terça-feira, 30 de outubro de 2012

As facas


Quatro letras nos matam quatro facas 
que no corpo me gravam o teu nome. 
Quatro facas amor com que me matas 
sem que eu mate esta sede e esta fome. 
*
 Este amor é de guerra. (De arma branca). 
Amando ataco amando contra-atacas 
este amor é de sangue que não estanca. 
Quatro letras nos matam quatro facas. 
*
 Armado estou de amor. E desarmado. 
Morro assaltando morro se me assaltas. 
E em cada assalto sou assassinado. 
*
 Quatro letras amor com que me matas. 
E as facas ferem mais quando me faltas. 
Quatro letras nos matam quatro facas.
***
(Manuel Alegre)

Canção grata


Por tudo o que me deste: — Inquietação, cuidado, 
(Um pouco de ternura? E certo, mas tão pouco!) 
Noites de insónia, pelas ruas, como um louco... 
Obrigado, obrigado! 
*
 Por aquela tão doce e tão breve ilusão. 
(Embora nunca mais, depois que a vi desfeita, 
Eu volte a ser quem fui), sem ironia: aceita
A minha gratidão! 
 *
Que bem me faz, agora, o mal que me fizeste! 
— Mais forte, mais sereno, e livre, e descuidado... 
Sem ironia, amor: — Obrigado, obrigado 
Por tudo o que me deste!
***
(Carlos Queiroz)


É um corpo



Estão aqui 37 graus. 
É um corpo. 
E ninguém se aproxima 
senão para recuar. 
Devorar. 
Ou ficar.
***
(Vasco Gato)

Carícia


A pele é o mar: 
aqui desaguam 
os rios da vida. 
 A pele é o cântaro: 
 aqui se guardam 
 todas as águas, 
 chuvas de alegria 
 ou lágrimas. 
 A pele é o mapa: 
 aqui se gravam 
 todos os ventos. 
 Escreva na pele do outro, 
com a ponta dos dedos, 
o alfabeto mais antigo, 
 sussurro, 
estrela,
carícia.
***
(Roseana Murray)

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Um rosto



Apenas uma coisa inteiramente transparente: o céu, 
e por baixo dele a linha obscura do horizonte nos teus olhos, 
que pude ver ainda através de pálpebras semicerradas, 
pestanas húmidas da geada matinal, 
uma névoa de palavras murmuradas num silêncio de hesitações. 
Há quanto tempo, tudo isto? 
Abro o armário onde o tempo antigo 
se enche de bolor e fungos; 
limpo os papéis, cartas que talvez nunca tenha lido até ao fim, 
foto- grafias cuja cor desaparece, 
substituindo os corpos por manchas vagas 
como aparições; 
e sinto, eu próprio, 
que uma parte da minha vida 
se apaga com esses restos. 
***
(Nuno Júdice)

Enquanto



Enquanto 
um calor mole nos tira a roupa 
e mesmo nus sobre a cama 
os corpos continuam a pedir água 
em vez doutro corpo, 
penso no tempo em que o suor 
e a saliva e o odor e o esperma 
faziam dessa agonia 
a alegria 
a que chamávamos amor. 
***
(Eugénio de Andrade)

Dá a surpresa de ser


Dá a surpresa de ser. 
É alta, de um louco escuro. 
Faz bem só pensar em ver 
Seu corpo meio maduro. 
*
 Seus seios altos parecem 
(Se ela estivesse deitada) 
Dois montinhos que amanhecem 
Sem ter que haver madrugada. 
*
 E a mão do seu braço branco 
Assenta em palmo espalhado 
Sobre a saliência do flanco 
Do seu relevo tapado. 
*
Apetece como um barco. 
Tem qualquer coisa de gomo. 
Meu Deus, quando é que eu embarco? 
Ó fome, quando é que eu como?
***
(Fernando Pessoa)

Tua ausência


Tua ausência cala o mundo, o mar, os ventos. 
 Tua ausência desaba silenciosamente sobre os meus dias, 
soterrando meu outono… 
 ela magoa demais o meu sossego. 
 (Tua ausência é essa substância densa) 
 Tua ausência é tão presente que é pessoa… 
 E me abraça.
***
(Marla de Queiroz)

Espero-te



Amo-te em cada beijo que não te dou, 
 em cada olhar que perco por sobre as nuvens, 
 e em cada verso que me escapa por entre os dedos 
Amo-te nos gritos do meu silêncio, 
 nas noites que não têm fim, 
 e em cada lágrima que teima em não cair
Amo-te nas lembranças que já nem me lembro, 
 nas cinzas de todas as horas, e nas dores que irei sentir 
 Amo-te assim feito um louco, e feito louco, 
 busco-te ferozmente em cada palavra, em cada objeto, 
 em cada mísero grão de tempo 
 Amo-te, e por amar-te tanto, espero-te, 
 ainda que nunca me ouças chamar, 
 e ainda que nunca tenhas partido.
***
(Marcelo Roque)