
e sorri.
Quis começar
e acabei,
por não
saber o que queria de mim.

***
(José Miguel Costa)

Mendigo


Para que me serve ter memória,
Quando vivo esta triste história.
Nada é como contavam os antigos,
Pois o amor faz-nos sentir mendigos,
Esquecidos numa qualquer esquina de rua
Que bem podia ser a tua.
Protegendo-me do frio e da dor,
Vivo debaixo deste velho cobertor,
Implorando a Deus outra oportunidade,
Outra vida, um resquício de sinceridade.
Mas continuo perdido na recordação,
Suspenso e indigno de consideração,
Pelos que por cima de mim estão a passar
Com o único objectivo de me pisar.
Sou somente o momento de um solstício,
Um zé-ninguém, um mero desperdício,
Uma mentira cheia de verdade,
Branca escuridão na mais negra claridade.
Não sei como irá ser a continuação
Desta solene e infeliz oração,
Que é viver uma vida sem alguma paixão,
Num mundo sem a mínima compaixão.

***
(Dias Miguel)

Quando as crianças brincam


Quando as crianças brincam
E eu as oiço brincar,
Qualquer coisa em minha alma
Começa a se alegrar.
E toda aquela infância
Que não tive me vem,
Numa onda de alegria
Que não foi de ninguém.
Se quem fui é enigma,
E quem serei visão,
Quem sou ao menos sinta
Isto no coração.

***
(Fernando Pessoa)

Aqui


aqui
nesta pedra
alguém sentou
olhando o mar
o mar não parou
pra ser olhado
foi mar
pra tudo quanto é lado

***
(Paulo Leminsky)

domingo, 28 de abril de 2019

Quantas vezes


Quantas vezes te esperei neste lugar
quantas vezes pensei que não chegavas
quantas vezes senti a rebentar
o coração se ao longe te avistava.
*
Quantas vezes depois de teres chegado
nos colámos no beijo que tardava
quantas vezes trementes e calados
nos entregámos logo sem palavras.
*
Quantas vezes te quis e te inventei
quantas vezes morri e já não sei.

***
(Torquato da Luz)

Os anos de ti para mim


O teu cabelo volta a ondular-se quando choro.
Com o azul dos teus olhos
pões a mesa do nosso amor:
uma cama entre o verão e o outono.
Bebemos o que alguém preparou,
que não era eu, nem tu,
nem um terceiro:
sorvemos um último vazio.
*
Miramo-nos nos espelhos do mar profundo
e passamos mais depressa um ao outro os alimentos:
a noite é a noite, começa com a manhã,
é ela que me deita a teu lado.

***
(Paul Celan)

Se eu pudesse dar-te aquilo que não tenho


Se eu pudesse dar-te aquilo que não tenho
e que fora de mim jamais se encontra
Se eu pudesse dar-te aquilo com que sonhas
e o que só por mim poderá ter sonhado
*
Se eu pudesse dar-te o sopro que me foge
e que fora de mim jamais se encontra
Se eu pudesse dar-te aquilo que descubro
e descobrir-te o que de mim se esconde
*
Então serias aquele que existe
e o que só por mim poderá ter sonhado.

***
(Ana Hatherly)

Poema ao jantar



Olá, que estás a fazer?
O jantar.
O que é que vais fazer?
Um poema…
Só um poema, ou alguma coisa para acompanhar?
Sim, vou juntar-lhe o tempo…
e meia dúzia de pensamentos, dos mais pequenos…
Posso ajudar-te?
Claro, fazemos para os dois.
Passa-me aquelas palavras…
Quais?
As que estão por aí sem norte, desarmadas e frias.
E servem?
Vais ver, tenho um truque que as torna de ler e chorar por mais.
Não estão duras?
Com um pouco de paciência e cozedura lenta, amolecem.
Espera, preciso de bater primeiro o coração.
Queres que bata?
Bate comigo, os dois somos o número ideal.
Põe mais beijos…
mais, não deixes cair muitos de uma vez.
Tem já uma bela cor!
estou a ficar cheio de fome.
então pega no meu corpo e aquece-o,
Não deixes queimar, mexe sempre os olhos,
repara na cidade e nas sombras que diminuem.
cuidado não vá engrossar esse modo de ser.
Já podemos juntar tudo?
Falta-me a ternura, não sei se restou alguma,
tive um poema enorme a semana passada.
espera, já cresceram mais umas folhas.
Apanha com cuidado, para a deixar crescer outra vez.
Agora basta que me tenhas e me queiras,
Junta o ramo de cheiros que a tua memória colheu
Cheira, como é boa essa pitada de loucura que juntaste.
Vá, senta-te, Vou servir.
Pão?
Não, prefiro assim.
Traz o vinho
Tinto?
Claro, e tu senta-te, não quero começar sem ti.
***

(Jorge Bicho)

Indiferença







Hoje, voltas-me o rosto, se ao teu lado
passo.
E eu, baixo os meus olhos se te avisto.
E assim fazemos, como se com isto,
pudéssemos varrer nosso passado.
*
Passo esquecido de te olhar, coitado!
Vais, coitada, esquecida de que existo.
Como se nunca me tivesses visto,
como se eu sempre não te houvesse amado
*
Mas, se às vezes, sem querer nos entrevemos,
se quando passo, teu olhar me alcança
se meus olhos te alcançam quando vais.
*
Ah! Só Deus sabe! Só nós dois sabemos.
Volta-nos sempre a pálida lembrança.
Daqueles tempos que não voltam mais!
***
(Guilherme de Almeida)

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

A solidão da noite


A solidão da noite
toca violoncelos no meu peito.
O corpo recebe o rumor
de uma concha do mar.

Beijo as grinaldas
que derramas no meu rosto.
As palavras misturam-se
em lamentos desfolhados.

Consagro à madrugada
as cinzas dos pecados que pressinto.
Não há dúvidas que o amor
é uma sensação contraditória.

***
(Cláudio Cordeiro)

Sei ao chegar a casa


Sei
ao chegar a casa
qual de nós
voltou primeiro do emprego

Tu
se o ar é fresco

Eu
se deixo de respirar
subitamente

***
(António Reis)

Carícia


A pele é o mar:

aqui desaguam

os rios da vida.

A pele é o cântaro:

aqui se guardam

todas as águas,

chuvas de alegria

ou lágrimas.

A pele é o mapa:

aqui se gravam

todos os ventos.

Escreva na pele do outro,

com a ponta dos dedos,

o alfabeto mais antigo,

sussurro,

estrela,

carícia.

***
(Roseana Murray)

Já ninguém morre de amor


Já ninguém morre de amor, eu uma vez
andei lá perto, estive mesmo quase,
era um tempo de humores bem sacudidos,
depressões sincopadas, bem graves, minha querida,
mas afinal não morri, como se vê, ah, não,
passava o tempo a ouvir deus e música de jazz,
emagreci bastante, mas safei-me à justa, oh yes,
ah, sim, pela noite dentro, minha querida.
a gente sopra e não atina, há um aperto
no coração, uma tensão no clarinete e
tão desgraçado o que senti, mas realmente,
mas realmente eu nunca tive jeito, ah, não,
eu nunca tive queda para kamikaze,
é tudo uma questão de swing, de swing, minha querida,
saber sair a tempo, saber sair, é claro, mas saber,
e eu não me arrependi, minha querida, ah, não, ah, sim.
há ritmos na rua que vêm de casa em casa,
ao acender das luzes, uma aqui, outra ali.
mas pode ser que o vendaval um qualquer dia venha
no lusco-fusco da canção parar à minha casa,
o que eu nunca pedi, ah, não, manda calar a gente,
minha querida, toda a gente do bairro,
e então murmurarei, a ver fugir a escala
do clarinete: — morrer ou não morrer, darling, ah, sim

***

(Vasco Graça Moura)

Ter-te




Ter-te longe
e desejar-te aqui,
onde o frémito do corpo acontece.
Aqui, lugar onde
o vício dos olhos e das mãos me inquieta.
*
Ah, ter-te perto
suster a respiração,
cerrar os olhos
e deixar que tudo comece
e acabe em ti.
*
Ensaiar o voo da águia
e suavemente planar sobre a superfície
sinuosa do teu corpo perfeito
no asa-delta da paixão.
*
Ter-te perto,
sentir o perfume da tua presença
pelo calor do corpo,
pela claridade dos olhos
e pensar
que o sol e a alegria
de cada manhã,
nascem exactamente em ti.
***
(Miguel Afonso Andersen)

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Dilúvio de chamas



Desejo-te única como
a palavra:
fogo que um verso procura
deter:
nas mãos a água ilude
a boca e a sede pede mais:
nos lábios a pérola cai
do orvalho todas as manhãs: a pétala
o corpo adorna o poema
veemente:
dilúvio de chamas
prestes a barca
urgente do azul desmedido
***
(David Rodrigues)

Certeza


Se te falo é para melhor te ouvir
Se te ouço estou certo de ter compreendido
*
Se sorris é para melhor me invadir
Alcanço o mundo inteiro se me sorris
*
Se me uno a ti é para me continuar
Se vivermos tudo será como gostamos
*
Se eu te deixo recordar-nos-emos
E ao deixar-nos voltaremos a reencontrar-nos.
***

(Paul Éluard)

Amor violeta

O amor me fere é debaixo do braço,
de um vão entre as costelas.
Atinge meu coração é por esta via inclinada.
Eu ponho o amor no pilão com cinza
e grão de roxo e soco. Macero ele,
faço dele cata plasma
e ponho sobre a ferida.
***
(Adélia Prado)

Amar por amar não posso

Amar por amar não posso.
Amar por amar não sei.
Amar por amar não posso.
Amo aquilo só que é nosso
Amando à margem da lei.
*
Amar por amar não posso
Amar por amar não sei.
*
Ninguém me faça perguntas!
Trago o coração já frio…
Ninguém me faça perguntas,
Que as minhas lágrimas juntas
Davam para encher um rio!
*
As minhas lágrimas juntas
Davam para encher um rio!

(Pedro Homem de Mello)

Aprendamos, amor, com estes montes

Aprendamos, amor, com estes montes
Que, tão longe do mar, sabem o jeito
De banhar no azul dos horizontes.
*
Façamos o que é certo e de direito:
Dos desejos ocultos outras fontes
E desçamos ao mar do nosso leito.

(José Saramago)

A palavra que desnudo

 
Entre a asa e o voo
nos trocámos
como a doçura e o fruto
nos unimos
num mesmo corpo de cinza
nos consumimos
e por isso
quando te recordo
percorro a imperceptível
fronteira do meu corpo
e sangro
nos teus flancos doloridos
Tu és o encoberto lado
da palavra que desnudo
***
(Mia Couto)

A mulher feliz

 
Está de pé sobre as brancas dunas. As ondas conduziram-na
e os ventos empurraram-na, está ali, na perfeição redonda
da oferenda. E como que adormece no esplendor sereno.
Diz luz porque diz agora e és tu e sou eu, num círculo
Só. Está embriagada de ar como uma forte lâmpada
*
É uma área de equilíbrio, de movimentos flexíveis,
um repouso incendiado, a vitória de uma pedra.
Abrem-se fundas águas e um novo fogo aparece.
Que lentas são as folhas largas e as areias!
Que denso é este corpo, esta lua de argila!
*
Nua como uma pedra ardente, mais do que uma promessa
fulgurante, a amorosa presença de uma mulher feliz.
Nela dormem os pássaros, dormem os nomes puros.
Agora crepita a noite, as línguas que circulam.
Crescem, crescem os músculos da mais intima distância.
***
(António Ramos Rosa)

domingo, 14 de agosto de 2016

Anadiómene


Das marinhas espumas engendrada,
essa que vai nas águas cristalinas
sobre a concha de nácar, embalada
pelo coro das horas vespertinas,
*
da onda que a gerou, ao sol doirada,
no seio ostenta as curvas peregrinas;
deu-lhe a sereia a voz enamorada,
veste-a de encanto a graça das Ondinas...
*
Ao clarão que em seus olhos amanhece,
a Natureza alvoroçada acorda
e de prazer e júbilo estremece,
*
porque do Amor a misteriosa essência
dos seus peitos, já túmidos, transborda
como o supremo encanto da existência.








***
(António Feijó)

Os silêncios da fala


São tantos
os silêncios da fala
De sede
De saliva
De suor

Silêncios de sílex
no corpo do silêncio
Silêncios de vento
de mar
e de torpor
De amor

Depois, há as jarras
com rosas de silêncio
Os gemidos
nas camas
As ancas
O sabor

O silêncio que posto
em cima do silêncio
usurpa do silêncio o seu magro labor.

***
(Maria Teresa Horta)

sábado, 13 de agosto de 2016

Memória sobre os teus olhos


Magníficos.

como os jactos que aguardam no aeroporto o iminente sinal da partida,

seus grandes olhos imensos escorvam, impacientes,

o subsolo da imagem pressentida.

Perfurantes como as brocas dos mineiros,

pontas de aço-vanádio

que o cubro alcançam sem perder o gume,

um fogo o olhar o queima, um mar invade-o,

um lume feito de água, água de lume.

Súbito, seus grandes olhos imensos descolam e levantam voa.

Ei-los que sobem.

Seu movimento é como se apenas as coisas deles se afastassem,

é como se move o tempo, sem agravo nem estrago,

como boiam as folhas na dormência do lago,

como bate o coração do homem enterrado no chão.

Na estática subida a que se entregam

são o próprio silêncio em que navegam,

são a curva do espaço,

a quarta dimensão.

Cá em baixo,

onde as superfícies se avaliam

multiplicando pi por érre dois,

um formigueiro de bois

desenha na planície coloridos talhões.

Cumprem-se as sementeiras.

As cores são as bandeiras;

os regos, os limites das nações.

Um rabiar de células,

Cultura de bactérias num capacete de aço,

ziguezagueiam, obstinadas como libélulas,

num charco de sargaço.

Entretanto,

seus grandes olhos imensos olham, e olhando,

no desígnio frontal que não hesita nem disfarça,

com linhas de olhos vão bordando a talagarça.

Sento-me à secretária,

preparo-a, limpo-a, esfrego-a

na aflita busca do mais puro espaço,

e com o esquadro e a régua,

o lápis e o compasso,

construo os olhos d'Ela.

Deliberada e escrupulosamente

ergue-se a construção de arquitectura mansa,

quase cinicamente,

como quem premedita uma vingança.

(Aliás

o engano, a ilusão,

a mentira, a falsidade,

o perjúrio, a invenção,

tudo, em Amor, é verdade.)

Eis os mais lindos olhos deste mundo.

O Amor os fez.

Proas de galeões de velas pandas,

meninas a correr que chegam às varandas

olhando o mundo pela primeira vez.

Dou-lhes uns toques nas íris, um tempero

na plácida inocência,

um miligrama de cianeto, morte sem desespero,

acicate da humana permanência.

Sobre o fundo sombrio um tom de folha seca

de plátano, uns veios

de clorofila,

mancha irisada

em redor da pupila,

óleo vertido no asfalto da estrada.

Encosto o rosto às mãos, e embevecido

contemplo a construção de linhas,

e finjo-me esquecido

como se não soubesse que são minhas.

Como se não soubesse

comovo-me e entrego-me no sorriso total,

Construo o meu real

conforme me apetece.

***
(António Gedeão)

segunda-feira, 30 de março de 2015

Há pequenas aves que têm raízes nas palavras


Há pequenas aves que têm raízes nas palavras,
essas palavras que não ficam arrumadas com decência
na literatura,
palavras de amantes sem amor, gente que sofre
e a quem falta o ar quando faltam as palavras.
Quando digo o teu nome há uma ave que levanta voo
como se tivesse nascido o dia e uma brisa
encarcerada nas amêndoas se soltasse para a impelir
para o mais frio, para o mais alto, para o mais azul.
Quando volto para casa o teu nome vai comigo
e ao mesmo tempo espera-me já
numa casa construída com dois nomes,
como se tivesse duas frentes,
uma para a montanha e outra para o mar.
Por vezes dou-te o meu nome e fico com o teu,
espreito então pelas janelas de onde
se vêem coisas que nunca antes tinha visto,
coisas que adivinhava mas que não sabia,
coisas que sempre soube mas que nunca quis olhar.
Nessas alturas o meu nome é o teu olhar,
e os meus olhos são justamente a pronúncia do
teu nome que se diz com um pequeno brilho molhado,
um som pequeno como um roçagar de asas
dessas aves que constroem o ninho na folhagem da fala
e criam raízes fundas nas palavras vulgares
que os vulgares amantes engrandecem
quando falam de amor.
***


(Joaquim Pessoa)

Há dias em que em ti talvez não pense


Há dias em que em ti talvez não pense

a morte mata um pouco a memória dos vivos

é todavia claro e fotográfico o teu rosto

caído não na terra mas no fogo

e se houver dia em que não pense em ti

estarei contigo dentro do vazio
***
(Gastão Cruz)

Certeza


Se te falo é para melhor te ouvir
Se te ouço estou certo de ter compreendido

Se sorris é para melhor me invadir
Alcanço o mundo inteiro se me sorris

Se me uno a ti é para me continuar
Se vivermos tudo será como gostamos

Se eu te deixo recordar-nos-emos
E ao deixar-nos voltaremos a reencontrar-nos.
***
(Paul Éluard)

Ter-te


Ter-te longe
e desejar-te aqui,
onde o frémito do corpo acontece.
Aqui, lugar onde
o vício dos olhos e das mãos me inquieta.

Ah, ter-te perto
suster a respiração,
cerrar os olhos
e deixar que tudo comece
e acabe em ti.

Ensaiar o voo da águia
e suavemente planar sobre a superfície
sinuosa do teu corpo perfeito
no asa-delta da paixão.

Ter-te perto,
sentir o perfume da tua presença
pelo calor do corpo,
pela claridade dos olhos
e pensar
que o sol e a alegria
de cada manhã,
nascem exatamente em ti.
***

(Miguel Afonso Andersen)

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Há noites


Há noites que são feitas dos meus braços
E um silêncio comum às violetas.
E há sete luas que são sete traços
De sete noites que nunca foram feitas.
Há noites que levamos à cintura
Como um cinto de grandes borboletas.
E um risco a sangue na nossa carne escura
Duma espada à bainha dum cometa.
Há noites que nos deixam para trás
Enrolados no nosso desencanto
E cisnes brancos que só são iguais
À mais longínqua onda do seu canto.
Há noites que nos levam para onde
O fantasma de nós fica mais perto;
E é sempre a nossa voz que nos responde
E só o nosso nome estava certo.
Há noites que são lírios e são feras
E a nossa exatidão de rosa vil
Reconcilia no frio das esferas
Os astros que se olham de perfil.
***
(Natália Correia)

Talvez não saibas


Talvez não saibas
Mas dormes nos meus dedos
De onde fazem ninhos as andorinhas
E crescem frutos ruivos e há segredos
Das mais pequenas coisas que são minhas

Talvez tu não conheças, mas existe
Um bosque de folhagem permanente
Aonde não te encontro e fico triste
Mas só de te buscar fico contente

Ao meu amor quem sabe se tu sabes
Sequer, se em ti existe, ou só demora
Ou são como as palavras essas aves
Que cantam o teu nome e a toda a hora

Talvez não saibas, mas digo que te amo
A construir o mar em nossa casa
Que é por ti que pergunto e por ti chamo
Se a noite estende em mim a sua asa

Talvez não compreendas, mas o vento
Anda a espalhar em ti os meus recados
E que há por do sol no pensamento
Quando os dias são azuis e perfumados

Oh meu amor quem sabe se tu sabes
Sequer, se em ti existe, ou só demora
Ou são como as palavras essas aves
Que cantam o teu nome e a toda a hora
***
(Joaquim Pessoa)

Poema do eterno retorno



Há o teu rosto dentro do teu rosto: único e múltiplo.
As tuas mãos de outrora nas tuas mãos de agora
Há o primeiro amor que é sempre o último
antes do tempo ou só depois da hora.

E vinhas de tão longe. E era tão fundo.
Eu conheço-te. E era por mim. E era por ti. E era por dois.
E havia na tua voz o princípio do mundo.
E era antes da Terra. E era depois.
***
(Manuel Alegre)

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Sexo oral


Primeiro a tua língua molha o meu
coração, num vagar de fera. Estendo
aurículas e ventrículos sobre a mesa, entre
os copos que desaparecem. Não há mais
ninguém no bar cheio de gente. Abres-me agora os
pulmões, um para cada lado, e sopras. Respiras-
-me. O laser das tuas palavras rasga-me o lobo
frontal do cérebro. A tua boca abre-se e fecha-se,
fecha-se e abre-se, avançando
por dentro da minha cabeça. As minhas cidades
ruem como rios, correndo para o fundo dos teus olhos.
O tempo estilhaça-se no fogo
preso das nossas retinas. O empregado do bar
retira da mesa o nosso passado e arruma-o na vitrina,
ao lado dos exércitos de chumbo.
Entramos um no outro,
abrindo e fechando as pernas
das palavras, estremecendo no suor dos
olhos abraçados, fazendo sexo
com a lava incandescente dessa revolução
imprevista a que damos o nome de amor.
***
(Inês Pedrosa)

Medo


Ouve o grande silêncio destas horas!
Há quanto tempo não dizemos nada…
Tens no sorriso uma expressão magoada,
tens lágrimas nos olhos, e não choras!

As tuas mãos nas minhas mãos demoras
numa eloquência muda, apaixonada…
Se o meu sombrio olhar de amargurada
procura o teu, sucumbes e descoras…

O momento mais triste de uma vida
é o momento fatal da despedida,
- Vê como o medo cresce em mim, latente…

Que assustadora, enorme sombra escura!
Eis afinal, amor, toda a tortura:
- vejo-te ainda, e já te sinto ausente!
***
(Virgínia Vitorino)

Tento empurrar-te de cima do poema



Tento empurrar-te de cima do poema
para não o estragar na emoção de ti:
olhos semi-cerrados, em precauções de tempo
a sonhá-lo de longe, todo livre sem ti.

Dele ausento os teus olhos, sorriso, boca, olhar:
tudo coisas de ti, mas coisas de partir…
E o meu alarme nasce: e se morreste aí,
no meio de chão sem texto que é ausente de ti?

E se já não respiras? Se eu não te vejo mais
por te querer empurrar, lírica de emoção?
E o meu pânico cresce: se tu não estiveres lá?
E se tu não estiveres onde o poema está?

Faço eróticamente respiração contigo:
primeiro um advérbio, depois um adjectivo,
depois um verso todo em emoção e juras.
E termino contigo em cima do poema,
presente indicativo, artigos às escuras.
***
(Ana Luísa Amaral)

Sem palavras



Quando eu tinha o teu amor
Não me sentia à vontade
Para dizer quanto te queria.
Mas não podia supor
Que, por guardar a verdade
Tu julgasses que eu mentia.

Podia continuar mudo
Que as palavras não são tudo
Mais importa o que é vivido,
Mas digo-te cá do fundo
Que ainda dava a volta ao mundo
Na roda do teu vestido.

Quando estiveste ao meu lado,
Faltou-te da minha boca
Uma jura de paixão
E, ao veres-me assim tão calado
Cismaste até ficar louca,
Numa história de traição.

Agora, que já te entendo,
Confesso que me arrependo
Do meu coração tão fraco
E digo sem hesitar:
Gostava mais de cantar
Com as bandas do teu casaco.
***
(Maria do Rosário Pedreira)

quarta-feira, 28 de maio de 2014

De mãos abertas


Se eu pudesse,

Tocava o teu rosto em silêncio

E falava-te do mar,

Deixava tombar os meus cabelos

Sobre o teu ombro

Como uma bênção

E fechava os olhos

Consciente de ser em ti

Como um salgueiro.
***
(Ana Brilha)

Inocência


A inocência do teu corpo é um pano branco.
A carne é crua num corpo intacto de plena luz.
Nu e intenso é o teu olhar despido de fogo.
Estou sóbrio na noite em que murmuro o teu
nome puro.

Sei que a água não é o pão que como
no teu corpo virgem.
A tua inocência é o fruto delicado
que pressinto na ponta dos meus dedos.

Respiro lentamente a fome dos teus braços.
Sinto falta de beijar o sol da tua boca…
***
(Cláudio Cordeiro)

terça-feira, 27 de maio de 2014

Na luz de um outro olhar


Há dias em que a estrada é linda
E os passos não se contam
Há dias em que nos sentimos longe
Na serena luz que finda
Sem gente nem flores

Ninguém nos vê mas estamos
Somos
Ficamos
Na cor de um outro olhar
***
(Edgardo Xavier)

Amarmos


Amarmos é oferecermos um ao outro
tudo o que de diferente os dois temos,
provarmos o sabor do que acontece entre nós,
bebermos da mesma fonte de amarguras,
festejarmos o tempo, sem tempo,
as alegrias e as loucuras,
revivermos o agora e o passado,
permanecermos sós,
e reféns de um longo caminho
cruzado e estreito,
e tão partilhado…
***
(José Duarte)

Lê, são estes os nomes das coisas que deixaste




Lê , são estes os nomes das coisas que
deixaste – eu, livros, o teu perfume
espalhado pelo quarto; sonhos pela
metade e dor em dobro, beijos por
todo o corpo como cortes profundos
que nunca vão sarar; e livros, saudade,
a chave de uma casa que nunca foi a
nossa, um roupão de flanela azul que
tenho vestido enquanto faço esta lista:

livros, risos que não consigo arrumar,
e raiva – um vaso de orquídeas que
amavas tanto sem eu saber porquê e
que talvez por isso não voltei a regar; e
livros, a cama desfeita por tantos dias,

uma carta sobre a tua almofada e tanto
desgosto, tanta solidão; e numa gaveta
dois bilhetes para um filme de amor que
não viste comigo, e mais livros, e também
uma camisa desbotada com que durmo
de noite para estar mais perto de ti; e, por

todo o lado, livros, tantos livros, tantas
palavras que nunca me disseste antes da
carta que escreveste nessa manhã, e eu,

eu que ainda acredito que vais voltar, que
voltas, mesmo que seja só pelos teus livros
***
(Maria do Rosário Pedreira) 

Frutos



Quando a amada oferece o seu corpo, 
ela sabe que dos frutos 
apenas se colhe o sabor. 
É então que os dedos 
separam as películas, 
que a lâmina desce
e a água e o fogo 
se misturam. 
E é então que a vida 
e a morte convivem 
sob o mesmo tecto.
***
(Albano Martins)

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Há na intimidade um lugar sagrado



Há na intimidade um limiar sagrado,
encantamento e paixão não o podem transpor -
mesmo que no silêncio assustador
se fundam os lábios e o coração se rasgue de amor.

Onde a amizade nada pode
nem os anos da felicidade mais sublime e ardente,
onde a alma é livre, e se torna estranha
à vagarosa volúpia e seu langor lento.

Quem corre para o limiar é louco,
e quem o alcançar é ferido de aflição.

Agora compreendes porque já não bate,
sob a tua mão em concha, o meu coração.
***
(Anna Akhmátova) 

(Porque hoje é o teu dia e porque, apesar da separação e da distância, tu estás sempre presente em pensamento. 
Parabéns e toda a felicidade do mundo. Que tenhas um dia inesquecível, recheado de emoções fortes e boas. Um beijo, A.)

Para não deixar de amar-te nunca


Saberás que não te amo e que te amo
pois que de dois modos é a vida,
a palavra é uma asa do silêncio, 
o fogo tem a sua metade de frio.
Amo-te para começar a amar-te,
para recomeçar o infinito
e para não deixar de amar-te nunca:
por isso não te amo ainda.
Amo-te e não te amo como se tivesse
nas minhas mãos a chave da felicidade
e um incerto destino infeliz.
O meu amor tem duas vidas para amar-te.
Por isso te amo quando não te amo
e por isso te amo quando te amo.
***
(Pablo Neruda)

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Poemas Escolhidos


As palavras pesam.
Um texto nunca diz a dor das pequenas coisas,
Do quotidiano entrincheirado entre compromissos,
Das tramas afectivas, do exílio anunciado
No andar inquieto das mulheres.

De rosto em rosto, a caligrafia do amor
implorou a memória das palavras encantadas
e, como se houvesse uma linguagem
de atravessar o tempo, acenderam,
sobre os dias, constelações sonoras.
Mas eu, que não adiro aos calendários
nem acredito em vogais prometidas,
eu parti, de punhos febris,
enlaçando nos braços
um futuro marginal, a qualquer lógica.
A posse da noite, onde me quero lua em todas as fases,
leva-me a glosar os medos num novelo de rimas imperfeitas.
A cidade tem pombas que me perseguem sem eu dar por isso.
Tenho um aqueduto modelado nos olhos
e um dilúvio vermelho no desenho do peito.
***
(Graça Pires)

O profundo azul da noite



O azul que me veste as mãos por dentro
é ainda o profundo azul da noite
em que bebi no sal da tua pele
o branco aceso do meu corpo
e o silêncio da aragem miúda
que antes da chegada do vento
te havia de romper os olhos
em lágrimas de espanto e sede
pela sombra dos meus dedos.
***
(Ana Oliveira)

Éramos eu e tu


Éramos eu e tu
Dentro de mim
Centenas de fantasmas compunham o espectáculo
E o medo
Todo o medo do mundo em câmara lenta nos meus olhos.

Mãos agarradas
Pulsos acariciados
Um afago nas faces.

Éramos tu e eu
Dentro de nós
Suores inundavam os olhos
Alagavam lençóis
Corriam para o mar.
As unhas revoltam-se e ferem a carne que as abriga.

Éramos tu e eu
Dentro de nós.

As contracções cada vez mais rápidas
O descontrolo
A emoção
A ciência atenta
O oxigénio
A mão amiga
De repente a grande urgência
A hora
A violência
Éramos nós libertando-nos de nós.
É nossa a dor.

São nossos o sangue e as águas
O grito é nosso
A vida é tua
O filho é meu.

Os lábios esquecem o riso
Os olhos a luz
O corpo a dor.

A exaustão total
O correr do pano
O fim do parto.
***
(Dina Salustio)

Tempo



O tempo é uma substância volátil, arredia e mole
Calma e inesperada, que se esvazia e enche como um balão ou fole
Uma substância vaga, desequilibrada e implexa, de alma inconstante
Que se dissipa e brota a qualquer instante

Assim, de mim se afasta se o procuro
Toca-me e arrebata-me, se dele me canso e me despeço
A mim se apega e em mim se enlaça quando lhe fujo
Enrola-me e envolve-me de amor quando não peço

O tempo é tudo o que urge quando sobeja
Tudo o que de mim se aparta, se acaso a vontade almeja

Quando me esfalfo e o quero, de mim se afasta
Quando dele prescindo, em mim se enrola, julga, condena e caça

O tempo é um amante frívolo e indeciso, que prende e embaraça
Uma alma doce, que descubro amarga se me desalenta
Um compasso brusco, se me apraz com pressa e me encontro lenta
È sol quando eu sou nuvem, transparente se sou lodo ou água turva

O tempo é uma maleita, uma cisma sem amparo ou cura
Uma paixão platónica, sofrida e insegura que perdura
Um amor desgarrado, uma intensa vontade de procura

Com ele me estendo, sonho e medito
Baralho-me e contento-me num eterno delito
***
(Manuela Carneiro)

Um barco nas águas ao de leve sonoras


Um barco parado nas águas ao de leve sonoras.
Enquanto a noite desce como um lençol suavemente escuro
apagando o rio,
que era azul e agora já é um espelho prateado virado para fora de si.
alongado pela escuridão que se recolhe nos olhos, de quem olha.

Há em tudo uma paz impossível, e eu vejo o teu rosto e tu pareces não ser.

Olho-te de novo, e tu olhas-me assim:
tão distante e ausente que me deixas mais nu.

Eu sei:
sou aquele que te ama do fundo deste rio que agora nos faz juntos.
e estamos sempre sozinhos.
A partir de agora, entre nós
não haverá mais segredos.
***
(José Alberto Mar)

terça-feira, 19 de março de 2013

Na hora de pôr a mesa




na hora de pôr a mesa, éramos cinco:
o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs
e eu. depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois, a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais 
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva. cada um
deles é um lugar vazio nesta mesa onde 
como sozinho. mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo, seremos
sempre cinco.
***
(José Luís Peixoto)

(Poema dedicado ao meu querido pai, ao qual me permito fazer uma ligeira alteração que o autor com certeza não leva a mal.
Lá em casa, na hora de pôr a mesa éramos seis. E enquanto um de nós estiver vivo, seremos sempre seis... mais os genros, a nora e os netos que reforçam o seis.  Esse número mágico que nos identifica mesmo após a sua partida.)

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Soneto das memórias vividas


Lembro-me como se fosse hoje
Do dia em que te conheci
Palmas suadas e aperto no peito
Sabia que eras tu para mim

E hoje, passados estes anos
Já não somos uma rea­li­dade os dois
As memórias ficaram espa­lha­das pelo caminho
Como a vontade, a paixão e o depois

E porque a vontade não chega
A saudade aperta e o peito contrai-se em assombro
Das memórias vividas e daquelas que ficaram por viver

E porque a memória também nos atraiçoa
A tal saudade que aperta nem sempre é a que o coração desperta
Porque as memórias vividas afinal ficaram por viver
***
(Ricardo Vercesi)