segunda-feira, 30 de março de 2015

Há pequenas aves que têm raízes nas palavras


Há pequenas aves que têm raízes nas palavras,
essas palavras que não ficam arrumadas com decência
na literatura,
palavras de amantes sem amor, gente que sofre
e a quem falta o ar quando faltam as palavras.
Quando digo o teu nome há uma ave que levanta voo
como se tivesse nascido o dia e uma brisa
encarcerada nas amêndoas se soltasse para a impelir
para o mais frio, para o mais alto, para o mais azul.
Quando volto para casa o teu nome vai comigo
e ao mesmo tempo espera-me já
numa casa construída com dois nomes,
como se tivesse duas frentes,
uma para a montanha e outra para o mar.
Por vezes dou-te o meu nome e fico com o teu,
espreito então pelas janelas de onde
se vêem coisas que nunca antes tinha visto,
coisas que adivinhava mas que não sabia,
coisas que sempre soube mas que nunca quis olhar.
Nessas alturas o meu nome é o teu olhar,
e os meus olhos são justamente a pronúncia do
teu nome que se diz com um pequeno brilho molhado,
um som pequeno como um roçagar de asas
dessas aves que constroem o ninho na folhagem da fala
e criam raízes fundas nas palavras vulgares
que os vulgares amantes engrandecem
quando falam de amor.
***


(Joaquim Pessoa)

Há dias em que em ti talvez não pense


Há dias em que em ti talvez não pense

a morte mata um pouco a memória dos vivos

é todavia claro e fotográfico o teu rosto

caído não na terra mas no fogo

e se houver dia em que não pense em ti

estarei contigo dentro do vazio
***
(Gastão Cruz)

Certeza


Se te falo é para melhor te ouvir
Se te ouço estou certo de ter compreendido

Se sorris é para melhor me invadir
Alcanço o mundo inteiro se me sorris

Se me uno a ti é para me continuar
Se vivermos tudo será como gostamos

Se eu te deixo recordar-nos-emos
E ao deixar-nos voltaremos a reencontrar-nos.
***
(Paul Éluard)

Ter-te


Ter-te longe
e desejar-te aqui,
onde o frémito do corpo acontece.
Aqui, lugar onde
o vício dos olhos e das mãos me inquieta.

Ah, ter-te perto
suster a respiração,
cerrar os olhos
e deixar que tudo comece
e acabe em ti.

Ensaiar o voo da águia
e suavemente planar sobre a superfície
sinuosa do teu corpo perfeito
no asa-delta da paixão.

Ter-te perto,
sentir o perfume da tua presença
pelo calor do corpo,
pela claridade dos olhos
e pensar
que o sol e a alegria
de cada manhã,
nascem exatamente em ti.
***

(Miguel Afonso Andersen)