segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Aguarela



Risco a lousa com o giz
(ponho de lado o cinzel)
e desenho por um triz
a raiz deste papel

que foi árvore frondosa,
talvez até castanheiro,
com ouriços como rosas
cheias de cor e de cheiro

E pego então no papel,
mais branco do que a brancura,
e pinto em tons de pastel
a tua imensa ternura:

vê a luz, a sombra, o sema
de uma aguarela sem tema
***
(Domingos da Mota)

Passagem



Dizem-me que vai haver dias novos
Que hão de vir buscar-me
e arrastar-me por caminhos que não sei
ainda

Dizem-me que tem de ser

Mas eu
meu amor
que só conheço o tempo dos teus dedos
o tempo que se demoram na inclinação perfeita
do pensamento

[Nome que dei às sombras que te ponteiam
Nome do cheiro da tua vinda
e do tato solto dos teus olhos
sobre a promessa de mim]

eu
meu amor
sei
que não há passagem que nos valha

Sei que levarei
lágrimas embrulhadas neste ter de ser
e uma tempestade de punhos lavados
à espera de um sangue
que se demora
nos degraus do vapor que te sou

subindo-me

subindo-me e levando-te
na transparência dolente deste cansaço
de me tardares

indefinidamente

Dizem-me que vai haver dias novos
para sepultar tudo o que demorou
de mais
e não chegou a chegar

Dizem-me que tem de ser

Mas respiras-me
ainda
e temo que me morras
vivo
e que vivendo-me
me deixes ainda pulsando
a entardecer-te

indefinidamente

Porque eu sei
meu amor
que o tempo dos teus dedos
não passa
***
(Virgínia do Carmo)

Sabedoria



Vivo das lágrimas e da poeira da estrada, que se entranha nos olhos

e me tolhe das águas do rio onde nasci; sorriso turvo nas algas

de dias escorregadios e flores de sol onde nascem ameias

estranhas; corro atrás das nuvens e percorro ruas

desertas. Se soubesse dos dias, estarias

mais perto.
***
(Susana Duarte)

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Frutos e flores



Meu amado me diz
que sou como maçã
cortada ao meio.
As sementes eu tenho
é bem verdade.
E a simetria das curvas
Tive um certo rubor
na pele lisa
que não sei
se ainda tenho.
Mas se em abril floresce
a macieira
eu maçã feita
e pra lá de madura
ainda me desdobro
em brancas flores
cada vez que sua faca
me trespassa.
***
(Marina Colasanti)