domingo, 28 de abril de 2019

Quantas vezes


Quantas vezes te esperei neste lugar
quantas vezes pensei que não chegavas
quantas vezes senti a rebentar
o coração se ao longe te avistava.
*
Quantas vezes depois de teres chegado
nos colámos no beijo que tardava
quantas vezes trementes e calados
nos entregámos logo sem palavras.
*
Quantas vezes te quis e te inventei
quantas vezes morri e já não sei.

***
(Torquato da Luz)

Os anos de ti para mim


O teu cabelo volta a ondular-se quando choro.
Com o azul dos teus olhos
pões a mesa do nosso amor:
uma cama entre o verão e o outono.
Bebemos o que alguém preparou,
que não era eu, nem tu,
nem um terceiro:
sorvemos um último vazio.
*
Miramo-nos nos espelhos do mar profundo
e passamos mais depressa um ao outro os alimentos:
a noite é a noite, começa com a manhã,
é ela que me deita a teu lado.

***
(Paul Celan)

Se eu pudesse dar-te aquilo que não tenho


Se eu pudesse dar-te aquilo que não tenho
e que fora de mim jamais se encontra
Se eu pudesse dar-te aquilo com que sonhas
e o que só por mim poderá ter sonhado
*
Se eu pudesse dar-te o sopro que me foge
e que fora de mim jamais se encontra
Se eu pudesse dar-te aquilo que descubro
e descobrir-te o que de mim se esconde
*
Então serias aquele que existe
e o que só por mim poderá ter sonhado.

***
(Ana Hatherly)

Poema ao jantar



Olá, que estás a fazer?
O jantar.
O que é que vais fazer?
Um poema…
Só um poema, ou alguma coisa para acompanhar?
Sim, vou juntar-lhe o tempo…
e meia dúzia de pensamentos, dos mais pequenos…
Posso ajudar-te?
Claro, fazemos para os dois.
Passa-me aquelas palavras…
Quais?
As que estão por aí sem norte, desarmadas e frias.
E servem?
Vais ver, tenho um truque que as torna de ler e chorar por mais.
Não estão duras?
Com um pouco de paciência e cozedura lenta, amolecem.
Espera, preciso de bater primeiro o coração.
Queres que bata?
Bate comigo, os dois somos o número ideal.
Põe mais beijos…
mais, não deixes cair muitos de uma vez.
Tem já uma bela cor!
estou a ficar cheio de fome.
então pega no meu corpo e aquece-o,
Não deixes queimar, mexe sempre os olhos,
repara na cidade e nas sombras que diminuem.
cuidado não vá engrossar esse modo de ser.
Já podemos juntar tudo?
Falta-me a ternura, não sei se restou alguma,
tive um poema enorme a semana passada.
espera, já cresceram mais umas folhas.
Apanha com cuidado, para a deixar crescer outra vez.
Agora basta que me tenhas e me queiras,
Junta o ramo de cheiros que a tua memória colheu
Cheira, como é boa essa pitada de loucura que juntaste.
Vá, senta-te, Vou servir.
Pão?
Não, prefiro assim.
Traz o vinho
Tinto?
Claro, e tu senta-te, não quero começar sem ti.
***

(Jorge Bicho)

Indiferença







Hoje, voltas-me o rosto, se ao teu lado
passo.
E eu, baixo os meus olhos se te avisto.
E assim fazemos, como se com isto,
pudéssemos varrer nosso passado.
*
Passo esquecido de te olhar, coitado!
Vais, coitada, esquecida de que existo.
Como se nunca me tivesses visto,
como se eu sempre não te houvesse amado
*
Mas, se às vezes, sem querer nos entrevemos,
se quando passo, teu olhar me alcança
se meus olhos te alcançam quando vais.
*
Ah! Só Deus sabe! Só nós dois sabemos.
Volta-nos sempre a pálida lembrança.
Daqueles tempos que não voltam mais!
***
(Guilherme de Almeida)