quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Chove!


Chove…
Mas isso que importa!
Se estou aqui abrigado nesta porta
a ouvir a chuva que cai do céu
uma melodia de silêncio
que ninguém mais ouve
senão eu?
*
Chove…
Mas é do destino
de quem ama
ouvir um violino
até na lama.
(José Gomes Ferreira)

sábado, 22 de novembro de 2008

Não sei


Não sei de mim
se daquilo que parece ser
me perdi.
Deixei que a vida me vivesse e,
perdendo-me da vida,
a vida perdeu-se.

E menti muito,
para ser melhor poeta.
(Fátima Andersen)

domingo, 16 de novembro de 2008

...


Não sei...
se a vida é curta ou longa demais pra nós,
mas sei que nada do que vivemos tem sentido,
se não tocamos o coração das pessoas.
Muitas vezes basta ser: colo que acolhe, braço que envolve,
palavra que conforta, silêncio que respeita,
alegria que contagia, lágrima que corre, olhar que acaricia,
desejo que sacia, amor que promove.

E isso não é coisa de outro mundo,
é o que dá sentido à vida.
É o que faz com que ela não seja nem curta
nem longa demais,
mas que seja intensa, verdadeira, pura...
...enquanto durar...
(Cora Coralina)

sábado, 15 de novembro de 2008

Versos Vertentes


O dia amanheceu cinzento.
Fui lá fora ver a chuva.
A água que descia lavando a rua
– precipitando a vida –
era torrencial,…
transbordava nas frestas da calçada.
Frente às poças que se formavam
tive a lembrança dos versos.
Num suspiro de saudade…
emergiu de minha alma
uma enxurrada de palavras.
Enquanto chovia fiz rascunhos
na página nua das horas.
Um poema onde, em verdade,
sorvo uma gota da face,
resumindo o que senti e desejei
da tua poesia dos verbos
que, ao ler,…
sei estarem todos no plural.
(Rita Costa)

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Sonho vago


Um sonho alado que nasceu um instante
Erguido ao alto em horas de demência...
Gotas de água que tombam em cadência
Na minha alma tristíssima, distante...
*
Onde está ele, o desejado? O infame?
O que há de vir e amar-me em doida ardência?
O das horasde mágoa e penitência?
O príncipe encantado? O eleito? O amante?
*
E neste sonho eu já nem sei quem sou...
O brando marulhar dum longo beijo
Que não chegou a dar-se e que passou...
*
Um fogo fátuo rútilo, talvez...
Eu ando a procurar-te e já te vejo!
E tu já me encontraste e não me vês!
(Florbela Espanca)

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Estrelas


Olhar o céu infinito
Admirar as estrelas
Tocá-las com os dedos da imaginação
Vibrar com o brilho delas.

Brincar de fazer mundos
Usar os sentimentos mais puros
Mais profundos.

Para onde vai aquela estrela?
Um pontinho no céu a caminhar?
E olha lá... do outro lado
Outra estrela a vagar!

São meus sonhos... esperanças...
De um mundo melhor encontrar
Que realizo e conquisto
No brilho do seu olhar!
(Léia Pantoni)

sábado, 8 de novembro de 2008

Pudesse eu florir


Pudesse eu florir em cada flor
no pretexto do sonho em que te envolvo
do meu corpo, no teu corpo, em desalinho.
E tu beberes o conforto
que em cada momento te ofereço
no líquido híbrido
dos meus olhos de águia presa,
no anseio e no fascínio.
Este cálice de sangue e vida,
esta taça pálida d'amargurada orquídea.
Ser-te seiva, suor e linfa...
Pudesse eu, amado, florir e madrugar
nas pupilas do teu olhar tristonho.
Ser o teu mar, o teu mais alto sonho,
ser finda melancolia.
Ser novo dia a beber da claridade
na febre da tua lira.
Ser ninfa, de cobiçosos horizontes,
d’eternidades e tu poesia a explodir-se
na fonte de meu corpo, amado.
Concubinos, viajante de um mesmo sonho,
de mãos unidas,
elevados ao êxtase do canto egrégio
na voz do silêncio de solidão extinta.
Sermos dos amantes a voz que explode,
a voz que grita,
na flama de quem se ama
sem razão ou medida,
na praça e na avenida,
na alma nua, no chão da rua,
na purificaçãodo sal e mel.
No sorriso, na adoração,
na pacificação da dor…
Pudesse eu florir em cada flor de ti, amor!
Pudesse eu!
(Mel de Carvalho)

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Já sobre a fonte


Já sobre a fronte vã se me acinzenta
O cabelo do jovem que perdi.
Meus olhos brilham menos.
Já não tem jus a beijos minha boca.
Se me ainda amas, por amor não ames:
Traíras-me comigo.
(Ricardo Reis)

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Green God


Trazia consigo a graça
das fontes quando anoitece.
Era o corpo como um rio
em sereno desafio
com as margens quando desce.

Andava como quem passa
sem ter tempo de parar.
Ervas nasciam dos passos,
cresciam troncos dos braços
quando os erguia no ar.

Sorria como quem dança.
E desfolhava ao dançar o corpo,
que lhe tremia num ritmo que ele sabia
que os deuses devem usar.

E seguia o seu caminho,
porque era um deus que passava.
Alheio a tudo o que via,
enleado na melodia duma flauta que tocava
***.

(Eugénio de Andrade)

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Quase um poema de amor


Há muito tempo já
que não escrevo um poema
De amor.
E é o que eu sei fazer
com mais delicadeza!
A nossa natureza
Lusitana
Tem essa humana
Graça
Feiticeira
De tornar de cristal
A mais sentimental
E baça
Bebedeira.

Mas ou seja que vou envelhecendo
E ninguém me deseje apaixonado,
Ou que a antiga paixão
Me mantenha calado
O coração
Num íntimo pudor,
--- Há muito tempo já
que não escrevo um poema
De amor
(Miguel Torga)

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

O fogo que na branda cera ardia


O fogo que na branda cera ardia,
Vendo o rosto gentil que na alma vejo.
Se acendeu de outro fogo do desejo,
Por alcançar a luz que vence o dia.

Como de dois ardores se incendia,
Da grande impaciência fez despejo,
E, remetendo com furor sobejo,
Vos foi beijar na parte onde se via.

Ditosa aquela flama, que se atreve
Apagar seus ardores e tormentos
Na vista do que o mundo tremer deve!

Namoram-se, Senhora, os Elementos
De vós, e queima o fogo aquela nave
Que queima corações e pensamentos.
***
(Luís de Camões)

domingo, 2 de novembro de 2008

Ter tempo


Aqui pode ser longe dentro de mim
Há sempre a música imprevista de um verso novo
Assomando no postigo do momento.
Quem dera que o tempo que tenho
Fosse tempo de ter tempo como não tenho agora.
Um qualquer tempo lento, sonolento
Que, livre, me desse tempo para semear o meu tempo
Tempo de viajar vagarosamente
Pelos meandros da memória.
Que não os silêncios que perdemos
No afã do tempo que não temos.
Sei que o tempo me consome,
que envelheço, que entristeço.
Que nesta procura do tempo que passa,
perco o tempo que procuro
Na busca do tempo que não tenho.
(Autor Desconhecido)

sábado, 1 de novembro de 2008

A miséria do meu ser


A miséria do meu ser,
Do ser que tenho a viver,
Tornou-se uma coisa vista.
Sou nesta vida um qualquer
Que roda fora da pista.

Ninguém conhece quem sou
Nem eu mesmo me conheço
E, se me conheço, esqueço,
Porque não vivo onde estou.
Rodo, e o meu rodar apresso.

É uma carreira invisível,
Salvo onde caio e sou visto,
Porque cair é sensível
Pelo ruído imprevisto...
Sou assim. Mas isto é crível?
***
(Fernando Pessoa)