terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Invisível



O poema
caminhava
pela avenida
congestionada.

Seguia calmo
naquela manhã
ensolarada.
Brisa fresca
batendo no rosto,
mar azul,
água de coco,
jardins floridos.

Gentes,
entremeavam
num ir e vir
desnorteado.

Sereno;
acenou.
sorriu.
chorou.

Invisível...

Esbravejou,
irritou-se,
desnudou-se,
desistiu,
e já sem fôlego...

Inerte;
caiu.

Gentes,
ainda naquele
irritante
vir e ir
desenfreado.

Passavam.
Tropeçavam.
Desviavam,
e seguiam...

Ninguém
percebia...

Que ali,
ao risco de morte,
caído,
jaziam;
o poema,
de mãos dadas
com a última poesia
do dia.
***
(José Silveira)

Lavo as insónias


Abrigo o meu pranto
no marejar mudo das rochas,
onde florescem as giestas
num preludio primaveril

Lavo as insónias
no relento das madrugadas
que chegam arrogantes
ao relevo do meu corpo febril

Descalça, trajo-me de sal,
e o reflexo do meu olhar
perde-se
no enrodilhar tumultuoso
das sensações
vazias de aridez

Deixo-me sucumbir
ao silencioso cantar frenético
dos pássaros,
aos afoitos raios solares
e perco-me nas encostas de ti.
***
(Liliana Jardim)


Quero



Sim quero…
Quero amar-te ao luar, no meio de estrelas a bailar
Pode ser num leve toque, um roçar de pele, um tocar de alma
Que me traga a certeza, que as fábulas de encantar existem
Que as vontades subsistem
Envoltas em cetim suave, de um branco cristalino
Que me traga as certezas nas cordas de um violino
E me diga, podes rir podes chorar, sonhar, até amar
Ao cair das primeiras chuvas de Março
Eu e tu enlaçados
Embrenhados no cheiro a terra molhada, terra fértil, abençoada
Quero amar-te lá longe onde nos levar aquela estrada
Aquela por onde caminham os desejos, simples e puros
Suaves como os realejos, que levam a musica de terra em terra
Estranha quimera essa, que carrego no coração
De que um dia, um só dia, nessa imensidão
Sentirei o toque da tua mão, o bater do teu coração
Mergulharei de cabeça, nesse mar de sabores
Algo doces semitrincados, os beijos dos namorados
Tu e eu caminharemos enlaçados
Quem sabe, mesmo à beira de uma ravina, não importa
Somos loucos, estamos apaixonados, corremos o risco
Mas vivemos esse exacto momento, como se fosse o primeiro
De uma existência, onde a vida termina a seguir
Penso em ti
Vejo-te a rir, desta minha ilusão desmedida
De que um dia, a tua, a minha vida se juntem numa só guarida.
***
(Antónia Ruivo)


Definição de poema



É algo que sai de dentro
Que resume tudo à volta de um centro

É tempo fora do tempo
Rebento que se mostra ao relento
Tentando nascer e crescer do chão

É mandar-te uma carta em branco
Para que te escrevas nela
E ma devolvas com o teu perfume

É ouvir um reflexo
Do teu e do meu sexo
Escrito sem complexos
Em trovas sem nexo

É chegar um dia perto do mar cristalino
Todo nu e transparente
E mergulhar todo ágil menino
Atrás de um cardume de beijos
Que se vira de trás para a frente
Tão rápido como de repente

É fazer-me rápido e silente
Forte esguio e serpente
Ou outra coisa qualquer
Para te poder apanhar
E no fim deixar-te seres tu a vir

É um completo estado de consciência
Que resiste a "comos" e porquês
Para encavalitar um fazer sem ciência
No meu porque sim sem o teu porque não
***
(Valdevinoxis)

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Agri-doce



Nunca tinha desfolhado folhas de papel de arroz
nem sabia que de tão finas nunca se colavam .
Olhou-as , folhas plenas de figuras , chamavam-lhe letras ,
e essas, ela não conhecia .
Em lombadas vivas e largas
em papel pardo , adormecia de olhos abertos
ouvia sons e notas de ouvido, fugidas de cor .
Agri-doce
Começou a desfolhar folhas de papel de arroz , descoladas
o odor era adocicado, e inalava-o com uma força extrema .
Lânguida se deixou levar para mundos de bambu
arrozais que não secavam .
Sapatos de panos em pés de gueixas
Agri-doce
Tentava fixar os sentidos , o tacto era suave nas folhas
rude na capa .
Entre folhas de papel de arroz e capas de cartão…
misturava sentidos .
Agri-doce.
Docemente desfolhou folhas de papel de arroz ,
misturou tudo em arrozais húmidos.
Apurou o ouvido e ouviu sem som , folhas que se desfolhavam
leves por não pesarem
brancas
Imaculadas
Compressas em duras capas de cartão prensado
Pés atados de gueixa
repisavam folhas de papel de arroz
Agri- doce
***
(Teresa Maria Queiroz)

Omissão



Uma noviça, jovem de talento
Na arte do desenho e da pintura,
Pede à madre abadessa do convento
O favor de lhe ver uma figura.

Era a imitação escrupulosa
De um menino em tamanho natural
Que pertencia a soror Anna Rosa,
Tido em conta de um belo original!

A soro costumava, por decência
Tê-lo com uma tanga pequenina,
Que lhe encobria aquela saliência
Que distingue o menino da menina.

Mas uma tanga tão apropriada
No tecido e na cor, que na verdade
A gente olhava e não lhe via nada
Que desmentisse a naturalidade.

Era, pois, de esperar que a nossa artista,
Assim como no mais, naquela parte
Pintasse apenas o que tinha à vista
Que é o preceito e o primor da arte.

Vê a madre abadessa a maravilha,
E não se cansa de a louvar!
Mas lança A vista atenta àquele ponto: "Ai, filha,
Que falta essencial!... Pobre criança!

Que pena! O colorido, que beleza!
Pernas, braços e tudo, que perfeito!
Mas confesso... Confesso com tristeza...
Que enorme, que enormíssimo defeito!"
***
(João de Deus)