sábado, 30 de agosto de 2008

Metade

Que a força do medo que tenho
Não me impeça de ver o que anseio.
Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca
Porque metade de mim é o que eu grito
Mas a outra metade é silêncio.
*
Que a música que ouço ao longe
Seja linda ainda que tristeza
Que a mulher que eu amo seja pra sempre amada
Mesmo que distante
Porque metade de mim é partida
Mas a outra metade é saudade.
*
Que as palavras que falo
Não sejam ouvidas como prece e nem repetidas com fervor
Apenas respeitadas
Como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimentos
Porque metade de mim é o que ouço
Mas a outra metade é o que calo.
*
Que essa minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que eu mereço
E que essa tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada
Porque metade de mim é o que penso
Mas a outra metade é um vulcão.
*
Que o medo da solidão se afaste
E que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável
Que o espelho reflita em meu rosto um doce sorriso
Que eu me lembro ter dado na infância
Por que metade de mim é a lembrança do que fui
A outra metade eu não sei.
*
Que não seja preciso mais que uma simples alegria
Pra me fazer aquietar o espírito
E que o teu silêncio me fale cada vez mais
Porque metade de mim é abrigo
Mas a outra metade é cansaço.
*
Que a arte nos aponte uma resposta
Mesmo que ela não saiba
E que ninguém a tente complicar
Porque é preciso simplicidade pra fazê-la florescer
Porque metade de mim é a platéia
A outra metade é a canção.
*
E que a minha loucura seja perdoada
Porque metade de mim é amor
E a outra metade também.
(Oswaldo Montenegro)

Escrever um livro, criar um filho, plantar uma árvore


Escrevi um livro.
Quantos anos a sonhá-lo,
A rascunhá-lo nas mesas dos cafés,
A escrevê-lo nos intervalos do emprego,
A vivê-lo,
A sofrê-lo,
Na província, nas cidades...!
Criei um filho.
Tanta alegria no meu coração!
Só ainda não plantei uma árvore.
O frágil caule como protegê-lo?
Como não deixar que os bichos
Maculem as pequeninas folhas?
E como dialogar com uma árvore-menina?
Agora vai sendo tempo.
Os anos já me pesam.
Amanhã vou plantar uma árvore.
(Saúl Dias)

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Um pouco de céu


Só hoje senti
Que o rumo a seguir
Levava pra longe
Senti que este chão
Já não tinha espaço
Pra tudo o que foge
Não sei o motivo pra ir
Só sei que não posso ficar
Não sei o que vem a seguir
Mas quero procurar
*
E hoje deixei
De tentar erguer
Os planos de sempre
Aqueles que são
Pra outro amanhã
Que há-de ser diferente
Não quero levar o que dei
Talvez nem sequer o que é meu
É que hoje parece bastar
Um pouco de céu
Um pouco de céu
*
Só hoje esperei
Já sem desespero
Que a noite caísse
Nenhuma palavra
Foi hoje diferente
Do que já se disse
E há qualquer coisa a nascer
Bem dentro no fundo de mim
E há uma força a vencer
Qualquer outro fim
*
Não quero levar o que dei
Talvez nem sequer o que é meu
É que hoje parece bastar
Um pouco de céu
Um pouco de céu
(Mafalda Veiga)

A sombra sou eu


A minha sombra sou eu,
ela não me segue,
eu estou na minha sombra
e não vou em mim.
Sombra de mim que recebo a luz,
sombra atrelada ao que eu nasci,
distância imutável de minha sombra a mim,
toco-me e não me atinjo,
só sei do que seria
se de minha sombra chegasse a mim.
Passa-se tudo em seguir-me
e finjo que sou eu que sigo,
finjo que sou eu que vou
e não que me persigo.
Faço por confundir a minha sombra comigo:
estou sempre às portas da vida,
sempre lá, sempre às portas de mim!
(José de Almada Negreiros)

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Teus olhos entristecem


Teus olhos entristecem.
Nem ouves o que digo.
Dormem, sonham esquecem...
Não me ouves, e prossigo.
*
Digo o que já, de triste,
Te disse tanta vez...
Creio que nunca o ouviste
De tão tua que és.
*
Olhas-me de repente
De um distante impreciso
Com um olhar ausente.
Começas um sorriso.
*
Continuo a falar.
Continuas ouvindo
O que estás a pensar,
Já quase não sorrindo.
*
Até que neste ocioso
Sumir da tarde fútil,
Se esfolha silencioso
O teu sorriso inútil
(Fernando Pessoa)

Cada vez mais aqui


Queres lutar com quem?
Para doer aonde?
Para ser o quê?
Achas que ninguém vê?

E para quê fingir?
Porquê mentir e remar na dor?
Achas que ninguém vê?

Também eu queria parar...
Chorar
Cair... para me levantar,
para te puxar!
Te fazer sorrir...
Não voltar a cair!

Não me olhes assim!
Continuo a ser quem fui!
Cada vez mais aqui...
Não dances tão longe..!
...que eu já te vi

Também eu queria parar...
Chorar
Cair...
para me levantar,
para te puxar!
Te fazer sorrir...
Não voltar a fugir!
(Toranja)

terça-feira, 26 de agosto de 2008

O insecto


Das tuas ancas aos teus pés
quero fazer uma longa viagem.
Sou mais pequeno que um insecto.

Percorro estas colinas,
são da cor da aveia,
têm trilhos estreitos que só eu conheço,
centímetros queimados, pálidas perspectivas.

Há aqui um monte.
Nunca dele sairei.
Oh que musgo gigante!
E uma cratera, uma rosa de fogo humedecido!

Pelas tuas pernas desço tecendo uma espiral
ou adormecendo na viagem
e alcanço os teus joelhos duma dureza redonda
como os ásperos cumes dum claro continente.

Para teus pés resvalo
para as oito aberturas dos teus dedos agudos,
lentos, peninsulares,
e deles para o vazio do lençol branco caio,
procurando cego e faminto
teu contorno de vaso escaldante!
(Pablo Neruda)

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Às vezes


Às vezes choro,
Às vezes canto;
Outras namoro
Esquecendo o pranto.
*
Às vezes sinto,
Às vezes não;
Outras desminto
O coração.
*
Às vezes sonho,
Às vezes faço;
Outras - suponho -
Só embaraço.
*
Às vezes trago,
Às vezes levo;
Outras afago,
Quando me atrevo.
*
Às vezes vejo,
Às vezes não;
Outras desejo
Não ter razão.
*
Às vezes calo,
Às vezes digo;
Outras só falo
Se for comigo.
(Vitor Cintra)

As palavras que nunca escutarás

Ausente,
não entendes as palavras
que deixo espalhadas pelo tempo.
Se as soubesses escutar...
Estão vivas as palavras
Soltam-se dos trigais...
levadas na dança do vento.
Espalham-se no ar
com o marulhar fascinante das ondas.
Ancoradas, como anjos, nas cores do arco-íris
Todas se soltam da minha boca emudecida
por essa tua ausência.
O tempo se encarrega de as calar...
(Helena Domingues)

Viagens


Já vai alta a noite,
vejo o negro do céu,
deitado na areia,
o teu corpo e o meu.
Viajo com as mãos
por entre as montanhas e os rios,
e sinto nos meus lábios os teus doces e frios.
E voas sobre o mar,
com as asas que eu te dou,
e dizes-me a cantar: “É assim que eu sou”,
olhar para ti e ver o que eu vejo,
olhar-te nos olhos com olhares de desejo,
eu não tenho nada mais p’ra te dar,
esta vida são dois dias,
e um é para acordar,
das histórias de encantar.
Viagens que se perdem no tempo,
viagens sem princípio nem fim,
beijos entregues ao vento,
e amor em mares de cetim.
Gestos que riscam o ar,
e olhares que trazem solidão,
pedras e praias e o céu a bailar,
e os corpos que fogem do chão.
(Pedro Abrunhosa)

sábado, 23 de agosto de 2008

Quando digo


Quando digo que te amo
Sou intemporal
Sou de agora, de ontem,
De amanhã
Sou de sempre e tu
De sempre me és

Quando digo que te amo
É como uma brisa quente
Excessivamente quente
Que vem do deserto
Excessivamente boa
Excessivamente forte...

Quando digo que te amo
Fogem-me as palavras
E falam-te
Pela voz que do íntimo
Me sorvem

Quando digo que te amo
É desde um outrora
Tão agora
Tão sempre
Tão presente

Quando digo que te amo
Abre-se o céu
Em uivos de Sol
E és tu
Em luz de cor sarça
Agora prateada e divina,
És tu que me
Rasgas os véus
E me arranhas o azul

Quando digo que te amo
Absorvo-te com todos os sentidos,
Na fome de ti,
Porque quando digo que te amo
É agora
E sei, agora, que agora
És.

E quando te digo que te amo...
...é tão pouco!
É tão excessivamente pouco, afinal,
O que te digo...
...quando te digo que te amo...
(Olga Fonseca)

No sorriso, um sonho


Cada regresso teu à minha memória faz-me pensar que afinal nunca te foste embora,
que o tempo é a coisa mais relativa do mundo,
e a distância, nunca afasta as pessoas que nasceram para se encontrar.
*
Dás-me um abraço muito grande, apertado e um bocadinho ansioso,
mas logo se instala aquela calma só nossa, que nenhum de nós sabe de onde vem,
mas que nunca nos abandona sempre que estamos juntos.
O teu olhar inseguro, terno como o de um rapazinho com saudades de casa.
*
Sei que quando partires o olhar já será outro,
como se eu chegasse primeiro ao destino do que tu,
como se o que vives neste jardim da tua infância de filmes de 35mm,
como aqueles que os nossos pais faziam,
quando éramos pequenos nas férias.
*
O teu olhar chega primeiro mas o teu coração chega depois,
porque apesar do silêncio e da distância,
agora real outra vez,
ficas ainda por cá, espalhada pela minha cabeça,
e nada guarda memória mais certa e fiel do que a minha pele e a tua pele.
*
Por isso vais ficando,
no cheiro,
no eco da voz,
no sabor da boca,
no toque dos dedos nas costas da mão,
no olhar calado e fixo,
atento e preso,
muito mais eloquente que mil poemas de amor.
*
Gostava que a tua casa fosse o meu coração,
como se fosse um botão que encontrou o seu lugar.
A minha casa é onde ninguém faz barulho.
Não tenho portas blindadas,
nem uma estrutura à prova de sismos,
mas o meu sistema de aquecimento central é o melhor do Mundo
e acredita que nunca mais,
te irias sentir sozinha ou perdida.
Nos meus olhos é onde encontro o teu olhar quando já cá não estás.
*
(Andy)

Soneto

Se, para possuir o que me é dado,
Tudo perdi e eu próprio andei perdido,
Se, para ver o que hoje é realizado,
Cheguei a ser negado e combatido.

Se, para estar agora apaixonado,
Foi necessário andar desiludido,
Alegra-me sentir que fui odiado
Na certeza imortal de Ter vencido!

Porque, depois de tantas cicatrizes,
Só se encontra sabor apetecido
Àquilo que nos fez ser infelizes!

E assim cheguei à luz de um pensamento
De que afinal um roseiral florido
Vive de um triste e oculto movimento.
(António Botto)

As pessoas sensíveis



As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra


"Ganharás o pão com o suor do teu rosto"
Assim nos foi imposto
E não:
"Com o suor dos outros ganharás o pão".

Ó vendilhões do templo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito

Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem.
(Sophia de Mello Breyner Andressen)

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Poema


Lagos de lágrimas frias
que me gelam o coração,
que brotam na minha alma
e dançam na palma da mão.
Lágrimas de amargura,
lágrimas de dor,
lágrimas de tristeza pura,
que bailam com ardor.
Lágrimas que dançam,
rodopiam e caem...
de repente,
assim ,
como gente.
(Alba)

A Flor


Reina a flor prometida
Bem criada por autores
Sendo ela bem colhida
Enfeitando seus amores…
Este mundo foi criado
Implantado seu jardim
Fatalista foi o Abel
Pelo egoísmo de Caim…
Quem dera ser beija-flor
Voar em qualquer jardim
Meu amor é uma flor
Com doçura de jasmim…
*
A flor faz sorrir o seu amor! …
(Pinhal Dias)

Desespero de criar


Pena inerte na mão
dormência de papel
Calmarias da alma
ideias sem tropel
Vagamente um vazio
sem imaginação
Cansaço de ralhar
com a apática razão
Desespero de criar
expor credos e medos
Manifesto de amar
ou um mar de segredos
Finalmente um ruído
que sacode o torpor
É o sonho a fluir
é um riso sem rir
Anima-se o talento
e sai a criação
E acontece a poesia !
(Eugénio de Sá)

Os suspiros de um poeta perdido


Será que compensa a dedicação...
Tanta lágrima, tanto suor...
O sangue sem veia ao redor,
Perdido, a buscar o coração?
*
Será que ainda devo erguer a espada,
Mesmo estando a musa longe de mim?
Mesmo não havendo alguém para sorrir,
Nem se quer chorar com a dor cantada?
*
Talvez deva dar à alma o descanso
De poder até te amar, mas nem tanto...
De poder ser sem precisar estar.
*
Talvez deva encerrar a melodia,
Cerrar em silêncio os olhos da vida
E, por fim, o triste canto calar.
(Andrea Carvalho)

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Um homem na cidade


Agarro a madrugada
como se fosse uma criança
uma roseira entrelaçada
uma videira de esperança
tal qual o corpo da cidade
que manhã cedo ensaia a dança
de quem por força da vontade de trabalhar
nunca se cansa.
*
Vou pela rua desta lua
que no meu Tejo acende o cio
vou por Lisboa maré nua
que se deságua no Rossio.
*
Eu sou um homem na cidade
que manhã cedo acorda e canta
e por amar a liberdade
com a cidade se levanta.
*
Vou pela estrada deslumbrada
da lua cheia de Lisboa
até que a lua apaixonada
cresça na vela da canoa.
*
Sou a gaivota que derrota
todo o mau tempo no mar alto
eu sou o homem que transporta
a maré povo em sobressalto.
*
E quando agarro a madrugada
colho a manhã como uma flor
à beira mágoa desfolhada
um malmequer azul na cor.
*
O malmequer da liberdade
que bem me quer como ninguém
o malmequer desta cidade
que me quer bem
que me quer bem!
*
Nas minhas mãos a madrugada
abriu a flor de Abril também
a flor sem medo perfumada
com o aroma que o mar tem
flor de Lisboa bem amada
que mal me quis
que me quer bem!
(Ary dos Santos)

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Há palavras que nos beijam


Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.
Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.
(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)
Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.
(Alexandre O'Neill)

Poema do coração


Eu queria que o Amor
estivesse realmente no coração,
e também a Bondade, e a Sinceridade,
e tudo, e tudo o mais,
tudo estivesse realmente no coração.
Então poderia dizer-vos:
"Meus amados irmãos, falo-vos do coração",
ou então: "com o coração nas mãos".
Mas o meu coração é como o dos compêndios.
Tem duas válvulas (a tricúspida e a mitral)
e os seus compartimentos (duas aurículas e dois ventrículos).
O sangue ao circular contrai-os e distende-os
segundo a obrigação das leis dos movimentos.
Por vezes acontece ver-se um homem,
sem querer, com os lábios apertados,
e uma lâmina baça e agreste,
que endurece a luz dos olhos em bisel cortados.
Parece então que o coração estremece.
Mas não.
Sabe-se, e muito bem, com fundamento prático,
que esse vento que sopra e ateia os incêndios,
é coisa do simpático.
Vem tudo nos compêndios.
Então, meninos!
Vamos à lição!
Em quantas partes se divide o coração?

(António Gedeão)

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Jogos de Sombras

Sempre que me procuro e não me encontro em mim,
pois há pedaços do meu ser que andam dispersos
nas sombras do jardim,
nos silêncios da noite,
nas músicas do mar,
e sinto os olhos,
sob as pálpebras, imersos
nesta serena unção
a corola dos meus versos,
faz-me lembrar a alma que esteve em mim,
e que, um dia, perdi e vivo a procurar
nos silêncios da noite,
nas sombras do jardim,
na música do mar...
(Hermes Fontes)

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Nunca sei


Nunca sei como é que se pode achar um poente triste.
Só se é por um poente não ter uma madrugada.
Mas se ele é um poente, como é que ele havia de ser uma madrugada?
(Alberto Caeiro)

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Só o sorriso


Meu anjo, és tão belo quanto o sorriso
De uma doce criança que sonha em paz...
Majestoso como o sol que se faz
Surgir por entre as montanhas, conciso.
*
És tão puro que me torno imunda, mas
Teu brilho me faz esquecer a dor,
Mesmo os fantasmas, o verme que sou...
Os perigos que um toque meu te traz
*
Não quero nada além do que mereço
Não peço coração, nem mesmo abraço,
Nem tua mão nem mesmo teu doce amparo...
*
Para apanhar um novo sonho ao vento
Para enfrentar o tortuoso horizonte,
Basta-me ver o sorriso que escondes.
*
(Andrea Carvalho)

domingo, 3 de agosto de 2008

Como eu não possuo


Olho em volta de mim. Todos possuem ---
Um afecto, um sorriso ou um abraço.
Só para mim as ânsias se diluem
E não possuo mesmo quando enlaço.
*
Roça por mim, em longe, a teoria
Dos espasmos golfados ruivamente;
São êxtases da cor que eu fremiria,
Mas a minhalma pára e não os sente!
*
Quero sentir. Não sei... perco-me todo...
Não posso afeiçoar-me nem ser eu:
Falta-me egoísmo para ascender ao céu,
Falta-me unção pra me afundar no lodo.
*
Não sou amigo de ninguém.
Pra o ser Forçoso me era antes possuir
Quem eu estimasse --- ou homem ou mulher,
E eu não logro nunca possuir!...
*
Castrado de alma e sem saber fixar-me,
Tarde a tarde na minha dor me afundo...
Serei um emigrado doutro mundo
Que nem na minha dor posso encontrar-me?...
*
Como eu desejo a que ali vai na rua,
Tão ágil, tão agreste, tão de amor...
Como eu quisera emaranhá-la nua,
Bebê-la em espasmos de harmonia e cor!...
*
Desejo errado... Se a tivera um dia,
Toda sem véus, a carne estilizada
Sob o meu corpo arfando transbordada,
Nem mesmo assim --- ó ânsia! --- eu a teria...
*
Eu vibraria só agonizante
Sobre o seu corpo de êxtases doirados,
Se fosse aqueles seios transtornados,
Se fosse aquele sexo aglutinante...
*
De embate ao meu amor todo me ruo,
E vejo-me em destroço até vencendo:
É que eu teria só, sentindo e sendo
Aquilo que estrebucho e não possuo.
*
(Mário de Sá Carneiro)