quarta-feira, 30 de março de 2011

Homem transportando o cadáver de uma mulher


Quis-te tanto que gostei de mim!

Tu eras a que não serás sem mim!

Vivias de eu viver em ti

e mataste a vida que te dei

por não seres como eu te queria.

Eu vivia em ti o que em ti eu via.

E aquela que não será sem mim

tu viste-a como eu

e talvez para ti também

a única mulher que eu vi!

***

(Almada Negreiros)

No momento do adeus sucede que os amantes


No momento do adeus sucede que os amantes

Se abraçam, a chorar, com vozes soluçantes.

Força, é força partir; a mão prende-se à mão,

E uma infinda tristeza inunda o coração.

*

Para nós, meu amor, nessa hora de agonia

Não houve o padecer que as almas excrucia;

Foi grave o nosso adeus e frio, e só agora

é que a dor nos subjuga, e a angústia nos devora.

***

(Gonçalo Crespo)

Que letras buscar?


A falta que me fazes, é sempre em mim, mas dias há

em que as saudades são tantas que nem sei falar.

Até tento, mas apenas sai o silêncio que não cabe no

pequeno do mundo, então transbordo e estarei

gotejando e escorrendo na tua janela.

Ouves?

Vês?

Que letras buscar para dizer quando é tanto assim?

***

(António Miranda Fernandes)

...poema de amar


gostava de fazer-te um poema de amar,

fazer um poema para te amar, de fazer um poema ao amar-te.

*

porquê amar, amar-te a ti?

porque me amo mais por amar-te,

porque nos amo aos dois?

sim e não.

sim porque amar, é amar-te a ti.

não porque amar-te, não é amar.

*

porquê perguntar, perguntar-te

a ti e não a mim mesma?

sim e não, pergunto-te?

ontem sim, hoje não,

amanhã talvez?

talvez não ontem, como hoje

e talvez não amanhã.

*

mas amo amar-te,

e amava puder amar-te mais.

*

gostei de fazer-te um poema de amar,

fazer um poema para te amar,

um poema ao amar-te.

e ao amar-te, fiz um poema de amar.

e ao te amar, faço um poema para amar-te mais.

***

(Luísa Azevedo)

quarta-feira, 16 de março de 2011

Olhos do poeta


Buscas
o olhar calado,
que fala sem parar
aos olhos do vento,
e em tempo
dispensa o sopro
do som e com o tom
da palavra em versos,
sem teto,
abriga todos os olhares
para si, e confessa:
poeta do olhar
não fala,
se expressa
a todo instante,
sem pressa...
e voa!
***
(Maísa *Pupila*)

Pequena morte


Afasta a tua boca de desejo,
que a torpe embriaguez me tira a vida!
Eu quero a lucidez dessa ferida
ardendo a cada passo do cortejo!
*
Afasta a tua boca do meu beijo,
que a minha é sonsa, é cálida e atrevida!
Eu quero me encontrar,
e mais perdida eu fico se profanas o meu pejo!
*
Afasta minhas mãos e minhas coxas,
que assim minha razão fica exaurida!
Eu quero que me deixes manchas roxas,
de amor, de insensatez e de mordida!
*
Se o gozo faz de ti o meu consorte,
em mim alcançarás pequena morte!
***
(Lílian Maial)

Murmúrios da tarde


ONTEM à tarde, quando o sol morria,
A natureza era um poema santo,
De cada moita a escuridão saía,
De cada gruta rebentava um canto,
Ontem à tarde, quando o sol morria.
*
Do céu azul na profundeza escura
Brilhava a estrela, como um fruto louro,
E qual a foice, que no chão fulgura,
Mostrava a lua o semicirc'lo d'ouro,
Do céu azul na profundeza escura.
*
Larga harmonia embalsamava os ares!
Cantava o ninho — suspirava o lago...
E a verdade pluma dos sutis palmares
Tinha das ondas o murmúrio vago...
Larga harmonia embalsamava os ares.
*
Era dos seres a harmonia imensa,
Vago concerto de saudade infinda!"
Sol — não me deixes", diz a vaga extensa,
"Aura — não fujas", diz a flor mais linda;
Era dos seres a harmonia imensa!
*
"Leva-me! leva-me em teu seio amigo"
Dizia às nuvens o choroso orvalho,
"Rola que foges", diz o ninho antigo,
"Leva-me ainda para um novo galho...
Leva-me! leva-me em teu seio amigo."
*
"Dá-me inda um beijo, antes que a noite venha!
Inda um calor, antes que chegue o frio...
"E mais o musgo se conchega à penha
E mais à penha se conchega o rio...
"Dá-me inda um beijo, antes que a noite venha!"
*
E tu no entanto no jardim vagavas,
Rosa de amor, celestial Maria...
Ai! como esquiva sobre o chão pisavas,
Ai! como alegre a tua boca ria...
E tu no entanto no jardim vagavas.
*
Eras a estrela transformada em virgem!
Eras um anjo, que se fez menina!
Tinhas das aves a celeste origem.
Tinhas da luta a palidez divina,
Eras a estrela transformada em virgem!
*
Flor! Tu chegaste de outra flor mais perto,
Que bela rosa! que fragrância meiga!
Dir-se-ia um riso no jardim aberto,
Dir-se-ia um beijo, que nasceu na veiga...
Flor! Tu chegaste de outra flor mais perto!...
*
E eu, que escutava o conversar das flores,
Ouvi que a rosa murmurava ardente:
"Colhe-me, ó virgem, — não terei mais dores,
Guarda-me, ó bela, no teu seio quente...
"E eu escutava o conversar das flores.
*
"Leva-me! leva-me, ó gentil Maria!
"Também então eu murmurei cismando...
"Minh'alma é rosa, que a geada esfria...
Dá-lhe em teus seios um asilo brando...
"Leva-me! leva-me, ó gentil Maria!..."
***
(Castro Alves)

terça-feira, 15 de março de 2011

Ressurreição

Depois de tudo, termos ainda de acordar um dia aqui
ao som terrível de trombetas e clarins?
Perdoai-me, Senhor, mas consola-me
pensar que o sinal da nossa ressureição
será dado simplesmente pelo cantar do galo.
Ficaremos ainda uns momentos na cama.
A primeira a levantar-se
será a mãe. Senti-la-emos
acender o lume em silêncio,
pôr a água a ferver sem ruído,
retirar do armário suavemente o moinho de café.
De novo estaremos em casa.
***
(Vladimir Holan - tradução de Eugénio de Andrade)

O poeta chorava...


O poeta chorava
o poeta buscava-se todo
o poeta andava de pensão em pensão
comia mal tinha diarreias extenuantes
nelas buscava uma estrela talvez a salvação?
O poeta era sinceríssimo
honestototal
raras vezes tomava o eléctrico
em podendo
voltava
não podendo
ver-se-ia
tudo mais ou menos
a cair de vergonha
mais ou menos
como os ladrões
*
E agora o poeta começou por rir
rir de vós ó manutensores
da afanosa ordem capitalista
comprou jornais foi para casa leu tudo
quando chegou à página dos anúncios
o poeta teve um vómito que lhe estragou
as únicas que ainda tinha
e pôs-se a rir do logro é um tanto sinistro
mas é inevitável é um bem é uma dádiva
Tirai-lhe agora os poemas que ele próprio despreza
negai-lhe o amor que ele mesmo abandona
caçai-o entre a multidão
crucificai-o de novo mas com mais requinte.
Subsistirá. É pior do que isso.
Prendei-o. Viverá de tal forma
que as próprias grades farão causa com ele.
E matá-lo não é solução.
O poeta
O Poeta
O POETA DESTRÓI-VOS
***
(Mário Cesariny)

O menos possível


Respirar
o menos possível
nestas cidades
de uma tristeza
sem idade
abrindo o espaço
com os gestos lentos de um náufrago
a caminho
do fundo
A noite sobe-me
na voz
como um lugar
capaz de imaginar
sozinho
o seu cenário
onde o azul
dorme
numa cave
como os cães
***
(Ernesto Sampaio)

No meio o mundo


Com medo de o perder nomeio o mundo
Seus quantos e qualidades, seus objectos
E assim durmo sonoro no profundo
Poço de astros anónimos e quietos
*
Nomeei as coisas e fiquei contente
Prendi a frase ao texto do universo
Quem escuta ao meu peito ainda lá sente
Em cada pausa e pulsação, um verso.
***
(Vitorino Nemésio)

sexta-feira, 4 de março de 2011

Liberdade


Ai que prazer
não cumprir um dever,
ter um livro para ler
e não o fazer!
Ler é maçada
estudar é nada.
O sol doira
sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
sem edição original.
E a brisa, essa,
de tão naturalmente matinal,
como tem tempo, não tem pressa…
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
a distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças…
Mas o melhor do mundo são as crianças,
flores, música, o luar e o sol, que peca
só quando, em vez de criar, seca.
O mais do que isto
é Jesus Cristo
que não sabia nada de finanças
nem consta que tivesse biblioteca…
***
(Fernando Pessoa)

Medo


Quem dorme à noite comigo?
É meu segredo, é meu segredo!
Mas se insistirem, desdigo.
O medo mora comigo,
Mas só o medo, mas só o medo!
*
E cedo, porque me embala
Num vaivém de solidão,
É com silêncio que fala,
Com voz de móvel que estala
E nos perturba a razão.
*
Que farei quando, deitado,
Fitando o espaço vazio,
Grita no espaço fitado
Que está dormindo a meu lado,
Lázaro e frio?
*
Gritar? Quem pode salvar-me
Do que está dentro de mim?
Gostava até de matar-me.
Mas eu sei que ele há-de esperar-me
Ao pé da ponte do fim.
***
(Reinaldo Ferreira)

quinta-feira, 3 de março de 2011

E de novo a armadilha dos abraços


E de novo a armadilha dos abraços.
E de novo o enredo das delícias.
O rouco da garganta, os pés descalços
a pele alucinada de carícias.
As preces, os segredos, as risadas
no altar esplendoroso das ofertas.
De novo beijo a beijo as madrugadas
de novo seio a seio as descobertas.
Alcandorada no teu corpo imenso
teço um colar de gritos e silêncios
a ecoar no som dos precipícios.
E tudo o que me dás eu te devolvo.
E fazemos de novo, sempre novo
o amor total dos deuses e dos bichos.
***
(Rosa Lobato de Faria)

Braille


Leio o amor no livro
da tua pele; demoro-me em cada
sílaba, no sulco macio
das vogais, num breve obstáculo
de consoantes, em que os meus dedos
penetram, até chegarem
ao fundo dos sentidos.
Desfolho
as páginas que o teu desejo me abre,
ouvindo o murmúrio de um roçar
de palavras que se juntam, como corpos,
no abraço de cada frase.
E chego ao fim
para voltar ao princípio, decorando
o que já sei, e é sempre novo
quando o leio na tua pele.
***
(Nuno Júdice)

bebo-te... como água que rebenta das fontes


aqui tens a minha sede. as águas dos rios
somente satisfazem a urgência maior
e nada diz de ti esse líquido que a sede sacia:
queria beber-te nas ondas do teu ciúme
e despedaçar-me no desejo dos teus lábios
queria alcançar a nuvem e colher a rebeldia
das gotas exaltantes dos teus beijos
queria a ribeira da tua pele como a água
que rebenta das fontes
e unidos na mesma sede alcançar o êxtase
na cintilação dos mesmos horizontes
queria o incêndio escrito na mesma sede
e morrer no martírio de doçuras de amante
*
aqui tens a minha sede: fogo e água da tua boca
ardendo no azul duma água murmurante.
***
(Bernardete Costa)

Dizer


Dizer
Sem Palavras
Amar
sem vírgulas
Sofrer
sem sintaxe
Viver
sem Parêntese
Sublinhando
o gesto
Acentuando
o tempo.
Conjugando
o resto.
***
(Bruno Kampel)

terça-feira, 1 de março de 2011

Uma mulher...


Uma mulher caminha nua pelo quarto
é lenta como a luz daquela estrela
é tão secreta uma mulher que ao vê-la
nua no quarto pouco se sabe dela
*
a cor da pele, dos pêlos, o cabelo
o modo de pisar, algumas marcas
a curva arredondada de suas ancas
a parte onde a carne é mais branca
*
uma mulher é feita de mistérios
tudo se esconde: os sonhos, as axilas,
a vagina
ela envelhece e esconde uma menina
que permanece onde ela está agora
*
o homem que descobre uma mulher
será sempre o primeiro a ver a aurora.
***
(Bruna Lombardi)

Pousada


Pousa teus sonhos
Nos meus ombros.
O mormaço escorre
No suor de teu cansaço.
Estamos exaustos:
Eu por te esperar,
Tu por não chegares.
Vem.
Espero teu abraço.
Quero-o ardente,
Possuidor.
Frouxos estão
Meus lamentos.
Tardas.
Não queres voltar?
Estás farto de amor,
Ou tens pouco para dar?
Vem.
Preciso de teus beijos
Longos, gananciosos.
Quero sorver vida
Através de tua boca.
Chama-me louca,
Aventureira,
Presa fácil...
Estás indeciso?
Queres uma pousada segura,
Ou não crês nas minhas oferendas?
Vem.
Encontrarás o que procuras:
Casa, conforto, roupa macia,
Comida farta, carinho
E uma cama ardente.
Vem.
Pousa tua teimosia
Na minha solidão.
Vem.
Há sempre uma vaga
Na minha pousada.
Vem.
Espero tua chegada...
***
(Cleri Aparecida Biotto Bucioli )

Já me deixou


A saudade andou comigo
E através do som da minha voz
No seu fado mais antigo
Fez mil versos a falar de nós
Troçou de mim à vontade
Sem ouvir sequer os meus lamentos
E por capricho ou maldade
Correu comigo a cidade
Até há poucos momentos
*
Já me deixou
Foi-se logo embora
A saudade a quem chamei maldita
Já nos meus olhos não chora
Já nos meus sonhos não grita
Já me deixou
Foi-se logo embora
Minha tristeza chegou ao fim
Já me deixou mesmo agora
Saíu pela porta fora
Ao ver-te voltar para mim
*
Nem sempre a saudade é
Nem sempre a saudade é pranto e dor
Se em paga saudade existe
A saudade não dói tanto amor
Mas enquanto tu não vinhas
Foi tão grande o sofrimento meu
Pois não sabia que tinhas
Em paga ás saudades minhas
Mais saudades do que eu
***
(Artur Ribeiro)

Apaixonantes sensações


Arde em mim a sensação
Dos minutos sem fim
Como se tudo fosse inspiração
Doce, com sabor a jasmim,
Como se eu fosse alma e coraçãoE tu pedaço de mim.
*
Clamo a evidência perfeita
Dos abraços ancorados
Na submissão desfeita
Pelo poder dos corpos suados
Que em cada palavra eleita
Oferecem poemas amados.
*
Olho o infinito da escuridão
Nesta noite de calmaria,
E sonho com a tua mão
Estendida na periferia
Do meu latente coração
Num gesto de sintonia.
*
Por instantes, sinto o teu respirar
Bem perto da liberdade
Que a minha mente teima em traçar
Com purpurina e vaidade
Na esperança de ver chegar
O momento da feliz verdade.
*
E vejo-te, ao longe, a sorrir…
Aproximas-te com lentos passos
Regateando as flores por abrir
Com gestos delicados e rasos
Que fazem lembrar notas a cair
Na pauta musical dos abraços.
*
És tu, apaixonante,
A vida do meu respirar;
És tu, meu amante,
Alma límpida por amar,
Rosto marcante
Que teima em ficar.
***
(Natália Bonito)