segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Apelo


Atravessa os caminhos da noite
e vem.
Nas fontes, vivas,
do meu corpo
saciarás a tua sede.
Os ramos dos meus braços
serão sombra rumorejante
ao teu sono, exausto.
Atravessa os campos da noite
e vem.
***
(Luísa Dacosta)

Na palma da tua mão


e na palma da tua mão
busco ternura
sem contar meses,
anos,dias,
sem saber dizer
se já te chorei
por inteiro
o suficiente
para não voltar
a perder-te
***
(Vasco Gato)

***


Eu, sempre
me soube
defender
em todas
as circunstâncias…
menos na circunstância
de te amar
***
(Luís Mendes)

domingo, 29 de novembro de 2009

Perfil de Primavera


Perfil de Primavera
Nas mãos que eu ergo acima desta ausência.
O meu sangue desperta, cria raízes no teu sangue
Nos jardins desertos da nossa solidão.
As minhas mãos, as tuas mãos, os corpos abraçados
E a única cidade construída para o nosso amor:
Nua, inquieta, clandestina.
A tua boca no meu peito.
Os beijos demorados.
E todos os silêncios.
As ruas que eu abri no teu olhar
Começam nos meus dedos.
Vem,
Eu amo-te.
***
(Joaquim Pessoa)

Para ti


Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo
Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre
Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida
***
(Mia Couto)

sábado, 28 de novembro de 2009

Receber-te


É mais fácil de longe imaginar
o que seria ter-te aqui presente
do que seria ter-te e não saber
com que forma do corpo receber-te…
***
(António Franco Alexandre)

O sorriso


Falta-me ainda construir o poema
que sem rodeios cantará
a festa de estar contigo.
Entretanto, exploro um tema,
sedento de palavras que não há
para dizer o que digo:
o infindável tema do sorriso
que te marca o olhar.
E de nada mais preciso
para continuar.
***
(Torquato da Luz)

Entraste...


Entraste na casa do meu corpo,
desarrumaste as salas todas
e já não sei quem sou, onde estou.
O amor sabe.
O amor é um pássaro cego
que nunca se perde no seu voo.
***
(Casimiro de Brito)

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Duas faces


Sou o espanto
sou a dor
sou o desencanto.
No entanto,
tão serena
sou amor,
só amor.
***
(Odaísa T. do Nascimento Narcizo)

A luz que vibre


A luz que vibre
sobre o teu rosto
O mar que oscile
sob os teus ombros
O que me atinge
vem de mais longe
lá dos confins
em que te sonho
***
(David Mourão-Ferreira)

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Soneto 1


Passei ontem a noite junto dela.
Do camarote a divisão se erguia
Apenas entre nós – e eu vivia
No doce alento dessa virgem bela…
*
Tanto amor, tanto fogo se revela
Naqueles olhos negros! Só a via!
Música mais do céu, mais harmonia
Aspirando nessa alma de donzela!
*
Como era doce aquele seio arfando!
Nos lábios que sorriso feiticeiro!
Daquelas horas lembro-me chorando!
*
Mas o que é triste e dói ao mundo inteiro
É sentir todo o seio palpitando…
Cheio de amores! E dormir solteiro!
***
(Álvares de Azevedo)

Doçura do silêncio


O céu escureceu e a chuva veio rápida
Fez pessoas correrem pisando poças d’água
Com passos desencontrados
*
Hipnotizou sob as marquises toda gente
E os olhares se tornaram distantes
Perdidos em quietudes e coisas do coração
*
Do lado de dentro de uma das janelas
Uma moça olhava o embaçado do vidro
*
Com a ponta do dedo e riscos de inundação
Inventou a imagem de um namorado
*
Desejou que ele permanecesse
Ficou imóvel como esperasse um beijo
Para não acordar a doçura do silêncio
***
(António Miranda Fernandes)

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Sonho Cristalino


Quando fecho os olhos
Sinto o silêncio da tua alma no meu corpo
E a brisa fresca da noite gela-me os sentidos
Perco a noção da vida, esqueço-me de viver.
A madrugada leva-me longe,
Longe do mundo e da saudade,
Dos gritos frios da monotonia.
Quanta calma, quanta paz
Abraça o meu cansaço
E despe de mim as roupas da nostalgia
Lá longe não sei aonde, aonde tudo é cristalino
Como as águas que nascem no horizonte.
Os desejos são eternos e as vontades mendigas
São como a luz de quem não vê e os olhos
Que tudo invejam
Quando fecho os olhos, não durmo, viajo
Para lá da eternidade...
***
(Conceição Bernardino)

Sei de...


Sei de tudo.
sei de tudo o que não vês,
sei de tudo o que não sentes.

Sei de ontem
da fome que se desprende de ti,
Sei de hoje
a vontade que te promete auroras boreais.

Sei de mim
de tudo o que sinto
e de tudo que queria não ter.

Sei de mim
do rego cavado no peito
e do cheiro deste amor desatinado.

Sei de nós
do que somos e queremos,
do que temos e tememos
dos nacos de luz que nos iluminam,
dos fios azuis que nos atam à vida.

Sei de ti.
Sei de mim
Será que sei de nós?
***
(Maria José Areal)

sábado, 21 de novembro de 2009

O amor é


O amor é
um nome de mulher
na boca de um homem.
*
O amor é
uma flor perfeita
na lapela de um homem só.
*
O amor é
um continente sem fronteiras
para que tudo aconteça.
*
O amor é
a alegria do corpo
sem vergonha de amar.
*
O amor é
dividir somente
o que se pode partilhar.
*
O amor é
uma cidade azul
no dorso de uma nuvem.
*
O amor é
um rapaz loucamente
apaixonado por uma rapariga.
*
O amor é
tão fácil e tão simples
que até se torna difícil.
*
O amor é
tudo aquilo que um dia
ganhamos coragem para ser.
*
O amor é
gostarmos de nós
e sabermos porquê.
***
(José Jorge Letria)

Sopra um vento


Sopra um vento entre mim e ti
nascido como todos
quando escavávamos dentro de nós
escavando a distância
foi já tempestade fechada em nevoeiro
hoje é apenas brisa
afrouxada na distância
recebo esse sopro suave como uma carícia
de quem ao largo me acena
enquanto parte
sempre entre nós um vento
ar com que te respiro
enquanto o longe nos escava
a distância
***
(Ana Viana)

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Não basta


Não.
Não basta saber que existes.
É como estar sedenta
E saber que existe água
É como estar faminta
E saber que há pão
É doer, definhar
E saber que existe um bálsamo.
Não.
Não basta saber que existes
É preciso que estejas.
***
(Encandescente)

Cantiga


Deixa-te estar na minha vida
Como um navio sobre o mar.
Se o vento sopra e rasga as velas
E a noite é gélida e comprida
E a voz ecoa das procelas,
Deixa-te estar na minha vida.
Se erguem as ondas mãos de espuma
Aos céus, em cólera incontida,
E o ar se tolda e cresce a bruma,
Deixa-te estar na minha vida.
À praia, um dia, erma e esquecida,
Hei, com amor, de te levar.
Deixa-te estar na minha vida.
Como um navio sobre o mar.
***
(Cabral do Nascimento)

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

A canção possível


Poderei ainda, amor, cantar
o exercício da insuportável ternura
sem que a vida sucumba
às cicatrizes do passado?
*
Por mais que digamos,
as nossas bocas morrendo uma na outra,
entre espasmos,
ainda a rosa é pálida
e os nossos dedos não passarão de mendigos
que se tocam na espuma dos dias.
*
Por mais que digamos,
as palavras jamais saberão o caminho
que lhes é devido,
o caminho das flores do silêncio
esse o único que salva o amor,
cravando-o na boca de Deus.
*
É noite, ainda, meu amor,
e a lua vem beijar-te os ombros
o teu corpo procura o lugar do meu,
como se nenhum outro coubesse dentro dele
antigo como a noite.
*
E os dedos serão ainda em torno da luz,
buscando a chama, o fruto,
a ferida que as tuas palavras
rasgaram no meu corpo
em volta dessa insuportável ternura.
***
(Maria João Cantinho)

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Escrevo de pé andando



assim mesmo, sim, cabisbaixo
declamo frases prontas, teorias
na passarela, coisa de mostruário
*
(a vida pulsa nas calçadas
e o vento nos envolve
— indistintamente — ,
portas entreabertas)
*
pássaros sem asas, telefones mudos
caminhos sem destino, inquietação
— estamos no umbral sem fundo.
*
janelas sem paisagens, muros cariados,
estamos sendo devorados
e festejamos nosso conformismo
*
acho que estão nos filmando
e disfarço, busco o gesto adequado
— vou ser visto, lido
— um horror!
*
a palavra imortaliza, mas eu passo.
eu tergiverso, busco as engrenagens
e antecipo a morte — liquefaço.
*
deixo um rastro de palavras ocas
ecos de vozes instigantes, que cobram
atropelam— eu fluo e fujo, às vezes
***
(António Miranda)

Vôo sobre fogo


Poemas são pássaros,
palavras, passo a passo, à disposição do acaso
ou desvelando indesejáveis verdades
Sem alarde - silencioso sofrimento -
passam no fim de tarde - sílabas de poente solidão -
aquarelando saudades nunca imaginadas...
*
Destino já não há, apenas um eterno seguir
Seguir em busca da idealizada liberdade sob o sol
E não importa o tempo, entregue ao vento,
o intento só perderá seu alento
quando a montanha transformar-se em pó
*
Estes pássaros-poemas, voando a esmo neste espaço,
são refrações, significâncias pouco traduzíveis...
Letras que se desprendem de uma triste história
e despencam nesta cinza tarde de inverno
A memória traz quadros de onde fogem figuras
e o que permanece são vazias e inquietantes molduras
Estes pássaros, em meio a tantas tormentas,
já não acreditam ser possível encontrar o oásis
O verdadeiro porto-seguro é o invisível vôo,
pois o futuro - olhos fechados - tropeça em coisas e pessoas
*
O cansaço é mais uma peça pregada pelo destino
E por mais que precisem e tentem, regresso já não,
Pois - nas nuvens - apagadas foram todas as pegadas
Por entre as últimas réstias do sol,
aos pássaros só resta alçar mais um vôo pelos desvãos do céu
Mas com eles também pesadamente vão
a certeza de desperdício e o completo desencanto
*
Não tem talvez: estes pássaros-poemas sou eu mesmo,
Mergulhando, sem qualquer preocupação com a volta,
profundamente no dilema da vez.
***
(Raimundo Gadelha)

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Chove


Chove...
Mas isso que importa,
se estou aqui abrigado nesta porta
a ouvir a chuva que cai do céu
uma melodia de silêncio
que ninguém mais ouve
senão eu?
Chove...
Mas é do destino
de quem ama
ouvir um violino
até na lama.
***
(José Gomes Ferreira)

A mão torturada por um olhar


Somos duas chamas ardentes,
somos duas estrelas cadentes.
Somos como cão e gato,
como um ser inadaptado
com vontade de viver
e condenados a amar.
A mão torturada por um olhar
um lírio e uma margarida amando-se,
sem deixar de abrir a cúpula de uma ferida
sentida e de vida sofrida.
No entanto, a sereia canta como lira de Orfeu
para aliviar a alma do seu amor ateu...
***
(Tília Ramos)

sábado, 14 de novembro de 2009

Renúncia


Renunciar. Todo o bem que a vida trouxe,
Toda a expressão do humano sofrimento
A gente esquece assim como se fosse
Um vôo de andorinha em céu nevoento.
*
Anoiteceu de súbito. Acabou-se.
Tudo… A miragem do deslumbramento…
Se a vida que rolou no esquecimento
Era doce, a saudade inda é mais doce.
*
Sofre de ânimo forte, alma intranquila!
Resume na lembrança de um momento
Teu amor. Olha a noite: ele cintila.
*
Que o grande amor, quando a renúncia o invade,
Fica mais puro porque é pensamento,
Fica muito maior porque é saudade.
***
(Carneiro da Cunha)

Pobre Amor


Calcula, minha amiga, que tortura!
Amo-te muito e muito, e, todavia,
Preferira morrer a ver-te um dia
Merecer o labéu de esposa impura!
*
Que te não enterneça esta loucura,
Que te não mova nunca esta agonia,
Que eu muito sofra porque és casta e pura,
Que, se o não foras, quanto eu sofreria!
*
Ah! Quanto eu sofreria se alegrasses
Com teus beijos de amor, meus lábios tristes,
Com teus beijos de amor, as minhas faces!
*
Persiste na moral em que persistes.
Ah! Quanto eu sofreria se pecasses,
Mas quanto sofro mais porque resistes!
***
(Aluísio Azevedo)

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Motivo


Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
*
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
*
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei.
Não sei se fico ou passo.
*
Sei que canto.
E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.
***
(Cecília Meireles)

Talvez


Talvez até a Vida seja simples.
Os meus lábios são, por exemplo,
feitos de vento
e a minha voz é uma cortina de fumo
para me defender do frio.
*
Lembrei-me um dia
de cortar os dedos
para não mais escrever poesia.
(Nunca chorei tanto
em toda a minha Vida!...)
*
Hoje tenho a convicção das dunas,
sei que os meus cabelos
escrevem 365 livros por ano
e procuro sozinha o Infinito.
***
(Maria Azenha)

O poeta e a vida


Contra a angústia,
a solidão e o medo
ergo os versos
e não cedo.
*
Quebro-os
– lança imaginária –
na página da Vida.
E é por ela
que os escrevo.
***
(Carlos Carranca)

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

O Pai


Terra de semente inculta e bravia,
terra onde não há esteiros ou caminhos,
sob o sol minha vida se alonga e estremece.
*
Pai, nada podem teus olhos doces,
como nada puderam as estrelas
que me abrasam os olhos e as faces.
*
Escureceu-me a vista o mal de amor
e na doce fonte do meu sonho
outra fonte tremida se reflecte.
*
Depois... Pergunta a Deus
porque me deram o que me deram
e porque depois conheci a solidão do céu e da terra.
*
Olha, minha juventude foi um puro botão
que ficou por rebentar
e perde a sua doçura de seiva e de sangue.
*
O sol que cai e cai eternamente cansou-se de a beijar...
E o Outono.
Pai, nada podem teus olhos doces.
*
Escutarei de noite as tuas palavras:
... menino, meu menino...
*
E na noite imensa
com as feridas de ambos seguirei.
***
(Pablo Neruda)
(Poema lindíssimo que dedico ao meu pai com eterna saudade.)

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Tem de haver um tempo


Tem de haver um tempo
para a vida e para a morte
tem de haver um espaço
onde concentrar
as lágrimas e o riso.
*
Um abismo
onde as árvores cresçam
em esquecimento
e claridade.
*
Uma porta rarefeita
por onde escoar
o que resta da solidão.
***
(Luís Serrano)

Canção do verdadeiro abandono


Podem todos rir de mim,
podem correr-me à pedrada,
podem espreitar-me à janela
e ter a porta fechada.
*
Com palavras de ilusão
não me convence ninguém.
Tudo o que guardo na mão
não tem vislumbres de além.
*
Não sou irmã das estrelas,
nem das pombas nem dos astros.
Tenho uma dor consciente de bicho
que sofre as pedras e se desloca de rastos.
***
(Natércia Freire)

Final


De mãos escassas nuas
a flor frágil renasce sem motivo
senão vê-la tardia nos caminhos
que até aqui me trouxeram,
e a surpresa, a nitidez dos colos tranquilos
onde as searas são o dia-a-dia
já maduras e a estrada que entre os campos
me leva desconheço hoje para onde
nem como nem porquê entre cidades
e plainos navegando e vendo as árvores
e o seu perfil exacto contra o céu.
Digo-me tanto aqui hei-de passar
que um dia o silêncio se abrirá
no rasto que existia na memória
e as lembranças se irão, morto estava
o desejo de flores e as mãos escassas
preparavam o seu fim
sem que a pena ou o medo as desviasse.
***
(Nuno Dempster)

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Anos sem fim, à luz do mar aceso


Anos sem fim, à luz do mar aceso,
te vi nudez quase total, tão grácil
figura juvenil, ambígua e fácil,
e ao longe às vezes totalmente nua
em só relance de malícia crua.
Tudo isso me atraía e me afastava,
embora a vista retornando escrava,
a teus lugares me tivesse preso.
E quase sempre então tua figura,
sentada estátua, ou falsa sesta impura,
lá era, ao sol, o tempo congelado.
Hoje, subitamente, tu não viste
ninguém senão o meu olhar quebrado,
e com lenta inocência te despiste.
Mas quantas rugas no sorriso ansiado!
***
(Jorge de Sena)

A sombra sou eu


A minha sombra sou eu,
ela não me segue,
eu estou na minha sombra
e não vou em mim.
Sombra de mim que recebo a luz,
sombra atrelada ao que eu nasci,
distância imutável de minha sombra a mim,
toco-me e não me atinjo,
só sei do que seria
se de minha sombra chegasse a mim.
Passa-se tudo em seguir-me
e finjo que sou eu que sigo,
finjo que sou eu que vou
e não que me persigo.
Faço por confundir a minha sombra comigo:
estou sempre às portas da vida,
sempre lá, sempre às portas de mim!
***
(Almada Negreiros)

domingo, 8 de novembro de 2009

A última lágrima


A chama arde.
O coração bate.
A cera escorre.
A lágrima desce.
O calor morre,
E a vida de esperança carece.
A cera evapora.
O suspiro vai embora.
Outra alma padece,
E para o além ela corre.
O calor se expande,
Esquenta a face,
Molhada diante
Da mais dura perda.
E a vela se esvai.
A última lágrima cai.
Todos os seus sentimentos,
Todos os seus pensamentos,
Tudo se mistura,
Num momento de tortura
Que explode e perdura.
Os olhos reluzem.
Os gestos traduzem
Os segredos de um amor
Convertido em dor.
E o choro irrompe,
Gritos surdos de sofrimento.
E uma voz interrompe
A solidão do momento.
Um suspiro repentino,
Como se toda a vida se esvaísse.
Um sussurro inaudível,
Mas que revelaria para quem o ouvisse
O amor escondido,
Não correspondido.
E a dor se torna terrível,
Impossível.
E a última cera escorre,
E a última lágrima desce,
E o último sangue jorra,
E tudo que era vivo morre,
E tudo que era feliz entristece,
E todo o fogo vai embora,
E só há escuridão.
Afoga-se em sua própria solidão,
Fica apenas a memória
Da tortura e da decepção
Causadas por um amor mútuo,
Não correspondido
Por ambos os lados.
Viveu escondido
E morre enterrado
Na mais profunda escuridão.
***
(Jannerson Xavier)

Pensar em ti


Pensar em ti é coisa delicada.
É um diluir de tinta espessa e farta
e o passá-la em finíssima aguada
com um pincel de marta.
*
Um pesar grãos de nada em mínima balança
um armar de arames cauteloso e atento,
um proteger a chama contra o vento,
pentear cabelinhos de criança.
*
Um desembaraçar de linhas de costura,
um correr sobre lã que ninguém saiba e oiça,
um planar de gaivota como um lábio a sorrir.
*
Penso em ti com tamanha ternura
como se fosses vidro ou película de loiça
que apenas como o pensar te pudesses partir.
***
(António Gedeão)

sábado, 7 de novembro de 2009

As Primeiras Chuvas


As primeiras chuvas estavam tão perto
de ser música
que esquecemos que o Verão acabara:
uma súbita alegria,
súbita e bárbara, subia e coroava
a terra de água,
e Deus, que tanto demorara,
ardia no coração da palavra.
***
(Eugénio de Andrade)

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Eros e Psique


Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante que viria
De além do muro da estrada
*
Ele tinha, que , tentado
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.
*
A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera.
Sonha em morta a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.
*
Longe o Infante, esforçado
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado.
Ele dela é ignorado
Ela pra ele é ninguém.
*
Mas cada um cumpre o Destino
- Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.
*
E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro
E, vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora.
*
E, inda tonto do que houvera,
À cabeça em maresia,
Ergue a mão , e encontra hera
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.
***
(Fernando Pessoa)

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Quem Me Quiser

Quem me quiser há-de saber as conchas
a cantigas dos búzios e do mar.
Quem me quiser há-de saber as ondas
e a verde tentação de naufragar.
*
Quem me quiser há-de saber as fontes,
a laranjeira em flor, a cor do feno,
à saudade lilás que há nos poentes,
o cheiro de maçãs que há no Inverno.
*
Quem me quiser há-de saber a chuva
que põe colares de pérolas nos ombros
há-de saber os beijos e as uvas
há-de saber as asas e os pombos.
*
Quem me quiser há-de saber os medos
que passam nos abismos infinitos
a nudez clamorosa dos meus dedos
o salmo penitente dos meus gritos.
*
Quem me quiser há-de saber a espuma
em que sou turbilhão, subitamente
- Ou então não saber a coisa nenhuma
e embalar-me ao peito, simplesmente.
***
(Rosa Lobato de Faria)

O Céu


Assoam-se-me à alma
quem como eu traz desfraldado o coração
sabe o que querem dizer estas palavras.
A pele serve de céu ao coração.
***
(Luís Miguel Nava)

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Coisa Amar


Contar-te longamente
as perigosas coisas do mar.
Contar-te o amor ardente
e as ilhas que só há no verbo amar.
Contar-te longamente longamente.
*
Amor ardente. Amor ardente.
E mar.
Contar-te longamente
as misteriosas maravilhas do verbo navegar.
E mar.
*
Amar: as coisas perigosas.
Contar-te longamente
que já foi num tempo doce coisa amar.
E mar.
*
Contar-te longamente
como doi desembarcar nas ilhas misteriosas.
Contar-te o mar ardente e o verbo amar.
E longamente as coisas perigosas.
***
(Manuel Alegre)

Soneto CV


Não chame o meu amor de Idolatria
Nem de Ídolo realce a quem eu amo,
Pois todo o meu cantar a um só se alia,
E de uma só maneira eu o proclamo.
É hoje e sempre o meu amor galante,
Inalterável, em grande excelência;
Por isso a minha rima é tão constante
A uma só coisa e exclui a diferença.
'Beleza, Bem, Verdade', eis o que exprimo;
'Beleza, Bem, Verdade', todo o acento;
E em tal mudança está tudo o que primo,
Em um, três temas, de amplo movimento.
'Beleza, Bem, Verdade' sós, outrora;
Num mesmo ser vivem juntos agora.
***
(William Shakespeare)

Assim eu vejo a vida


A vida tem duas faces:
Positiva e negativa
O passado foi duro mas deixou o seu legado
Saber viver é a grande sabedoria
Que eu possa dignificar
Minha condição de mulher,
Aceitar suas limitações
E me fazer pedra de segurança
dos valores que vão desmoronando.
Nasci em tempos rudes
Aceitei contradições lutas e pedras
como lições de vida e delas me sirvo
Aprendi a viver.
***
(Cora Coralina )

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Dever de Sonhar


Eu tenho uma espécie de dever,
dever de sonhar,
de sonhar sempre,
pois sendo mais do que um espectáculo de mim mesmo,
eu tenho que ter o melhor espectáculo que posso.
E, assim, me construo a ouro e sedas,
em salas supostas, invento palco,
cenário para viver o meu sonho
entre luzes brandas e músicas invisíveis.
***
(Fernando Pessoa)

A Mulher Mais Bonita do Mundo


estás tão bonita hoje. quando digo que nasceram flores novas na terra do jardim,
quero dizer que estás bonita.
entro na casa, entro no quarto, abro o armário, abro uma gaveta,
abro uma caixa onde está o teu fio de ouro.
entre os dedos, seguro o teu fino fio de ouro, como se tocasse a pele do teu pescoço.
há o céu, a casa, o quarto, e tu estás dentro de mim.
estás tão bonita hoje. os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.
estás dentro de algo que está dentro de todas as coisas,
a minha voz nomeia-te para descrever a beleza.
os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.
de encontro ao silêncio, dentro do mundo,
estás tão bonita é aquilo que quero dizer.
***
(José Luís Peixoto)

domingo, 1 de novembro de 2009

A um ausente


Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.
Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o acto sem continuação, o acto em si,
o acto que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?
Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.
Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.
***
(Carlos Drummond de Andrade)