terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Feliz Aniversário (*)


Durante a noite viajei até ao cume mais alto da estrela polar.
É onde se encontram as flores mais frescas e luminosas jamais vistas pelo homem.
Comigo levei um bando de libelinhas, coordenado pelas fadas do mundo interior.
Disseram-me elas que esta é a forma mais terna de transpostar a verdadeira essência de um perfume, cuja pureza é sorvido pelo esvoaçar das suas asas...
Carregamento efectuado!
Pelo caminho ainda peguei num punhado de estrelas e moldei-as em jeito de caixinha...
Chegados ao meu jardim, a azáfama foi tremenda.
Todos vestidos a rigor preparavam a festança que se avizinha!
Na minha caixinha de estrelas coloquei duas tulipas brancas e pulverizei-as com o mais puro dos perfumes vertido pelas asas das libelinhas.
Os duendes bordavam um tapete de seda com letras multicolores...sorriam e catarolavam!
Fui ao lago das sereias buscar a mais linda e cristalina melodia e impregnei-a na caixinha...
Quando regressei ao vale, onde se situa o meu jardim, estava tudo pronto e sorridente.
Elevei a caixinha aos céus e uma espiral de luz desceu, abraçando-a num gesto terno e de muito carinho...
É hora e chegou o dia!
O tapete eleva-se...as letras irradiam uma luminosidade translúcida...
" Parabéns, Cristiana! "
Cerro a caixa e enlaço-a com a via láctea!...
Um anjo descerá e depositará em ti esta caixinha mágica...sempre que a abrires, escutarás a melodia das sereias, sentirás a dança das tulipas e inalarás o perfume que emanam...
Feliz aniversário!
***
(Nuno)
(*) Não é um poema, mas está recheado de poesia. Não foi escrito por um poeta, mas foi escrito por uma pessoa que me é querida, o que por si só, e se mais razão alguma não existisse, já justificaria deixá-lo aqui exposto.
É um texto lindíssimo e por isso mesmo nunca deixaria de publicar neste meu jardim.
Faço-o não por vaidade, embora me sinta muito lisongeada, mas sim porque merece este destaque.
Merece o texto e merece o autor. Obrigada, Nuno)

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Poesia de Natal


Chove. É dia de Natal.
Lá para o Norte é melhor:
Há a neve que faz mal,
E o frio que ainda é pior.
*
E toda a gente é contente
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente.
Antes isso que nevar.
*
Pois apesar de ser esse
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho o frio e Natal não.
*
Deixo sentir a quem a quadra
E o Natal a quem o fez,
Pois se escrevo ainda outra quadra
Fico gelado dos pés.
***
(Fernando Pessoa)
(Aproveito para desejar um Natal muito feliz a todas as pessoas que por aqui têm passado, muito em especial ao José Luís.)

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Tarde


A tarde trabalhava
sem rumor
no âmbito feliz das suas nuvens,
conjugava
cintilações e frémitos,
rimava
as ténues vibrações do mundo,
quando vi
o poema organizado nas alturas
reflectir-se aqui,
em ritmos, desenhos,
estruturas
duma sintaxe que produz
coisas aéreas como o vento e a luz.
***
(Carlos de Oliveira)

Cais


Nunca parti deste cais
e tenho o mundo na mão!
Para mim nunca é demais
responder sim
cinquenta vezes a cada não.
Por cada barco que me negou
cinquenta partem por mim
e o mar é plano e o céu azul sempre que vou!
Mundo pequeno para quem ficou...
***
(Manuel Lopes)

A minha solidão


A minha solidão
não é uma invenção
para enfeitar noites estreladas…

… Mas este querer arrancar a própria sombra do chão
e ir com ela pelas ruas de mãos dadas.

… Mas este sufocar entre coisas mortas
e pedras de frio
onde nem sequer há portas
para o calafrio.

… Mas este rir-me de repente
no poço das noites amarelas…
- única chama consciente
com boca nas estrelas.
… Mas este eterno Só-Um
(mesmo quando me queima a pele o teu suor)-
sem carne em comum
com o mundo em redor.

… Mas este haver entre mim e a vida
sempre uma sombra que me impede
de gozar na boca ressequida
o sabor da própria sede.

… Mas este sonho indeciso
de querer salvar o mundo
- e descobrir afinal que não piso
o mesmo chão do pobre e do vagabundo.

… Mas este saber que tudo me repele
no vento vestido de areia…
e até, quando a toco, a própria pele
me parece alheia…

Não. A minha solidão
Não é uma invenção
Para enfeitar o céu estrelado…

… mas este deitar-me de súbito a chorar no chão
e agarrar a terra para sentir um Corpo Vivo a meu lado.
***
(José Gomes Ferreira)

sábado, 19 de dezembro de 2009

Fuga


Aos ventos espalhei a cinza dos meus gestos.
Num desprezo de mim, fiz-me poeta,
traí os meus sonhos, enchendo vãos papéis
de traços sem sentido e talvez falsos.
Fui poeta como alguns se suicidam,
como outros partem sem destino certo.
Sonhei-me longe de tudo o que possuo
- longe de mim, longe de quem?-
afastado, sem contas a prestar...
Foi longo o meu engano.
Agora vejo
que nunca de mim eu me afastei...
***
(Adolfo Casais Monteiro)

Versos quase tristes



Trago no sangue o mistério
daquele resto de estrada
que não andei...
E era talvez ali
que eu ia ser feliz:
ali

que viriam as Fadas pra contar-me
os contos lindos das Princesas
e de Palácios
e de Florestas
que ficaram por contar;
ali que havia de abrir-se
o tal jardim
com flores que nunca morrem
ou, se morrem, há-de ser
na pujança da frescura
por medo de envelhecer...

Mas não passei além da curva...
O meu alento
já dobrou o joelho, desistiu.
E eu sei tão bem que há Glória que me chama
e que tudo que digo aqui, ou faço,
é só arremedar, adivinhar,
o que, pra lá da curva que não passo,
havia de fazer ou de dizer!

E eu sei tão bem
que sem tomar nas mãos a Glória apetecida
me não contento!...
- Por que é que tu és só pressentimento,
minha vida?
***
(Sebastião da Gama)

Reconhecimento à loucura


Já alguém sentiu a loucura
vestir de repente o nosso corpo?
Já.
E tomar a forma dos objectos?
Sim.
E acender relâmpagos no pensamento?
Também.
E às vezes parecer ser o fim?
Exactamente.
Como o cavalo do soneto de Ângelo de Lima?
Tal e qual.
E depois mostrar-nos o que há-de vir
muito melhor do que está?
E dar-nos a cheirar uma cor
que nos faz seguir viagem
sem paragem
nem resignação?
E sentirmo-nos empurrados pelos rins
na aula de descer abismos
e fazer dos abismos descidas de recreio
e covas de encher novidade?
E de uns fazer gigantes
e de outros alienados?
E fazer frente ao impossível
atrevidamente
e ganhar-Ihe, e ganhar-Ihe
a ponto do impossível ficar possível?
E quando tudo parece perfeito
poder-se ir ainda mais além?
E isto de desencantar vidas
aos que julgam que a vida é só uma?
E isto de haver sempre, ainda mais,
uma maneira pra tudo?
Tu só, loucura, és capaz de transformar o mundo
tantas vezes quantas sejam as necessárias
para olhos individuais
Só tu és capaz de fazer que tenham razão
tantas razões que hão-de viver juntas.
Tudo, excepto tu, é rotina peganhenta.
Só tu tens asas para dar
a quem tas vier buscar.
***
(José de Almada Negreiros)

Imprevisto corrigido


Se minto? Quantas vezes!
Mas em palavras.
Não nos meus olhos castanhos,
Nestas linhas atávicas da mão…
Se minto?... Minto, pois!
Mas nas orais palavras que vos digo,
Não nas que estão a sós comigo,
E em que enfim deixo de ser dois.
Não nas que entrego a músicas, miragens,
Alegorias, fábulas, mentiras,
Cadências, símbolos, imagens,
Ecos da minha e mil milhões de liras.
Se minto?... Minto!
É regra de viver.
Mas não quando, poeta, me desnudo,
E a mim me visto de inocência e a tudo.
Venha quem saiba ver!
Venha quem saiba ler!
***
(José Régio)

As palavras


Há palavras que são sombras de árvores
ou um bálsamo da terra,
um pressentimento de espuma,
um incêndio do tacto,
uma reverência ao desconhecido.
Amo as palavras que são às vezes sonâmbulos cavalos,
satélites de granito,
raparigas cegas no fundo das casas,
veias de uma estrela submarina.
Como não amá-las pela brisa
se são pétalas de um clamor silencioso
ou anjos sossegados dormindo sobre a terra
ou lúcidas e ébrias, majestosas e puras,
magníficas como um dorso recamado de estrelas,
intacta revelação de invioladas luas?
Desconfio das palavras, mas às vezes são leves, musicais
aves que planam sobre uma cidade branca,
ilhas mágicas, selados vasos, cordeiros recém-nascidos,
caravanas vermelhas, armadilhas de cristal,
amoroso tremor da matéria terrestre.
Como um boi nocturno das águas eu procuro
essas guitarras plantadas nas plantas
que através de eclipses e da distância
erguem uma árvore de música ou uma pirâmide
ou as lianas vivas que me defendem dos abismos.
Como estátuas de ar as palavras levantam-se
na harmonia delirante do nómada do deserto.
Quer sejam suspiros entre os arbustos ou sonâmbulas melodias
estão sempre à altura dos seus próprios desejos.
Quer o cérebro sangre ou a terra estremeça
o seu cerimonial é inesgotável, as suas relíquias vivas.
São abelhas ou astros que buscam alimento
nos ninhos de amêndoas ou nos espelhos da lua?
Amo as palavras, acredito nos seus cristais secretos,
nos seus cavalos subterrâneos, nos seus densos diamantes.
Escrevo-as com minucioso ardor entre nascentes e sombras,
sei que são anjos de argila, antiquíssmos arqueiros
que disparam as flechas de erva sobre estrelas vivas.
***
(António Ramos Rosa)

A pequena angústia


Mais perto de mim são as estrelas
neste jardim,
do que os homens
sentados a meu lado.
As estrelas brilham.
Os homens falam lá entre eles.
Não escutam o silêncio
os homens que falam
neste jardim.
As estrelas falam
perto de mim.
***

(Ruy Cinatti)

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Quase perfeito



Sabe bem ter-te por perto
Sabe bem tudo tão certo
Sabe bem quando te espero
Sabe bem beber quem quero
*
Quase que não chegava
A tempo de me deliciar
Quase que não chegava
A horas de te abraçar
Quase que não recebia
A prenda prometida
Quase que não devia
Existir tal companhia
*
Não me lembras o céu
Nem nada que se pareça
Não me lembras a lua
Nem nada que se escureça
Se um dia me sinto nua
Tomara que a terra estremeça
Que a minha boca na tua
Eu confesso não sai da cabeça
*
Se um beijo é quase perfeito
Perdidos num rio sem leito
Que dirá se o tempo nos der
O tempo a que temos direito
*
Se um dia um anjo fizer
A seta bater-te no peito
Se um dia o diabo quiser
Faremos o crime perfeito
***
(Miguel A. Majer)
Obs: Música cantada pelos Donna Maria

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

A sofreguidão de um instante


Tudo renegarei menos o afecto,
e trago um ceptro e uma coroa,
o primeiro de ferro, a segunda de urze,
para ser o rei efémero
desse amor único e breve
que se dilui em partidas
e se fragmenta em perguntas
iguais às das amantes
que a claridade atordoa e converte.
Deixa-me reinar em ti
o tempo apenas de um relâmpago
a incendiar a erva seca dos cumes.
E se tiver que montar guarda,
que seja em redor do teu sono,
num êxtase de lábios sobre a relva,
num delírio de beijos sobre o ventre,
num assombro de dedos sob a roupa.
Eu estava morto e não sabia, sabes,
que há um tempo dentro deste tempo
para renascermos com os corais
e sermos eternos na sofreguidão de um instante.
***
(José Jorge Letria)

Um outro tanto


Não sei como consigo
amar-te tanto
se querer-te assim na minha fantasia
é amar-te em mim
e não saber já quando
de querer-te mais eu vou morrer um dia
perseguir a paixão até ao fim é pouco
exijo tudo até perder-me
enquanto, e de um jeito tal que desconhecia,
poder amar-te ainda
um outro tanto.
***
(Maria Teresa Horta)

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Nascimento último



Como se não tivesse substância e de membros apagados.
Desejaria enrolar-me numa folha e dormir na sombra.
E germinar no sono, germinar na árvore.
Tudo acabaria na noite, lentamente, sob uma chuva densa.
Tudo acabaria pelo mais alto desejo num sorriso de nada.
No encontro e no abandono, na última nudez,
respiraria ao ritmo do vento, na relação mais viva.
Seria de novo o gérmen que fui, o rosto indivisível.
E ébrias as palavras diriam o vinho e a argila
e o repouso do ser no ser, os seus obscuros terraços.
Entre rumores e rios a morte perder-se-ia.
***
(António Ramos Rosa)

Vento

Hoje abandonei-me ao vento,
deixei-o passar pelos meus cabelos
e inalei o teu imenso alento.
Do meu corpo despojei as mágoas
e deixei-me enfeitiçar.
*
Sabia bem que estivesses aqui,
que me desses a mão e me abraçasses.
Sentavas-te a meu lado e sorrias.
Sorrias sempre que eu abrisse
os olhos do pestanejar lento.
*
Sabe-me bem a tua voz a ressuscitar
aos pulos este coração outrora demente.
Deixa-te estar pertinho do meu ouvido.
Deixa-te ficar pertinho do meu coração
enquanto ele te fizer sorrir.
*
Tu és tudo para mim...
***
(Dana Marte)

Angela Adonica



Hoje deitei-me junto a uma jovem pura
como se na margem de um oceano branco,
como se no centro de uma ardente estrela
de lento espaço.
*
Do seu olhar largamente verde
a luz caía como uma água seca,
em transparentes e profundos círculos
de fresca força.
*
Seu peito como um fogo de duas chamas
ardia em duas regiões levantado,
e num duplo rio chegava a seus pés,
grandes e claros.
*
Um clima de ouro madrugava apenas
as diurnas longitudes do seu corpo
enchendo-o de frutas extendidas
e oculto fogo.
***
(Pablo Neruda)

Estudo de nu


Essa linha que nasce nos teus ombros,
Que se prolonga em braço, depois mão,
Esses círculos tangentes, geminados,
Cujo centro em cones se resolve,
Agudamente erguidos para os lábios
Que dos teus se desprenderam, ansiosos.
*
Essas duas parábolas que te apertam
No quebrar onduloso da cintura,
As calipígias ciclóides sobrepostas
Ao risco das colunas invertidas:
Tépidas coxas de linhas envolventes,
Contornada espiral que não se extingue.
*
Essa curva quase nada que desenha
No teu ventre um arco repousado,
Esse triângulo de treva cintilante,
Caminho e selo da porta do teu corpo,
Onde o estudo de nu que vou fazendo
Se transforma no quadro terminado.
***
(José Saramago)

Dois poemas


Em que idioma te direi
este amor sem nome
que é servo e rei?
*
Como o direi?
Como o calarei?
*
É como se a noite se molhasse
repentinamente, quando choras.
É como se o dia se demorasse,
quando te espero e tu te demoras.
***
(Albano Martins)

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

De esperas construímos o amor...


De esperas construímos o amor intenso e súbito
que encheu as tuas mãos de sol e a tua boca de beijos.
Em estranhos desencontros nos amamos.
Havia o rio mas sempre ficávamos na margem.
Eu tocava o teu peito e os teus olhos e, nas minhas mãos,
a tarde projectava as suas grandes sombras
enquanto as gaivotas disputavam sobre a água
talvez um peixe inquieto, algo que nunca pudemos ver.
As nossas bocas procuravam-se sempre, ávidas e macias
E por muito tempo permaneciam assim, unidas,
machucando-se, torturando as nossas línguas quase enlouquecidas.
Depois olhávamo-nos nos olhos.
No mais profundo silêncio.
E, sem palavras,partíamos com as mãos docemente amarradas
e os corações estoirando uma alegria breve
Quando a noite descia apaixonada
Como o longo beijo da nossas despedida.
***
(Joaquim Pessoa)

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

O amor é uma companhia


Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível
faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo
gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela
é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela
que não sei como a desejar.
Se a não vejo, imagino-a
e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo, tremo,
não sei o que é feito
do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força
que me abandona.
Toda a realidade olha para mim
como um girassol
com a cara dela no meio.
***
(Alberto Caeiro)

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Amor


Apesar de tudo,
há um caso de amor
entre mim e a vida.
***
(António de Lacerda)

Amor da palavra, amor do corpo


A nudez da palavra que te despe.
Que treme, esquiva.
Com os olhos dela te quero ver,
que te não vejo.
Boca na boca, através de que boca
posso eu abrir-te e ver-te?
É meu receio que escreve e não o gosto
do sol de ver-te?
Todo o espaço dou ao espelho vivo
e do vazio te escuto.
Silêncio de vertigem, pausa, côncavo
de onde nasces, morres, brilhas, branca?
És palavra ou és corpo unido em nada?
É de mim que nasces ou do mundo solta?
Amorosa confusão, te perco e te acho,
à beira de nasceres tua boca toco
e o beijo é já perder-te.
***
(António Ramos Rosa)

Caminho encontrado


Razão e loucura
Abismo de mãos
E gestos em fúria
Palavras
Silêncios
E corpos suspensos
Nas bocas a febre
Nos olhos delírio
Regresso de noite
Caminho encontrado.
***
(Manuela Amaral)

Os teus lábios


Inclina para mim os teus lábios
e que ao sair da minha boca
a minha alma volte a entrar dentro de ti.
***
(Denis Diderot)

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Breve


É só o tempo de acordar
suspenso nas cores de um paraíso
que embriaga esta nossa corrida.
É só o instante de sentir
o perfume da flor escondida
que as mãos não saberão colher.
É só o momento de querer
abraçar outro eu que está só
algures à espera de um sorrir.
É só o tempo de ser breve,
beber num sopro este existir
e morrer sem outro acordar.
***
(Miguel do Carmo)

...


Original é o poeta
que se origina a si mesmo
que numa sílaba é seta
noutro pasmo ou cataclismo
o que se atira ao poema
como se fosse um abismo
e faz um filho às palavras
na cama do romantismo.
Original é o poeta
capaz de escrever um sismo.

Original é o poeta
de origem clara e comum
que sendo de toda a parte
não é de lugar algum.
O que gera a própria arte
na força de ser só um
por todos a quem a sorte
faz devorar um jejum.
Original é o poeta
que de todos for só um.
Original é o poeta
expulso do paraíso
por saber compreender
o que é o choro e o riso;
aquele que desce á rua
bebe copos quebra nozes
e ferra em quem tem juízo
versos brancos e ferozes.
Original é o poeta
que é gato de sete vozes.
Original é o poeta
que chega ao despudor
de escrever todos os dias
como se fizesse amor.
Esse que despe a poesia
como se fosse uma mulher
e nela emprenha a alegria
de ser um homem qualquer.
***
(Ary dos Santos)
(Singela homenagem a este grande poeta nascido neste dia, em 1937)

domingo, 6 de dezembro de 2009

A falha do destino


Por vezes a razão das
sombras é tão concreta
que escurece até o
querer dos próprios
passos
Por vezes não se pode
ser mais que um ponto
no vazio, um respirar
contra vontade
o gume de uma dor
que pode ser
Por vezes, todos os
caminhos se transformam
em escarpas, uns, os outros
em abismos e a falha
traiçoeira do destino
não deixa hoje acreditar
nas armas que amanhã
empunharemos
***
(Vasco Pontes)

Bandeira Branca

E a estrela perdeu-se na noite deserta...
Tentar procurá-la, para quê, se era em vão?
Deixaram-me em casa com a porta aberta
Mas eu bem compreendo que estou em prisão.
*
Talvez que pensassem mal imaginário
a mágoa de uns olhos em rosto bravio
Mas eu bem me sinto peixe em aquário
e sei a amargura de sonhá-lo num rio.
*
Mas eu bem compreendo o cruel desalento
dos gestos frustrados, perdidos no ar.
Foi curta a mensagem, findou meu tormento.
E não vale a pena o que está por contar.
***
(Maria Manuela Couto Viana)

sábado, 5 de dezembro de 2009

Sozinha


solidão que tanto temem
que tanto ignoram o bem que faz
sozinha não minto, não finjo
não causo nenhum escarcéu
sozinha não maltrato, não disfarço
não há pesquisa que me sonde
sozinha não retruco, não provoco
não deixo ninguém sem resposta
sozinha não julgo nem condeno
não trato ninguém como réu
sozinha não grito, não rogo praga
não renego meu deleite
sozinha não trapaceio, não peco
não falto nem chego atrasada
sozinha não sumo, não volto
não tenho presença notada
sozinha eu sou quem eu posso
sozinha eu faço o que quero
sozinha não há céu que me rejeite
***
(Martha Medeiros)

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Na sensação do partilhar


Quero um amor que não se desvaneça
no meio da noite
e que em cada percurso
tenha em mente
o ir e o vir...
Assim viverei
sem aqueles temores
que abalam só a juventude
dos relacionamentos...
Poderei bailar nas estrelas,
mergulhar no oceano,
sentir-me leve como as brumas da manhã,
banhar-me na chuva
contando com o aconchego
do agasalho amparando-me
e me elevando na sensação de partilhar.
***
(Carmen Lúcia da Silva)

Poema ao amor


Me encantam teus olhos que brilham
Tuas suaves mãos que me acalantam,
Teus traços bem feitos onde trilham
Meus doces beijos que te encantam.
*
E tua voz murmurando em meu ouvido
Faz minha pele todinha se arrepiar,
Sabes que esta vida não teria sentido,
Se eu fosse proibida de te amar.
*
E me flagro com teu rosto em minha mente
Alternando tuas palavras em meus pensamentos,
Lembro-me cada verso, cada semente
Semeada em nossa alma em todos os momentos.
*
E, pudesse eu, cantaria agora ao mundo,
Que te amo e que este amor é tão bonito!
Registraria em todo canto, a cada segundo,
Maior que o meu amor, nem mesmo o infinito!
***
(Ivone da Conceição R. Carvalho)

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Entre o real e o imaginário


Às vezes choramos
encostados a uma saudade
ou entristecemos
eivados de melancolia.
Outras vezes voltamos
numa dor distante
sem razão de ser.
É assim o tempo
dividido entre o real e o imaginário,
sentimo-nos cercados
e lamenta-se o tempo perdido.
É tempo de romper com tudo,
é tempo de libertar
as imagens e as palavras.
É tempo de unir o peito
a outro peito
e fingir que tudo é perfeito.
***
(Desconheço o autor)

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Poema de amor - Colar de pérolas


Eu tenho um colar de pérolas
Enfiado para te dar:
As pérolas são os meus beijos,
O fio é o meu pesar.
***
(Fernando Pessoa)

Para ti


Fiquei louco, fiquei tonto
meus beijos foram sem conto
apertei-te contra mim
enlacei-te nos meus braços
embriaguei-me de abraços
fiquei louco e foi assim
dá-me beijos, dá-me tantos
que enleado em teus encantos
preso nos abraços teus
eu não sinta a própria vida
nem minha alma, ave perdida
no azul amor dos teus céus
***
(Fernando Pessoa)

O amor quando se revela


O amor, quando se revela,
não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p’ra ela,
mas não lhe sabe falar.
*
Quem quer dizer o que sente
não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente.
Cala: parece esquecer.
*
Ah, mas se ela adivinhasse,
se pudesse ouvir o olhar,
e se um olhar lhe bastasse
pra saber que a estão a amar!
*
Mas quem sente muito, cala;
quem quer dizer quanto sente
fica sem alma nem fala,
fica só, inteiramente!
*
Mas se isto puder contar-lhe
o que não lhe ouso contar,
já não terei que falar-lhe
porque lhe estou a falar…
***
(Fernando Pessoa)