sexta-feira, 21 de maio de 2010

servidão


não suporto os olhos.
longe de ti.
doem-me as têmporas
as aves do rio atravessam
cansadas
a luz que os peixes saquearam.
quero-te única
na vaga medonha
das lembranças
se me dissesses
que és um pouco mais feliz
por seres corpo e pele
do poema.
só os teus olhos escrevem
no meio desta servidão
a palavra dor.
olhos tão ausentes
como uma carta
extraviada
que nunca chega.
sabes o que é a noite?
é um lugar imaginado
donde foges
sempre que me aproximo
dos teus lábios.
sabes o que é a morte?
é não existires
para além
de um instante
de ficção.
***
(Alberto Serra)

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Ofício de morrer


eu imagino assim a morte de pavese:
era um quarto de hotel em turim,
decerto um hotel modesto,
de uma ou duas estrelas,
se é que havia estrelas.
*
uma cama de pau, de verniz estalado,
rangendo de encontros fortuitos,
um colchão mole e húmido
com a cova no meio,
a do costume.
*
corria o mês de agosto com sua terra escura
encardindo as cortinas.
nada ia explodir naquele mês de agosto
àquela hora da tardede luz adocicada.
e alguém pusera três rosas de plástico
num solitário verde.
*
vejo como pavese entrou,
como pousou a maleta com indiferença,
dobrou alguns papéis
e despiu o casaco
(como nos filmes italianos da época).
depois foi aos lavabos
no corredor, ao fundo.
talvez tenha pensado
que esta vida é uma mijadela
ou que.
*
voltou ao quarto,
havia uma fétida alma
em tudo aquilo.
ele abriu a janela
e pediu a chamada telefónica.
a noite ia caindo sem palavras,
mesmo sem businas excessivas.
encheu um copo de água.
e esperou.
*
quando a campainha tocou,
havia muito pouco a dizer
e ele já o tinha dito:
já tinha dito quanto amar nos torna vulneráveis;
e míseros, inermes;
que é precisa humildade, não orgulho;
e parar de escrever;
e que dessa nudez é que morremos.
*
foi mais ou menos isto
– a nossa condição demasiado humana,
a voz humana, a frágil expressão disso tudo,
uma firmeza tensa.
«e até rapariguinhas o fizeram».
tinham nomes obscuros
e nenhum remorso lancinante,
ninguém pra falar delas.
*
a mais temida coisa é a coragem
do que parecia fácil:
tudo o que não se disse
carregado num acto de súbitas fronteiras.
foi mais ou menos isto.
não sei se ele a seguir
pôs do lado de fora um letreiro
com do not disturb ou coisa assim,
nem se tomou as pastilhas uma a uma,
ou se as contou.
*
não sei se o encontrou uma criada,
se a polícia veio logo,
se deixou uma carta ao seu melhor amigo,
se apagou a luz,
nem se pousou ao lado a carteira,
relógio, a esferográfica.
não sei se entrou na morte
como quem traz imagens pungentes na cabeça,
palavras marteladas de desejo,
ou como quem friamente está no avesso do sono
e vai calar-se e é justo.
*
não sei se foi assim, se existe uma outra verdade
imaginável ou vedada.
sei que ele tinha um olhar decidido,
alguma instigadora,
e quarenta e dois anos,
e sei que nessa altura há já poucas verdades
e nenhuma dimensão biográfica na morte.
já vem nas escrituras.
*
eu prefiro dizer que ele fechou a porta à chave
e sei que era viril a sua transparência.
***

(Vasco Graça Moura)

terça-feira, 18 de maio de 2010

Dobrou-se sobre ela


Dobrou-se sobre ela puxou-lhe fogo
Escancarou-lhe os olhos puxou-lhe fogo
Cerziu-se-lhe no peito puxou-lhe fogo
Tirou-lhe pó de cima puxou-lhe fogo
Sentiu-se tão pesado puxou-lhe fogo
Cobriu-a de ar; destapou-lhe a carne; mordeu.

Era fim de tarde era depressa era comprido
Verteu palavras tenras até já não ter voz
Chorou, soletrou-lhe o corpo membro a membro
E foi no soalho a solidão de a desventrar
Tremeu tremeu puxou-lhe fogo

E ela ardeu.
***
(Manuel Cintra)

Breve


Breve
o botão que foste
e o pudor de sê-lo.
Breve
o laço vermelho
dado no cabelo.
Breve
a flor que abriu
e o sol mudou.
Breve
tanto sonho findo
que a vida pisou.
***
(João José Cochofel)

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Príncipe


Príncipe:
Era de noite quando eu bati à tua porta
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e não me conheceste.
Era de noite
são mil e umas
as noites em que bato à tua porta
e tu vens abrir
e não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.
Contudo
quando eu batia à tua porta
e tu vieste abrir
os teus olhos de repente
viram-me
pela primeira vez
como sempre de cada vez é a primeira
a derradeira
instância do momento de eu surgir
e tu veres-me.
Era de noite quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
e viste-me
como um náufrago sussurrando qualquer coisa
que ninguém compreendeu.
Mas era de noite
e por isso
tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te
na escuridão da tua casa.
Ah era de noite
e de súbito tudo era apenas
lábios pálpebras intumescências
cobrindo o corpo de flutuantes volteios
de palpitações trémulas adejando pelo rosto.
Beijava os teus olhos por dentro
beijava os teus olhos pensados
beijava-te pensando
e estendia a mão sobre o meu pensamento
corria para ti
minha praia jamais alcançada
impossibilidade desejada
de apenas poder pensar-te.
São mil e umas
as noites em que não bato à tua porta
e vens abrir-me
***
(Ana Hatherly)

Acho que é isso...


tem os que passam
e tudo se passa
com passos já passados
tem os que partem
da pedra ao vidro
e tem, ainda bem,
os que deixam
a vaga impressão
de ter ficado
***
(Alice Ruiz)

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Sonho domado


Sei que é preciso sonhar.
*
Campo sem orvalho, seca
A frente de quem não sonha.
*
Quem não sonha o azul do vôo
perde seu poder de pássaro.
*
A realidade da relva
cresce em sonho no sereno
para não ser relva apenas,
mas a relva que se sonha.
*
Não vinga o sonho da folhas
e não crescer incrusta
dono sonho que se fez árvore.
*
Sonhar, mas sem deixar nunca
que o sol do sonho se arraste
pelas campinas do vento.
*
É sonhar, mas cavalgando
o sonho e inventando o chão
para o sonho florescer.
***
(Thiago de Mello)

Lua doida


Assim como a lua vela
No céu e dentro do arroio
Você também se revela
Na janela e no meu olho
Não sei dizer, na verdade,
Quem é que reflete quem
O céu sem lua é saudade
Sem você não sou ninguém
*
A tua imagem dentro do olhar
E a lua doida mudando no alto
São feitas cachoeira dando o salto
Enganam que são distantes e tão frias
Pra seduzir
Sabem ficar
Sabem partir
*
Teu coração lua cheia
Me diz cada vez que choro
Igual a esfinge na areia
Me decifra ou te devoro
Mas eu quedo enfeitiçada
Feito os peixes no vau do arroio
Com o teu perfil debruçado
Na janela do meu olho
***
(Aldir Blanco / Tavito)

sábado, 1 de maio de 2010

diz-me


diz-me. que não é de hoje. esse arrepio. diante do fogo proibido.
essa vontade. de sentir o abismo. abrir comportas ao desejo.
e uma bungavília a roçar-te os lábios.
diz-me. que há dentro de ti. uma paisagem incompleta.
uma cidade aprisionada à rotina. ou uma guarita de passáros. cercada.
queres o trigo. o pão. o amor ou a poesia.
nessa infância. que reluz. no teu olhar.
***
(Alberto Serra)

Indo...


O vermelho sangue
das rosas,
o ouro dos amores-perfeitos,
o rio manso
ondulando ao vento.
O enleamento.
Corações descompassados
à procura do infinito,
o momento,
o carinho,
a pertença.
A resguardar a vida,
os segredos,
numa companhia esquiva
onde o pensamento
está longe
e no corpo o desejo.
Posse sem entrega
no frágil limiar
do silêncio
e no calor de um beijo...
***
(Helena Guimarães)