quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Quimera


Eu quis um violino no telhado
e uma arara exótica no banho.
Eu quis uma toalha de brocado
e um pavão real do meu tamanho.
Eu quis todos os cheiros do pecado
e toda a santidade que não tenho.
Eu quis uma pintura aos pés da cama
infinita de azul e perspectiva.
Eu quis ouvir ouvir a história de Mira Burana
na hora da orgia prometida.
Eu quis uma opulência de sultana
e a miséria amarga da mendiga.
Eu quis um vinho feito de medronho
de veneno, de beijos, de suspiros.
Eu quis a morte de viver dum sonho
eu quis a sorte de morrer dum tiro.
Eu quis chorar por ti durante o sono
eu quis ao acordar fugir contigo.
Mas tudo o que é excessivo é muito pouco.
Por isso fiquei só, com o meu corpo.
***
(Rosa Lobato de Faria)

Breve


Breve
o botão que foste
e o pudor de sê-lo.
Breve
o laço vermelho
dado no cabelo.
Breve
a flor que abriu
e o sol mudou.
Breve
tanto sonho findo
que a vida pisou.
***
(João José Cochofel)

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Suave


Sincera como as crianças
falas com o corpo todo.
Ainda quando descansas
há peixes vivos no lodo.
Recebem-me as tuas pernas,
durmo encostado ao teu braço,
tuas rudes frases ternas
lavam o rumo que faço.
Se neste Inverno me alargo
pelos caminhos adversos,
és tu o café amargo
que aquece o peito aos meus versos.
O teu sorriso perfeito,
mais leve que um voo de ave,
é o leito em que me deito,
suave, suave, suave, suave.
***
(Vasco Costa Matos)

De ser o som do amor tão enleado

De ser o som do amor tão enleado
em cristalinas veias,
em palavras suaves, em recantos
que são gestos bem vivos e são letras
de irradiante lume,
havia este destino que era um lábio
a arder na vastidão de descobrir
o lugar onde ardia este esperar-te.
***
(João Rui de Sousa)

domingo, 10 de outubro de 2010

Lugar nenhum


Chamaste-me
e eu chamei-te.
Encontrámo-nos os dois,
na meia-luz
e à meia-distância,
no ponto onde a luz não era luz
e as trevas não eram trevas,
mas tudo era luz
trevas,
no ponto onde nada era tudo
e tudo era nada,
e não havia tudo nem nada.
No ponto enfim,
onde eu não era eu
e tu não eras tu,
mas eu era tu
e tu eras eu...
Ali ficámos, suspensos no tempo,
em sublime e mútua adoração.
Chegado a este ponto,
contar-vos- ia, talvez, a minha história,
acaso houvesse história
para contar.
Mas é difícil existir história
quando não há princípio nem fim,
e quando o fim é o princípio
e o princípio é o fim
e entre ambos, princípio e fim,
nada mais existe senão
o fim e o princípio deles próprios...
Na verdade, nunca existimos,
ali naquele lugar sem nome,
até ao momento em que, cruelmente,
fomos arrastados de volta a nós mesmos.
Saímos. Saí.
E de fora, não vislumbrava mais
a porta de entrada,
nem conseguia situar o local,
recuperados que estavam os meus conceitos geográficos.
Conclui, pois, que o local não cabia
na Geografia...
Tentei depois, uma vez mais, regressar,
até acabar por entender
que não era a mim que cabia
a escolha do tempo ou do lugar,
mas eram eles que me escolhiam.
Vinham, sem anúncio prévio
ou aviso preparatório,
envolver-me nos seus braços.
Geralmente quando,
incauto e descuidado,
me tivesse esquecido
da imensidade das coisas
que não controlo...
***
(Luís Beirão)

sábado, 9 de outubro de 2010

Poema Suspirado


Algures, num momento de silêncio,
neste campo aberto que é a minha vida,
de noite,
sempre de noite - quando a magia acontece,
surge uma forma no vento
e nele,
um poema suspirado.
É certo que os poemas são mesmo efémeros
e as palavras um dia serão nada,
desaparecerão no esquecimento das eras
tal como as peles que vestimos
e os nomes que ostentamos.
O poema que é teu,
trazido pela brisa que na relva fresca te desenha,
um dia não será mais que outra coisa,
acompanhando-nos,
na impiedosa sucessão de formas e sabores
que provamos
e temos de largar.
*
Mas esse teu suspiro
e essa tua forma
e esse teu poema
e esse teu sentido (tão próximo do meu)
pintaram-se no quadro do horizonte
deste campo aberto que é a minha vida...
e de noite, sempre de noite - quando a magia acontece,
a realidade perceptível da ilusão do universo
colidirá com nossos fogos,
ardendo em uníssono,
dançando no mesmo vento
que agora desenha nós os dois,
que agora suspira o ar quente da cama embriagada,
que nesse momento se deixa entregar...
no mesmo campo aberto que é a nossa vida
e de noite - quando a magia acontece,
àquela pequena parte de um segundo
de uma eternidade passageira.
***
(Rui Diniz)

Por estas noites


Por estas noites frias e brumosas
É que melhor se pode amar, querida!
Nem uma estrela pálida, perdida
Entre a névoa, abre as pálpebras medrosas
Mas um perfume cálido de rosas
Corre a face da terra adormecida ...
E a névoa cresce, e, em grupos repartida,
Enche os ares de sombras vaporosas:
Sombras errantes, corpos nus, ardentes
Carnes lascivas ... um rumor vibrante
De atritos longos e de beijos quentes...
E os céus se estendem, palpitando, cheios
Da tépida brancura fulgurante
De um turbilhão de braços e de seios.
***
(Olavo Bilaque)

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

A palavra


A palavra é uma estátua submersa,
um leopardo que estremece em escuros bosques,
uma anémona sobre uma cabeleira.
Por vezes é uma estrela
que projecta a sua sombra sobre um torso.
Ei-la sem destino no clamor da noite,
cega e nua, mas vibrante de desejo
como uma magnólia molhada.
Rápida é a boca
que apenas aflora os raios de uma outra luz.
Toco-lhe os subtis tornozelos, os cabelos ardentes
e vejo uma água límpida numa concha marinha.
É sempre um corpo amante e fugídio
que canta num mar musical o sangue das vogais.
***
(António Ramos Rosa)

Fim


Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa,
Eu quero por força ir de burro.
***
(Mário de Sá-Carneiro)

Desnecessária explicação


Que importa a melodia,
se acaso aos outros dou,
com pávida alegria,
o pouco que me sou?

Que importa ao que me sabe
estar só no meu caminho,
se dentro de mim cabe
a glória de ir sózinho?

Que importa a vã ternura
das horas magoadas,
se ao meu redor perdura
o eco das passadas?

Que importa a solidão
e o não saber onde ir,
se tudo, ao coração,
nos fala de partir?
***
(Daniel Filipe)

Ver Claro


Toda a poesia é luminosa, até
a mais obscura.
O Leitor é que tem às vezes,
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
Outra vez e outra vez
e outra vez
e essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja de lá chegar.
***
(Eugénio de Andrade)