sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Dilúvio de chamas



Desejo-te única como
a palavra:
fogo que um verso procura
deter:
nas mãos a água ilude
a boca e a sede pede mais:
nos lábios a pérola cai
do orvalho todas as manhãs: a pétala
o corpo adorna o poema
veemente:
dilúvio de chamas
prestes a barca
urgente do azul desmedido
***
(David Rodrigues)

Certeza


Se te falo é para melhor te ouvir
Se te ouço estou certo de ter compreendido
*
Se sorris é para melhor me invadir
Alcanço o mundo inteiro se me sorris
*
Se me uno a ti é para me continuar
Se vivermos tudo será como gostamos
*
Se eu te deixo recordar-nos-emos
E ao deixar-nos voltaremos a reencontrar-nos.
***

(Paul Éluard)

Amor violeta

O amor me fere é debaixo do braço,
de um vão entre as costelas.
Atinge meu coração é por esta via inclinada.
Eu ponho o amor no pilão com cinza
e grão de roxo e soco. Macero ele,
faço dele cata plasma
e ponho sobre a ferida.
***
(Adélia Prado)

Amar por amar não posso

Amar por amar não posso.
Amar por amar não sei.
Amar por amar não posso.
Amo aquilo só que é nosso
Amando à margem da lei.
*
Amar por amar não posso
Amar por amar não sei.
*
Ninguém me faça perguntas!
Trago o coração já frio…
Ninguém me faça perguntas,
Que as minhas lágrimas juntas
Davam para encher um rio!
*
As minhas lágrimas juntas
Davam para encher um rio!

(Pedro Homem de Mello)

Aprendamos, amor, com estes montes

Aprendamos, amor, com estes montes
Que, tão longe do mar, sabem o jeito
De banhar no azul dos horizontes.
*
Façamos o que é certo e de direito:
Dos desejos ocultos outras fontes
E desçamos ao mar do nosso leito.

(José Saramago)

A palavra que desnudo

 
Entre a asa e o voo
nos trocámos
como a doçura e o fruto
nos unimos
num mesmo corpo de cinza
nos consumimos
e por isso
quando te recordo
percorro a imperceptível
fronteira do meu corpo
e sangro
nos teus flancos doloridos
Tu és o encoberto lado
da palavra que desnudo
***
(Mia Couto)

A mulher feliz

 
Está de pé sobre as brancas dunas. As ondas conduziram-na
e os ventos empurraram-na, está ali, na perfeição redonda
da oferenda. E como que adormece no esplendor sereno.
Diz luz porque diz agora e és tu e sou eu, num círculo
Só. Está embriagada de ar como uma forte lâmpada
*
É uma área de equilíbrio, de movimentos flexíveis,
um repouso incendiado, a vitória de uma pedra.
Abrem-se fundas águas e um novo fogo aparece.
Que lentas são as folhas largas e as areias!
Que denso é este corpo, esta lua de argila!
*
Nua como uma pedra ardente, mais do que uma promessa
fulgurante, a amorosa presença de uma mulher feliz.
Nela dormem os pássaros, dormem os nomes puros.
Agora crepita a noite, as línguas que circulam.
Crescem, crescem os músculos da mais intima distância.
***
(António Ramos Rosa)