sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Além da Terra, além do Céu



Além da Terra, além do Céu,

no trampolim do sem-fim das estrelas,

no rastro dos astros,

na magnólia das nebulosas.

Além, muito além do sistema solar,

até onde alcançam o pensamento e o coração,

vamos!

vamos conjugar

o verbo fundamental essencial,

o verbo transcendente, acima das gramáticas

e do medo e da moeda e da política,

o verbo sempreamar,

o verbo pluriamar,

razão de ser e de viver.
***
(Carlos Drummond de Andrade)

Um dia virei



Um dia virei
colado a um verso,
embrulhado numa folha,
dobrado a um canto,

para que os teus lábios
me ciciem, os teus olhos
me beijem
e eu não saiba
e eu não sinta.
***
(Albano da Silva)

Beijo


meus olhos nos teus

teus olhos nos meus

e mais ninguém junto a nós

nem Deus
***
(Vieira da Silva)

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Húmido de beijos e de lágrimas



Húmido de beijos e de lágrimas,

ardor da terra com sabor a mar,

o teu corpo perdia-se no meu.

(Vontade de ser barco ou de cantar.)
***
(Eugénio de Andrade)


(Porque hoje é um dia especial entendi que mereço um poema especial do meu poeta favorito para assinalar esta data. Escolhi este, mas podia ser qualquer um porque toda a sua obra é perfeita e bela.)

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Boas Festas

Votos de um Natal muito feliz e de um próspero 2012 para todos que visitam este jardim, muito em especial para os que se tornaram seguidores e o meu obrigada a todos.

Boas Festas!

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Nesta curva



Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.
***
(Alexandre O'Neill)

Pensamento



ontem à noite
sonhei de corpo inteiro
-acordei com teu cheiro
***
(Alonso Alvarez)

Sacode as nuvens



Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos,

Sacode as aves que te levam o olhar.

Sacode os sonhos mais pesados do que as pedras.

Porque eu cheguei e é tempo de me veres,

Mesmo que os meus gestos te trespassem

De solidão e tu caias em poeira,

Mesmo que a minha voz queime o ar que respiras

E os teus olhos nunca mais possam olhar.
***
(Sophia de Mello Breyner Andresen)

Estudo de nu



Essa linha que nasce nos teus ombros,
Que se prolonga em braço, depois mão,
Esses círculos tangentes, geminados,
Cujo centro em cones se resolve,
Agudamente erguidos para os lábios
Que dos teus se desprenderam, ansiosos.

Essas duas parábolas que te apertam
No quebrar onduloso da cintura,
As calipígias ciclóides sobrepostas
Ao risco das colunas invertidas:
Tépidas coxas de linhas envolventes,
Contornada espiral que não se extingue.

Essa curva quase nada que desenha
No teu ventre um arco repousado,
Esse triângulo de treva cintilante,
Caminho e selo da porta do teu corpo,
Onde o estudo de nu que vou fazendo
Se transforma no quadro terminado.
***
(José Saramago)

Amanhã


Estar contigo ao acordar, ver como
se abrem as tuas pálpebras, cortinas
corridas sobre o sonho, sacudir dos
teus lábios o silêncio da noite para
que um primeiro riso me traga o dia:

assim, amor, reconheço a vida que
entra contigo pela casa, escancara
janelas e portas, deixa ouvir os pássaros
e o vento fresco da manhã, até que voltas
para junto de mim, e tudo recomeça.
***
(Nuno Júdice)

Cântico



Num impudor de estátua ou de vencida,
Coxas abertas, sem defesa…, nua
Ante a minha vigília, a noite, e a lua,
Ela, agora, descansa, adormecida.

Dos seus mamilos roxo-azuis, em ferida,
Meu olhar doce desce aonde o sexo estua.
Choro… e porquê? Meu sonho, irreal, flutua
Sobre funduras e confins da vida.

Minhas lágrimas caem-lhe nos peitos…,
Enquanto o luar a nimba, inerte, gasta
Da ternura feroz do meu amplexo.

Cantam-me as veias poemas nunca feitos…
E eu pouso a boca, religiosa e casta,
Sobre a flor esmagada do seu sexo.
***
(José Régio)

Despedida



Alguns amores mesmo sendo intensos,

São carregados de fragilidade.

Como se o Adeus viesse abanar lenços

Mostrando enfim que tudo é efemeridade.

*

E os sentimentos, claros, fortes, densos

Duvidam que aquilo seja verdade

Enquanto os amantes ficam ali propensos

A discutir o que é ilusão, o que é realidade.

*

Mas que bom que nada disso fosse assim.

E que cada dia fosse sempre um recomeço

E que jamais houvesse a palavra fim.

*

E os dois se lembrassem que é fugaz a vida

Pois amor nenhum sabe ao certo o preço.

O preço que se cobra uma despedida.
***
(Jenário de Fátima)

Presídio



Nem todo o corpo é carne … Não, nem todo,
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco …?

E o ventre, inconsistente como o lodo? …
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor … Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo …

É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio

vulto da Primavera em pleno Outono …
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!
***
(David Mourão-Ferreira)

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Rodopio



Volteiam dentro de mim,
Em rodopio, em novelos,
Milagres, uivos, castelos,
Forcas de luz, pesadelos,
Altas torres de marfim.

Ascendem hélices, rastros...
Mais longe coam-me sois;
Há promontórios, farois,
Upam-se estátuas de herois,
Ondeiam lanças e mastros.

Zebram-se armadas de côr,
Singram cortejos de luz,
Ruem-se braços de cruz,
E um espelho reproduz,
Em treva, todo o esplendor...

Cristais retinem de medo,
Precipitam-se estilhaços,
Chovem garras, manchas, laços...
Planos, quebras e espaços
Vertiginam em segrêdo.

Luas de oiro se embebedam,
Rainhas desfolham lírios;
Contorcionam-se círios,
Enclavinham-se delírios.
Listas de som enveredam...

Virgulam-se aspas em vozes,
Letras de fogo e punhais;
Há missas e bacanais,
Execuções capitais,
Regressos, apoteoses.

Silvam madeixas ondeantes,
Pungem lábios esmagados,
Há corpos emaranhados,
Seios mordidos, golfados,
Sexos mortos de anseantes...

(Há incenso de esponsais,
Há mãos brancas e sagradas,
Há velhas cartas rasgadas,
Há pobres coisas guardadas -
Um lenço, fitas, dedais...)

Há elmos, troféus, mortalhas,
Emanações fugidias,
Referências, nostalgias,
Ruínas de melodias,
Vertigens, erros e falhas.

Há vislumbres de não-ser,
Rangem, de vago, neblinas;
Fulcram-se poços e minas,
Meandros, paúes, ravinas
Que não ouso percorrer...

Há vácuos, há bolhas de ar,
Perfumes de longes ilhas,
Amarras, lemes e quilhas -
Tantas, tantas maravilhas
Que se não podem sonhar!...
***
(Mário de Sá-Carneiro)

A luz que vem das pedras



A luz que vem das pedras, do íntimo da pedra,
tu a colhes, mulher, a distribuis
tão generosa e à janela do mundo.
O sal do mar percorre a tua língua;
não são de mais em ti as coisas mais.
Melhor que tudo, o voo dos insectos,
o ritmo nocturno do girar dos bichos,
a chave do momento em que começa o canto
da ave ou da cigarra
— a mão que tal comanda no mesmo gesto fere
a corda do que em ti faz acordar
os olhos densos de cada dia um só.
Quem está salvando nesta respiração
boca a boca real com o universo?
***
(Pedro Tamen)

A ti



Como o sol nasce do monte
E todo o vale alumia,
Assim no meu horizonte
Nasceu teu olhar, um dia.

Nessa manhã cor-de-rosa,
Que dos teus olhos saía,
Tua voz melodiosa
Foi a voz da cotovia.

E logo na minha mágoa,
Neste canteiro sem flor,
Brotou, qual nascente de água,
O teu amor, meu Amor!

Então fez sol deslumbrante
Nos dias da minha vida:
Já não era a luz distante,
Já não a fonte escondida.

Nuvens, tormentas e dores,
Que enchiam meu coração,
Tudo se cobriu de flores,
A esse divino clarão!

E à luz que os teus olhos deram,
Como faróis redentores,
Mundos no mundo nasceram,
Do amor brotaram amores.

Três aves no nosso ninho
O enchem de um fulgor sagrado:
Já não és o sol sozinho,
Fizeste o céu estrelado!

Deus te proteja e te guarde,
Minha Mulher, minha Irmã,
Ó minha Estrela da Tarde,
Minha Estrela da Manhã!
***
(Alberto Oliveira)

Retrato do herói



Herói é quem num muro branco inscreve
O fogo da palavra que o liberta:
Sangue do homem novo que diz povo
e morre devagar de morte certa.

Homem é quem anónimo por leve
lhe ser o nome próprio traz aberta
a alma à fome fechado o corpo ao breve
instante em que a denúncia fica alerta.

Herói é quem morrendo perfilado
Não é santo nem mártir nem soldado
Mas apenas por último indefeso.

Homem é quem tombando apavorado
dá o sangue ao futuro e fica ileso
pois lutando apagado morre aceso.
***
(Ary dos Santos)

Contemplo o que não vejo



Contemplo o que não vejo.
É tarde, é quase escuro.
E quanto em mim desejo
Está parado ante o muro.

Por cima o céu é grande;
Sinto árvores além;
Embora o vento abrande,
Há folhas em vaivém.

Tudo é do outro lado,
No que há e no que penso.
Nem há ramo agitado
Que o céu não seja imenso.

Confunde-se o que existe
Com o que durmo e sou.
Não sinto, não sou triste.
Mas triste é o que estou.
***
(Fernando Pessoa)

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Pai, a minha sombra és tu



a cadeira está vazia, um corpo ausente
não aquece a madeira que lhe dá forma

e não ouço o recado que me quiseste dar
nem a tua voz forte que grita meninos
na hora de acordar
ouço o teu abraço, no corredor em gaia
e os olhos molhados pela inusitada despedida

o sol foge
mas o crepúsculo desenha a sombra que
tenho colada aos pés
ou o espelho, coberto com a tua face

pai, digo-te
a minha sombra és tu
***
(Jorge Reis-Sá)

(Dedicado ao meu pai, com eterna saudade e amor.)

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

O anjo e o vitral


venha o teu anjo
que nos trespasse a alma
de palavras novas

venha o teu anjo
como raio que atravessa o vitral
e não o quebra
e o transfigura

venha o teu anjo
extirpar do corpo
o demónio da surdez e do mutismo
que não guarda a alma
nem o seu jardim canoro

não se tornem as palavras que dizemos
lama ou sapos,
mas evangelho,
alegria do mundo

venha o teu anjo
mostrar o túmulo vazio
de onde o Logos corre
e de onde outros corpos sacramentais
se formam

que do interminável léxico das coisas
a nossa voz te diga
e o nosso corpo te bendiga,
pela hora que passa
e o rosto acreditado
***
(José Augusto Mourão)

Miopia


Sempre que vejo
o que os meus olhos não queriam
ver
(mas que sabem ser verdade)
É sempre este doer.
Como se a minha sensibilidade
estivesse toda no olhar e ver.
Como se a minha revelação
apenas viesse inteira,
para além da fronteira
do que os meus olhos dão.

Sempre que vejo...
Porque me dói assim?
Porque se desprende em mim
essa mágoa-essência
de surpresa retardada?

A minha consciência
está míope e cansada.
***
(Fernanda Botelho)

Aprendiz na oficina da poesia



Não rimes.
Ou rima, se quiseres,
mas não violentes
a palavra.
Não busques ansioso,
qual amante inexperiente,
a palavra.

Espera antes
a sua vinda.

Música e rima
são acessórios dispensáveis:
O poema é outra coisa.

Deixa, pois
que as palavras acordem
na matriz
e caiam maduras.
Áridas ou frias,
secas e imperturbáveis,
orvalhadas, humildes,
estropiadas até,
que sejam precisas,
prenhes de significado.

Espera as palavras.
Elas viajam misteriosas,
desconhecidas ainda,
elas germinam
em ti.

Caem. Juntam-se.
Doloridas, feias
sob o visco placentário,
deselegantes por vezes,
elas procuram-se
e organizam-se.

Juntas transcendem-se,
há algo de íntimo,
coeso e secreto
nelas.

O poema está aí.
***
(Rui Knopfli)

Timor



Talvez não seja suficientemente bom poeta
para uns versos, sequer, sobre Timor.
Timor, lembro-me como todos os outros do Ruy
Cinatti e de um mapa antigo que fecha um
dos seus livros sobre botânica timorense. O mapa, a negro,
traz nomes escritos a vermelho e regista o
avanço dos portugueses pelo interior da ilha.
Mostra-nos pequenas e altas casas de estacaria
que eu próprio desenhei num mapa de Timor
quando na escola nos ensinaram as províncias do
ultramar mais distante.
Timor era uma ilha que colori a amarelo. Havia
um enclave — Ocussi
Ambeno tinha sobre mim a sedução
das coisas mais que longínquas, perdidas. Ocussi e
Ambeno que soube resistir aos holandeses
nomes que persistem com as ilhas de Ataúro e Jaco
de mistura o lagarto-voador Draco, Solor
sândalo e o pico mais elevado das montanhas do
Ramelau. Coisas assim tão altas e distantes,
assim perdidas.

Lembro-me hoje, ainda e cada vez mais de Timor
do Timor de Ruy Cinatti, do Timor do irmão do Manuel
Gusmão que lá morreu e tinha os olhos cor
das gencianas azuis. Escrevi
o nome das povoações com uma estreita caneta
de tinta da china. É correcto que escreva sempre
no passado, porque poucos timorenses irão
sobreviver e o Ruy Cinatti volta a cruzar os meus
olhos. Sustenta aquela dança de paz e guerra
que bailou na noite em que nos conhecemos. «O corpo é
sempre o corpo de Cristo. Uma pequena superfície que
recebe todas as feridas do mundo. Qual-
quer corpo não é mais do que
corpo de Cristo.» Lembro-me dele na cama do hospital: a
dor, a rede de soro e sangue. À sua volta, os amigos. E
de todos dizia serem «maiores poetas». Talvez
fossem, sejam, e isso que importância tem?
Por entre ciganos e nevoeiro e tendas de pano
velho como se estivessem cobertas de lepra, vejo-
-o no distante dia em que me visitou
pelos começos de oitenta. Fotografia
que sofreu o abandono no fundo de uma gaveta. Vejo-
-o com aquele sorriso de leve troça a que prendia
verdades de profeta e junto a si o meu pai,
talvez da sua idade, talvez um pouco mais velho.
(A minha mãe não quis a prisão dessa imagem. Pensou
que eu não gostava dele. Não percebeu
que se fiquei inquieto com a sua chegada
foi porque supondo-o santo, um santo é
naturalmente uma coisa incómoda.) E lá estão a
Ana, o Manuel Rosa, a Ilda e aqueles a quem chamava
«os meus anjos-da-guarda». Há ainda umas crianças
com espadas de plástico. Não sei como apareceram,
mas os santos trazem muitas vezes consigo putti. E
ele disse, quando o levei
pelos caminhos da aldeia que perdem sobre o mar
até à casa onde vivera o Ruy Belo; pelas ruas
sob o nevoeiro dessa manhã de agosto, por
entre vendedores de quinquilharia, camionetas e
tractores embrulhados em serapiheiras e cordas,
onde pernoitavam camponeses e gente vinda dos bairros
periféricos de Lisboa, ele disse
«é a idade média. Chega nestes dias do verão,
um tempo de necessidade em que tudo apodrece.»

Senhores da palavra Timor,
memória,
canção em teia-de-lavor.

Quando fiz a quarta classe
Timor era uma língua de terra
cuja largura só dava para uma estrada
limitada pela água do mar.
Timor. Não sei o que possa escrever. Um
só verso que valha Timor. Só me lembro do Pedro
Brazão à porta do pavilhão de queimados de Santa
Maria: «Aqui, a vida é uma luta perpétua,
pequenos avanços contra um enorme desastre».
«Malhas que
o Império tece» por entre dedos de anéis e que ofereceram
um punho cerrado. Por isso, hoje, os timorenses que restam
olham o lugar vazio do nada-
dor-salvador, Portugal, alguém que julga ter já
vivido o suficiente para merecer o privilégio de recordar
e deixa que Timor desapareça do ecrã,
como quem cancela a última série
sobre o Império, reconhecido olhar de
antiga posse e de história
um silêncio povoado de ruídos no outro extremo da vida.
***
(João Miguel Fernandes Jorge)

Algumas e outras


algumas impedem
outras se ferem
sem razão

algumas se perdem
outras se erguem
sem chão

algumas se esquecem
outras se aquecem
na desilusão

algumas se entendem
outras se ofendem
na comparação

algumas nos seguem
outras conseguem
a solidão

algumas nos trazem
outras nos fazem
com discrição

algumas nos ardem
outras nos partem
sem compaixão

algumas surpreendem
outras nos prendem
sem intenção

algumas nos regem
outras nos rendem
uma discussão

algumas nos matam
outras nos amam
e outras não
***
(Gustavo Paes)

Sem você...



As estrelas que antes existiam aqui,
Se escondem por trás de minha esperança,
Que pretende ficar no lugar vazio onde está.
Talvez você nunca mais veja esses olhos brilharem outra vez,
Sua presença era responsável por essa aparência de meu olhar.
Após o seu último abraço,
A sensação de frio é intensa.
Consegue atravessar a garganta,
Onde as verdadeiras palavras de amor ficam presas
Sem chance de poderem se soltar.
Se tenho vontade de não continuar,
É porque a vida sem você ao meu lado parece tão assustadora.
Ao pensar que meus dias serão incompletos,
E meu futuro com você incerto,
Desejo dormir de tal modo que nunca acorde mais.
Acredito que quando o coração chega nessa situação,
É hora de dizer tudo que é importante,
Antes que o momento para isso, seja perdido:
Não existe ninguém no mundo capaz de me fazer sorrir, como você.
Nunca me senti tão desesperada para pelo menos, poder te ver.
Eu preciso de você.
Em manhãs...
Tardes...
E principalmente em noites,
Onde meus pensamentos são somente seus em todos os segundos,
Que parecem incrivelmente eternos quando são ressaltados por lágrimas constantes.
Como sobreviver sem suas palavras,
Sem seu toque,
Sem sua fisionomia ?
Como?
Eu não consigo encontrar resposta para essa pergunta,
Pois sei que não haverá nada capaz de me fazer esquecer...
O quanto te amo.
***
(Patrícia Vicente)

terça-feira, 25 de outubro de 2011

O tempo e o mar

Era um homem, a sombra de um homem e
caminhava para o mar.
Estas pegadas
são o obscuro rumor do tempo
e o tempo é uma vara oblíqua nas mãos de deus.
Que fará um homem com as dores do mundo,
com a última gota dos cálices ao lado da noite?
Reconstruir o teu rosto da amada
dar vida à sua silenciosa vida?
Matar,
no súbito ardil do Outono, os vestígios de uma
palavra secreta?
Há uma cidade profunda onde em profunda água
ela o esquece.
Quem para o mar caminha
leva consigo a maldição das ilhas com um
lírio quebrado, uma ânfora de pólen,
um adeus.

***

(José Agostinho Baptista)

O cão continua coxo

Nasce o dia de ideias políticas e de finanças
percebe a malta do leste ou a leste da malta se
contentam estatísticas e marinheiros próprios
do sábio descendente,

com isso se incute a perversão no
chefe da sua armadilha
no homem permitido ao morcego rotinando
os lagos
e os lembretes

afinal quem se recorda do dia em que a luz se fez luz ?
E que textos destrinçam os astronautas na visibilidade do espaço?

Não se lembram nem se afogam sem um limiar
e das finanças que a malta concebe
não se conjura o semblante de cada livro editado;

o cão continua coxo
o automóvel continua roxo
o ardil continua um mocho
e a estatística entende-se como própria dos encontros à beira-mar,
senta-se na areia
desenha para que o mar entenda o que se esvai

e a cada dia mais dias nascem e novas estatísticas
multiplicam outras tantas,
a malta do leste cada vez mais percebe
o leste da malta cada vez menos se inverte pela
tradição oral,

a língua condiciona o ardente ciúme
de quem fez lume por se lembrar
houve, afinal, um dia em que a luz se fez luz

mas era microscopicamente visível nos corpos distantes
e logo se condenaram as ampliações em marasmos
insignificantes de salões de chá

os astronautas dizem livros editados,
são flores cozinhadas pelo rubro medo do espaço
em que se plantam tanto finanças
como estatísticas, dicionários e solfejos arquejando
um abutre nos símbolos

o médium é agora o nome
onde a criança preenche o tédio civilizado
e nem do espaço é visível
a lembrança do lume ampliado

tudo é um livro editado
sem que isso fume a maior devoção
pois dentro de si amam os novíssimos amantes,
com claves de Fá inspiram com
abecedários expiram

e reluzir o oxigénio seria o novo circuito do receio mãos ao alto pés para dentro
- encoste-se à parede - é a nova fotografia
de quem procura esquecer o dicionário
o solfejo que nada semeia,

a simples reminiscência do nada que inventa,
inventa,
ofusca e anseia.

***

(Alexandre Moreira)

Ofício do costume


Do amor às palavras apenas resta costume.

Faz-se rito o mistério e um deus inútil

silencioso visita a paisagem devastada dos nossos sonhos.

Em espelhos a arder olhamos o nosso rosto

e a mão segura uma flor que é de gelo e cinza.

Se nesse entardecer um pássaro cego cantar,

que nos devolverá o seu canto se já a noite aguarda

para arrancar dos nossos olhos a luz última do mundo?

***

(Abelardo Linares)

Soneto

Nasci – logo a meus pais custou dinheiro

o baptismo, que Deus nos dá de graça.

Tive uso de razão – Perdi a graça –

dei-me ao rol chegou a páscoa – dei dinheiro.


Quis casar com uma moça – mais dinheiro.

Brinquei com ela – não brinquei de graça:

Que aos nove meses me custou a graça

Para o Mergulhador capa e dinheiro.


Morreu minha mulher – não achei graça

e menos graça no arbitral dinheiro

da oferta; que o prior não vai de graça.


Se o ser sacristão requer sempre dinheiro,

como cumprem com dar graças de graça

o que as graças nos vendem por dinheiro?

***

(Filinto Elísio)

tudo o que vês chega de longe

Tudo o que vês chega de longe: apenas um contorno

ou uma sombra que se desloca devagar. Há gestos

semelhantes a folhas que não caem. Principia agora

a luz a espalhar-se à nossa volta e a verdade torna-se

mais simples. É como um rosto que reconhece a sua idade.

***

(Fernando Guimarães)

Aniversário

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu era feliz e ninguém estava morto.

Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,

E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,

De ser inteligente para entre a família,

E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.

Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.

Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.


Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,

O que fui de coração e parentesco.

O que fui de serões de meia-província,

O que fui de amarem-me e eu ser menino,

O que fui - ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...

A que distância!

(Nem o acho... )

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!


O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,

Pondo grelado nas paredes...

O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),

O que eu sou hoje é terem vendido a casa,

É terem morrido todos,

É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...


No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...

Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!

Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,

Por uma viagem metafísica e carnal,

Com uma dualidade de eu para mim...

Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!


Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...

A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,

O aparador com muitas coisas - doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,

As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos. . .


Pára, meu coração!

Não penses! Deixa o pensar na cabeça!

Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!

Hoje já não faço anos.

Duro.

Somam-se-me dias.

Serei velho quando o for.

Mais nada.

Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...


O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

***

(Álvaro de Campos)

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Obscura luminosidade


As estrelas e os seus caminhos de luz
atravessam galáxias desconhecendo
outro conceito que o de brevidade
e passagem, sempre à frente até do fim
que as persiga, rasgando a
escuridão macia das noites eternas.
Nascem em tempos remotos
e são o mesmo tempo que foi
há muito, dizendo longinquamente
que o destino existe em cada gesto
decidido à sua luz.
***
(Luís Norte Lucas)

Água mole em pedra dura



Somos apenas o universo
como ele nos é. À noite cato estrelas
no teu corpo e as carícias que me vestem
são cúmplices da água.
Mastigamos o solo na erva que nos pasta
e espalhas sobre mim gotas de mar.
Com água em rocha, flexível e exacta,
entras na minha pele, maré a encher.
Só temos asas porque temos corpo.
Anjos de nós, é rés do solo que
a música nos despe nas alturas.
Tão ágeis como figuras do Kamasutra.
***
(Rosa Alice Branco)

A polpa do sabor



A polpa fresca, lâmina rápida que se crispa e salta viva.


E o dia baço, longo, ao fim do corpo: uma parede morta.


A cada passo, a pequena crista límpida, braço que flui
através das árvores, quase ao longo do céu.


Punho breve, inundado, que escreve o sabor nos dentes
do muro já surdo e frio na noite.
***
(António Ramos Rosa)

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Krinio


Apontem para o meu coração
agora é melhor para mim.
para vos tornar tudo mais fácil
cosi este pedaço de pano preto
mesmo no meio dos meus seios.

Não sei como será o vosso disparo
- pobres soldados imberbes – fizeram-vos levantar
de madrugada por minha causa
nunca empunhei uma espingarda – não sei

Vejo os vossos olhos muito abertos
- não podeis evitar tudo isto –
as vossas mãos querem tocar-me
antes de puxarem o gatilho – eu compreendo

Provavelmente ainda tendes as alcunhas
da adolescência
e quem sabe, talvez tenhamos brincado juntos nas ruas

Prossigam, poupem-me à geada da manhã
estou quase nua
vistam-me com os vossos tiros
sorriam para mim rapazes
deixem o meu corpo coberto pelo vosso olhar

Nunca um amante me fez isso
nem mesmo em sonhos.
***
(Rita Mpoumi-Pappas)
- Tradução de Maria de Lourdes Guimarães

O poeta em Lisboa



Quatro horas da tarde.
O poeta sai de casa com uma aranha nos cabelos.
Tem febre. Arde.
E a falta de cigarros faz-lhe os olhos mais belos.

Segue por esta, por aquela rua
sem pressa de chegar seja onde for.
Pára. Continua.
E olha a multidão, suavemente, com horror.

Entra no café.
Abre um livro fantástico, impossível.
Mas não lê.
Trabalha – numa música secreta, inaudível.

Pede um cigarro. Fuma.
Labaredas loucas saem-lhe da garganta.
Da bruma
espreita-o uma mulher nua, branca, branca.

Fuma mais. Outra vez.
E atira um braço decepado para a mesa.
Não pensa no fim do mês.
A noite é a sua única certeza.

Sai de novo para o mundo.
Fechada à chave a humanidade janta.
Livre, vagabundo
dói-lhe um sorriso nos lábios. Canta.

Sonâmbulo, magnífico
segue de esquina em esquina com um fantasma ao lado.
Um luar terrífico
vela o seu passo transtornado.

Seis da madrugada.
A luz do dia tenta apunhalá-lo de surpresa.
Defende-se à dentada
da vida proletária, aristocrática, burguesa.

Febre alta, violenta
e dois olhos terríveis, extraordinários, belos.
Fiel, atenta
a aranha leva-o para a cama arrastado pelos cabelos.
***
(António José Forte)

Mola de roupa



Conservei-me afastada do estendal
durante algum tempo.
Sofro de vertigens, por isso
intimidava-me olhar para baixo,
o pátio vazio, restos de flores secas.
Um prédio com dez andares
e ele tinha logo que viver no último,
tendo como horizonte o mar
de terraços e antenas parabólicas.

Quando, chegado com a roupa
da máquina de lavar,
pega em mim,
de suas mãos eu deslizo para o chão.
Apressado, em vez de me apanhar
imediatamente, escolhe outra;
no final, atira-me para o cesto
de verga.

Não é que seja particularmente ardilosa,
mas verdade seja dita, preferia ser
mola de rés-do-chão,
dessas que faça sol ou chuva
sempre prendem a roupa numa corda
estendida no pátio.
O destino quis-me feita de plástico,
com um coração inclinado à melancolia.
Tenho, no entanto, como divisa
antes quebrar que torcer.

Sonho com o dia em que nas mãos da criança
serei um comboio.
***
(Jorge Gomes Miranda)


(Obs: Este poema é sem sombra de dúvida um dos que mais me agradou descobrir nas muitas pesquisas que faço para florir este jardim. Adorei a simplicidade das palavras.)

As raparigas lá de casa


Como eu amei as raparigas lá de casa

discretas fabricantes da penumbra
guardavam o meu sono como se guardassem
o meu sonho
repetiam comigo as primeiras palavras
como se repetissem os meus versos
povoavam o silêncio da casa
anulando o chão os pés as portas por onde
saíam
deixando sempre um rastro de hortelã
traziam a manhã
cada manhã
o cheiro do pão fresco da humidade da terra
do leite acabado de ordenhar

(se voltassem a passar todas juntas agora
veríeis como ficava no ar o odor doce e materno
das manadas quando passam)

aproximavam-se as raparigas lá de casa
e eu escutava a inquieta maresia
dos seus corpos
umas vezes duros e frios como seixos
outras vezes tépidos como o interior dos frutos
no outono
penteavam-me
e as suas mãos eram leves e frescas como as folhas
na primavera

não me lembro da cor dos olhos quando olhava
os olhos das raparigas lá de casa
mas sei que era neles que se acendia
o sol
ou se agitava a superfície dos lagos
do jardim com lagos a que me levavam de mãos dadas
as raparigas lá de casa
que tinham namorados e com eles
traíam
a nossa indefinível cumplicidade

eu perdoava sempre e ainda agora perdoo
às raparigas lá de casa
porque sabia e sei que apenas o faziam
por ser esse o lado mau de sua inexplicável bondade
o vício da virtude da sua imensa ternura
da ternura inefável do meu primeiro amor
do meu amor pelas raparigas lá de casa
***
(Emanuel Félix)

Traço comum


descalço-me de sombras para chegar a ti

as linhas do meu rosto são claríssimas

nelas não vês o velho, a criança, o adulto

vês apenas o traço comum

que é onde eu procuro a tua mão

na transparência da minha palavra inteira
***
(Vasco Gato)

Amor e Medo


Quando eu te vejo e me desvio cauto
Da luz de fogo que te cerca, ó bela,
Contigo dizes, suspirando amores:
- "Meu Deus! que gelo, que frieza aquela!"
Como te enganas! meu amor, é chama
Que se alimenta no voraz segredo,
E se te fujo é que te adoro louco...
És bela - eu moço; tens amor, eu - medo...
Tenho medo de mim, de ti, de tudo,
Da luz, da sombra, do silêncio ou vozes.
Das folhas secas, do chorar das fontes,
Das horas longas a correr velozes.
O véu da noite me atormenta em dores
A luz da aurora me enternece os seios,
E ao vento fresco do cair das tardes,
Eu me estremece de cruéis receios.
É que esse vento que na várzea - ao longe,
Do colmo o fumo caprichoso ondeia,
Soprando um dia tornaria incêndio
A chama viva que teu riso ateia!
Ai! se abrasado crepitasse o cedro,
Cedendo ao raio que a tormenta envia:
Diz: - que seria da plantinha humilde,
Que à sombra dela tão feliz crescia?
A labareda que se enrosca ao tronco
Torrara a planta qual queimara o galho
E a pobre nunca reviver pudera.
Chovesse embora paternal orvalho!
Ai! se te visse no calor da sesta,
A mão tremente no calor das tuas,
Amarrotado o teu vestido branco,
Soltos cabelos nas espáduas nuas! ...
Ai! se eu te visse, Madalena pura,
Sobre o veludo reclinada a meio,
Olhos cerrados na volúpia doce,
Os braços frouxos - palpitante o seio!...
Ai! se eu te visse em languidez sublime,
Na face as rosas virginais do pejo,
Trêmula a fala, a protestar baixinho...
Vermelha a boca, soluçando um beijo!...
Diz: - que seria da pureza de anjo,
Das vestes alvas, do candor das asas?
Tu te queimaras, a pisar descalça,
Criança louca - sobre um chão de brasas!
No fogo vivo eu me abrasara inteiro!
Ébrio e sedento na fugaz vertigem,
Vil, machucara com meu dedo impuro
As pobres flores da grinalda virgem!
Vampiro infame, eu sorveria em beijos
Toda a inocência que teu lábio encerra,
E tu serias no lascivo abraço,
Anjo enlodado nos pauis da terra.
Depois... desperta no febril delírio,
- Olhos pisados - como um vão lamento,
Tu perguntaras: que é da minha coroa?...
Eu te diria: desfolhou-a o vento!...
Oh! não me chames coração de gelo!
Bem vês: traí-me no fatal segredo.
Se de ti fujo é que te adoro e muito!
És bela - eu moço; tens amor, eu - medo!...
***
(Casimiro de Abreu)