sábado, 31 de outubro de 2009

A Flor Que És


A flor que és, não a que dás, eu quero.
Porque me negas o que te não peço.
Tempo há para negares
Depois de teres dado.
Flor, sê-me flor!
Se te colher avaro
A mão da infausta esfinge,
tu perere Sombra errarás absurda,
Buscando o que não deste.
***

(Ricardo Reis)

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Sonho e não realidade!


Quando estou sozinha
Eu canto danço, eu choro
Sob o peso do pranto eu me curvo
Sob o peso da tristeza
Eu me levanto
Sob o peso das lembranças felizes
Eu rodopio e danço
*
De olhos fechados,
a felicidade me chega
Bailo e flutuo com uma pena no ar
Nos braços invisíveis me aconchego
Sinto seus lábios me beijar
*
A alegria toma conta de mim
A realidade não quero lembrar
Dançando, dançando em um belo salão
Eu continuo a sonhar
*
De repente e lentamente de repente
Vejo que a música está a parar
O violino que tão romântico tocava
Parece que agora ele começar a chorar
*
Abro os olhos acordando medrosa
Vejo o chão como a me olhar
Chega a minha realidade
E vejo que curvada continuo
A chorar...
***
(Rita Maria Medeiros de Almeida)

Sintonia


Na superfície do meu corpo
palmilhada pelos teus dedos
reluzem cristalinos ainda
os sinais de tuas mãos
que são de sal e suor
*
Das paredes e dos móveis
e até dos espaços vazios,
nos lugares por onde andamos,
na retina, e na memória
ressurge a tua presença.
*
E esse estares em mim
é o tempo da colheita
o tempo de tudo ter,
é o banquete da vida
que nos devolve ao principio
de sentir que tudo volta
a ser na sua inteireza.
*
E nesse estado de graça
não busco fundo nem longe
o nirvana dos ascetas,
me basta a luz que emana
se sentir que a batida
no meu peito é igual
à pulsão que te anima.
***
(Ângela Santos)

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Retrato de uma princesa desconhecida


Para que ela tivesse um pescoço tão fino
Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule
Para que os seus olhos fossem tão frontais e limpos
Para que a sua espinha fosse tão direita
E ela usasse a cabeça tão erguida
Com uma tão simples claridade sobre a testa
Foram necessárias sucessivas gerações de escravos
De corpo dobrado e grossas mãos pacientes
Servindo sucessivas gerações de príncipes
Ainda um pouco toscos e grosseiros
Ávidos cruéis e fraudulentos
Foi um imenso desperdiçar de gente
Para que ela fosse aquela perfeição
Solitária exilada sem destino
***
(Sophia de Mello Breyner Andresen)

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Lágrimas tristes tomarão vingança

Se somente hora alguma em vós piedade
De tão longo tormento se sentira,
Amor sofrera, mal que eu me partira
De vossos olhos, minha saudade.
*
Apartei-me de vós, mas a vontade,
Que por o natural na alma vos tira,
Me faz crer que esta ausência é de mentira;
Porém venho a provar que é de verdade.
*
Ir-me-ei, Senhora; e neste apartamento
Lágrimas tristes tomarão vingança
Nos olhos de quem fostes mantimento.
*
Desta arte darei vida a meu tormento,
Que, enfim, cá me achará minha lembrança
Sepultado no vosso esquecimento.
***
(Luís Vaz de Camões)

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Serenata


Permita que eu feche os meus olhos,
pois é muito longe e tão tarde!
Pensei que era apenas demora,
e cantando pus-me a esperar-te.
*
Permite que agora emudeça:
que me conforme em ser sozinha.
Há uma doce luz no silencio,
e a dor é de origem divina.
*
Permite que eu volte o meu rosto
para um céu maior que este mundo,
e aprenda a ser dócil no sonho
como as estrelas no seu rumo.
***

(Cecília Meireles)

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Tenho na mão a rosa


Tenho na mão a rosa
Recebida como prova
De um amor do passado.
O tempo tirou-lhe o frescor,
As pétalas foram murchando
Depois que o amor terminou.
E para cada pétala que cai
Por entre os dedos da mão,
Rola-me dos olhos uma lágrima
Chuva que vem de minh’alma,
Para que ela reviva tão rubra
Como o fogo da antiga paixão.
Que seu perfume seja o sinal
Da volta do ausente
Depois de apagadas as marcas
Da hora da despedida.

***

(Maria Hilda de J. Alão)

Minha Desgraça


Minha desgraça, não, não é ser poeta,
Nem na terra de amor não ter um eco,
E meu anjo de Deus, o meu planeta
Tratar-me como trata-se um boneco...
Não é andar de cotovelos rotos,
Ter duro como pedra o travesseiro...
Eu sei... O mundo é um lodaçal perdido
Cujo sol (quem mo dera!) é o dinheiro...
Minha desgraça, ó cândida donzela,
O que faz que o meu peito assim blasfema,
É ter para escrever todo um poema,
E não ter um vintém para uma vela.
***
(António Álvares de Azevedo)

sábado, 24 de outubro de 2009

Húmido de beijos e de lágrimas

Húmido de beijos e de lágrimas,
ardor da terra com sabor a mar,
o teu corpo perdia-se no meu.
(Vontade de ser barco ou de cantar.)
***
(Eugénio de Andrade)

Recado


Ouve a luz
Como ainda tem o sabor das algas
Deixei-lhe escrito um recado
Das nuvens
Não te esqueças de ouvir a luz
Não te esqueças que ao sol pôr
Também eu morro
Não te esqueças
***
(Daniel Faria)

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Folhas soltas entre as flores



"Meto as mãos nos bolsos e trago-as carregadas de noites de amor: penso que isso basta para encontrar o mundo"
***
(A. Lobo Antunes)

Há uma música do Povo


Há uma musica do Povo
Nem sei dizer se é um Fado
Que ouvindo-a há um ritmo novo
No ser que tenho guardado…
Ouvindo-a sou quem seria
Se desejar fosse ser…
É uma simples melodia
Das que se aprendem a viver…
Mas é tão consoladora
A vaga e triste canção…
Que a minha alma já não chora
Nem eu tenho coração…
Sou uma emoção estrangeira,
Um erro de sonho ido…
Canto de qualquer maneira
E acabo com um sentido!
***
(Fernando Pessoa)

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

O meu olhar azul como o céu


O meu olhar azul como o céu
É calmo como a água ao sol
É assim, azul e calmo...
Porque não interroga nem se espanta...
Se eu interrogasse e me espantasse
Não nasciam flores novas nos prados
Nem mudaria qualquer coisa no sol
De modo a ele ficar mais belo...
(Mesmo se nascessem flores novas no prado
E se o sol mudasse para mais belo,
Eu sentiria menos flores no prado
E achava mais feio osol...
Porque tudo é como é e assim é que é
E eu aceito e nem agradeço,
Para não parecer que penso nisso...)
***
(Alberto Caeiro)

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Metamorfoses


Faça-se luz
neste mundo profano
que é o meu gabinete
de trabalho:
uma despensa.
*
As outras dividiam-se
por sótãos,
eu movo-me em despensa
com presunto e arroz,
livros e detergentes.
*
Que a luz penetre
no meu sótão
mental
do espaço curto
*
E as folhas de papel
que embalo docemente
transformem o presunto
em carruagem.
***
(Ana Luísa Amaral)

A Política do Dia


Hoje a vida tem o sorriso
dentífrico dos candidatos
e pelas ruas nos aponta
o céu, em múltiplos retratos.
*
céu não póstumo ou merecido
em cruel sala de espera
mas entre parêntesis de fogo
festiva véspera de guerra
*
Teor de montras a vida
com democrático humor
a todos deixa viver
a sua dose de flor
*
Publicitária a vida faz
sua campanha eleitoral
prato de vida apetitosa
temperada com humano sal
*
Televisor férias de verão
tira a vida do seu discurso
e um amor provençal
que nos domestica o urso
*
Popular a vida é toda
pétalas de apertos de mão.
Que meus versos me vinguem
de cair nesse alçapão
***
(Natália Correia)

domingo, 18 de outubro de 2009

Crepuscular


O teu olhar entra em meus olhos
Com tão perfeita obsessão
Que julgo ver a face tua
Pálida, ingénua, fria e nua
Inteiramente em minha mão
Há tantos olhos sonhadores
Dentro da luz crepuscular
E sinto além da realidade
No céu, nas luzes, na cidade
A obsessão do teu olhar
***
(Clark Guimarães)

A Flor do Amor

Germina lenta,
silenciosa,
semente branca.
Pura magia!...
Enquanto cresce,
suas raízes profundas
vão tomando conta
do coração...
Abrindo as pétalas,
perfuma a alma,
transforma tudo...
Abafa as mágoas,
seca o pranto.
Leva a paixão...
Deixa o encanto.
***
(Andra Valladares)

sábado, 17 de outubro de 2009

Gaivota


Se uma gaivota viesse
Trazer-me o céu de Lisboa
No desenho que fizesse,
Nesse céu onde o olhar
É uma asa que não voa,
Esmorece e cai no mar.
*
Que perfeito coração
No meu peito bateria,
Meu amor na tua mão,
Nessa mão onde cabia
Perfeito o meu coração.
*
Se um português marinheiro,
Dos sete mares andarilho,
Fosse quem sabe o primeiro
A contar-me o que inventasse,
Se um olhar de novo brilho
No meu olhar se enlaçasse.
*
Que perfeito coração
No meu peito bateria,
Meu amor na tua mão,
Nessa mão onde cabia
Perfeito o meu coração.
*
Se ao dizer adeus à vida
As aves todas do céu,
Me dessem na despedida
O teu olhar derradeiro,
Esse olhar que era só teu,
Amor que foste o primeiro.
*
Que perfeito coração
Morreria no meu peito,
Meu amor na tua mão,
Nessa mão onde perfeito
Bateu o meu coração.
***
(Alexandre O'Neill)

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Ilusão Perdida


Florida ilusão que em mim deixaste
a lentidão duma inquietude
vibrando em meu sentir tu juntaste
todos os sonhos da minha juventude.
Depois dum amargor tu afastaste-te,
e a princípio não percebi.
Tu partiras tal como chegaste uma tarde
para alentar meu coração
mergulhado na profundidade dum desencanto.
Depois perfumaste-te com meu pranto,
fiz-te doçura do meu coração,
agora tens aridez de nó, um novo desencanto,
árvore nua que amanhã se tornará germinação.
***
(Pablo Neruda)

Infinito


Vidas, passadas, presentes e futuras,
Dias, semanas, meses, anos, décadas,
Tudo gira no pêndulo do relógio vital, ciclos
Seres, estrelas, populações, constelações
*
Oh mundo belo e cruel,
Ao lado do mel, o fel,
À frente da nascente, o poente,
Atrás do monte, o horizonte.
*
Nos dilemas do contraditório,
Nos conflitos do necessário,
No pulsar deste coração libertário,
Nas armadilhas do tempo que se escoa, temerário
*
Viver no limite do finito
E contrastar com a amplitude
Das possibilidades do infinito
Ao alcance de uma tomada de atitude
*
No Deus jardineiro da sementeira do universo.
De vidas ceifadas na sanha guerreira dos perversos
Nas crianças brotam esperanças de outros tempos
Em gritos que ecoam do deserto aos campos,
do terço ao verso...
***
(AjAraújo)

terça-feira, 13 de outubro de 2009

As Minhas Asas


Eu tinha umas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Que, em me eu cansando da terra,
Batia-as, voava ao céu.
– Eram brancas, brancas, brancas,
Como as do anjo que mas deu:
Eu inocente como elas,
Por isso voava ao céu.
Veio a cobiça da terra.
Vinha para me tentar;
Por seus montes de tesouros
Minhas asas não quis dar.
– Veio a ambição, co'as grandezas,
Vinham para mas cortar
Davam-me poder e glória
Por nenhum preço as quis dar.
Porque as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Em me eu cansando da terra
Batia-as, voava ao céu.
Mas uma noite sem lua
Que eu contemplava as estrelas,
E já suspenso da terra,
Ia voar para elas,
– Deixei descair os olhos
Do céu alto e das estrelas...
Vi entre a névoa da terra,
Outra luz mais bela que elas.
E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Para a terra me pesavam,
Já não se erguiam ao céu.
Cegou-me essa luz funesta
De enfeitiçados amores...
Fatal amor, negra hora
Foi aquela hora de dores!
– Tudo perdi nessa hora
Que provei nos seus amores
O doce fel do deleite,
O acre prazer das dores.
E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu
Pena a pena me caíram...
Nunca mais voei ao céu.
***
(Almeida Garret)

Fugaz


Fugaz passagem por uma paisagem,
lugar do onde, do ontem, do quando,
quantas palavras ficaram faltando
na boca cheia de imagens.
o outro é aquele que ficou à margem,
no espanto de um pronome,
no corpo de uma brisa suave;
o outro é como uma fome
pluma à deriva, à distância, ou quase.
estranho em sua própria viagem,
garrafa com uma mensagem,
olhar durando numa flor,
sem nome, secreta, selvagem.
Desterro, água bebida num trem,
peça incompleta, festa adiada, vertigem,
a cabeça sempre em alguém,
eu outro, eu todos, ninguém.
***
(Rodrigo Garcia Lopes)

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

O Verbo Flor


O verbo flor
é conjugável
por quase todas as pessoas
em certos tempos definidos.
a saber:
quase nunca no Outono
no Inverno quase não
quase sempre no Verão
e demais na Primavera
que no coração
poderá durar
e ser eterna.
quando o verbo conjugar:
quando eu flor
quando tu flores
quando ele flor
e você flor
quando nós
quando todo mundo flor.
***
(Renato Rocha)

sábado, 10 de outubro de 2009

A Vida Vivida


Quem sou eu senão um grande sonho obscuro
em face do Sonho
Senão uma grande angústia obscura
em face da Angústia
*
Quem sou eu senão a imponderável árvore
dentro da noite imóvel
E cujas presas remontam
ao mais triste fundo da terra?
*
De que venho senão da eterna caminhada de uma sombra
Que se destrói à presença das fortes claridades
Mas em cujo rastro indelével repousa a face do mistério
E cuja forma é prodigiosa treva informe?
*
Que destino é o meu senão o de assistir ao meu Destino
Rio que sou em busca do mar que me apavora
Alma que sou clamando o desfalecimento
Carne que sou no âmago inútil da prece?
*
O que é a mulher em mim
senão o Túmulo
O branco marco da minha rota peregrina
Aquela em cujos abraços vou caminhando para a morte
Mas em cujos braços somente tenho vida?
*
O que é o meu Amor, ai de mim,
senão a luz impossível
Senão a estrela parada num oceano de melancolia
O que me diz ele senão que é vã toda a palavra
Que não repousa no seio trágico do abismo?
*
O que é o meu Amor,
senão o meu desejo iluminado
O meu infinito desejo de ser o que sou acima de mim mesmo
O meu eterno partir da minha vontade enorme de ficar
Peregrino, peregrino de um instante, peregrino de todos os instantes
A quem repondo senão a ecos, a soluços, a lamentos
De vozes que morrem no fundo do meu prazer ou do meu tédio
*
Qual é o meu ideal senão fazer do céu poderoso a Língua
Da nuvem a Palavra imortal cheia de segredo
E do fundo do inferno delirantemente proclamá-los
Em Poesia que se derrame como sol ou como chuva?
*
O que é o meu ideal senão o Supremo Impossível
Aquele que é, só ele, o meu cuidado e o meu anelo
O que é ele em mim senão o meu desejo de encontra-lo
E o encontrando, o meu medo de não o reconhecer?
*
O que sou eu senão ele, o Deus em sofrimento
o temor imperceptível na voz portentosa do vento
O bater invisível de um coração no descampado...
Que sou eu senão Eu Mesmo em face de mim?
***
(Vinicius de Moraes)