quinta-feira, 29 de abril de 2010

Consideração do poema


Não rimarei a palavra sono
com a incorrespondente palavra Outono.
Rimarei com a palavra carne
ou qualquer outra, que todas me convêm.
As palavras não nascem amarradas,
elas saltam, se beijam, se dissolvem,
no céu livre por vezes um desenho,
são puras, largas, autênticas, indevassáveis.
*
Uma pedra no meio do caminho
ou apenas um rastro, não importa.
Estes poetas são meus.
De todo o orgulho, de toda a precisão
se incorporam ao fatal meu lado esquerdo.
Furto a Vinicius sua mais límpida elegia.
Bebo em Murilo. Que Neruda me dê sua gravata chamejante.
Me perco em Apollinaire. Adeus, Maiakovski.
São todos meus irmãos, não são jornais
nem deslizar de lancha entre camélias:
é toda a minha vida que joguei.
*
Estes poemas são meus.
É minha terra
e é ainda mais do que ela.
É qualquer homem ao meio-dia
em qualquer praça.
É a lanterna em qualquer estalagem, se ainda as há.
– Há mortos? Há mercados? Há doenças?
É tudo meu. Ser explosivo, sem fronteiras,
por que falsa mesquinhez me rasgaria?
Que se depositem os beijos na face branca,
nas principiantes rugas.
O beijo ainda é um sinal, perdido embora,
da ausência de comércio,boiando em tempos sujos.
*
Poeta do finito e da matéria,
cantor sem piedade, sim, sem frágeis lágrimas,
boca tão seca, mas ardor tão casto.
Dar tudo pela presença dos longínquos,
sentir que há ecos, poucos, mas cristal,
não rocha apenas, peixes circulando sob o navio
que leva esta mensagem,
e aves de bico longo conferindo sua derrota,
e dois ou três faróis, últimos!
Esperança do mar negro.
Essa viagem é mortal, e começa-la.
Saber que há tudo.
E mover-se em meio a milhões e milhões
de formas raras, secretas, duras.
Eis aí meu canto.
*
Ele é tão baixo que sequer o escuta
ouvido rente ao chão.
Mas é tão alto que as pedras o absorvem.
Está na mesa aberta em livros,
cartas e remédios.
Na parede infiltrou-se.
O bonde, a rua,
o uniforme de colégio se transformam,
são ondas de carinho te envolvendo.
*
Como fugir ao mínimo objecto
ou recusar-se ao grande?
Os temas passam,
eu sei que passarão,
mas tu resistes,
e cresces como fogo, como casa,
como orvalho entre dedos,
na grama, que repousam.
*
Já agora te sigo a toda parte,
e te desejo e te perco, estou completo,
me destino, me faço tão sublime,
tão natural e cheio de segredos,
tão firme, tão fiel...
Tal uma lâmina,
o povo, meu poema, te atravessa.
***
(Carlos Drummond de Andrade)

Temo por meus olhos


Temo por meus olhos
diante das puras vestes.
E no entretanto, desejo.
*
Temor que sugere o epí­logo
de ser cí¢ntaro partido
ao lado de fonte pródiga.
*
A não contemplar,
prefiro definitiva cegueira.
*
Não como os homens cegos,
mas como os pés das crianças
que são cegos, caminhando.
***
(Thiago de Mello)

Lua

Disseram-me para olhar a lua
como fazem os apaixonados.
Nada aconteceu.
“Quero um poema teu.”
Em vez disso entrancei-te uma grinalda
de luas-cheias-de-promessas
e de quartos-crescentes-de-desejo.
E passei a noite, em branco, contigo.
***
(Teresa Guedes)

terça-feira, 27 de abril de 2010

Poeta, viajante das estrelas


Meu destino é ser solitário,
coração errante,
eterno navegante sem porto
habitante das cidades ilusórias
nascido sem dores de parto.
*
Sou filho do sol e da lua
no meu coração batem rimas,
no meu sangue circulam versos
e meu sorriso traduz poemas
jamais escritos por medo ou incerteza.
*
Cresci no meio de olhares,
alimentei-me de sentimentos diversos.
Crescendo dentro de almas estranhas
sou o poeta das rimas provisórias.
Meu alimento é paixão, ódio, amor e todo sentimento
existente nas entranhas humanas
seja ele qual for
*
Sou filho do céu e do mar,
minhas veias são estradas infinitas
por onde passam caravanas ciganas,
minha mente imenso espaço
com profusão de estrelas e astros,
minhas mãos são pergaminhos sagrados
revelando segredos antigos,
meus olhos espelho de alma tímida
traduzindo versos que eu não quis escrever
por uma razão qualquer.
*
Meu destino é seguir eternamente
sem rumos ou guias, por estradas vazias
que levam sempre ao meu lugar.
Sou filho do tudo e do nada,
da beira da estrada, do chão e do ar.
Minha voz é doce balada,
cantiga suave para o mundo sonhar.
Sou som e sou cor, sou ódio e amor
sou vida, sou morte, sou sangue sem corte
Poeta eu sou.
***
(Mauro Gouvea)

Se amar for mera ilusão...


Se amar for uma mera ilusão
Coitado desse meu pobre coração
Que ama tanto
E nunca importando com entretantos!
*
Nas minhas utopias sempre te busquei
E sempre te encontrei...
E sempre, sempre você aparecia
Realizando todas as minhas fantasias
*
Sonhava que esse sonho virasse
Querendo torná-los realmente de verdade
E poder assim amar você sobre a luz da lua
E te encontrar, e te abraçar em qualquer lugar...
*
Estando vestida ou nua, sei lá!
Para fazermos amor a luz do luar...
Eu e você num amor assim total
Eu e você numa entrega sem igual!
***
(Giselda Diamantino)

Amo-te

Amo-te como a planta que não floriu
e tem dentro de si, escondida, a luz das flores,
e, graças ao teu amor, vive obscuro em meu corpo
o denso aroma que subiu da terra.
Amo-te sem saber como, nem quando, nem onde,
amo-te directamente sem problemas nem orgulho:
amo-te assim porque não sei amar de outra maneira,
a não ser deste modo em que nem eu sou nem tu és,
tão perto que a tua mão no meu peito é minha,
tão perto que os teus olhos se fecham com meu sono.
***
(Pablo Neruda)

segunda-feira, 26 de abril de 2010

As tuas mãos


As tuas mãos abrem caminhos
neste corpo de menina,
que desejosa de carinhos,
no teu colo se aninha.
Leves vão percorrendo:
pernas, sexo e peito,
enquanto eu vou gemendo
de prazer no nosso leito.
Muito devagarinho,
aos meus lábios as encosto
e sinto o cheirinho,
do homem de quem gosto.
***
(Serra da Lua)

Intimidade


No coração da mina mais secreta,
No interior do fruto mais distante,
Na vibração da nota mais discreta,
No búzio mais convolto e ressoante,

Na camada mais densa da pintura,
Na veia que no corpo mais nos sonde,
Na palavra que diga mais brandura,
Na raiz que mais desce, mais esconde,

No silêncio mais fundo desta pausa,
Em que a vida se fez perenidade,
Procuro a tua mão, decifro a causa
De querer e não crer, final, intimidade.
***
(José Saramago)

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Floresce!


Floresce, vive para a Natureza,
Para o Amor imortal, largo e profundo.
O Bem supremo de esquecer o mundo
Reside nessa límpida grandeza.
*
Floresce para a Fé, para a Beleza Da Luz
que é como um vasto mar sem fundo,
Amplo, inflamado, mágico, fecundo,
De ondas de resplendor e de pureza.
*
Andas em vão na Terra, apodrecendo
À toa pelas trevas, esquecendo a Natureza
e os seus aspectos calmos.
*
Diante da luz que a Natureza encerra
Andas a apodrecer por sobre a Terra,
Antes de apodrecer nos sete palmos!
***
(Cruz e Sousa)

A solidão e sua porta


Quando mais nada resistir que valha
A pena de viver e a dor de amar
E quando nada mais interessar
(Nem o torpor do sono que se espalha)
Quando pelo desuso da navalha
A barba livremente caminhar
E até Deus em silêncio se afastar
Deixando-te sozinho na batalha
A arquitetar na sombra a despedida
Deste mundo que te foi contraditório
Lembra-te que afinal te resta a vida
Com tudo que é insolvente e provisório
E de que ainda tens uma saí­da
Entrar no acaso e amar o transitório.
***
(Carlos Pena Filho)

O beijo


Congresso de gaivotas neste céu
Como uma tampa azul cobrindo o Tejo.
Querela de aves, pios, escaracéu.
Ainda palpitante voa um beijo.
*
Donde teria vindo! (não é meu...)
De algum quarto perdido no desejo?
De algum jovem amor que recebeu
Mandado de captura ou de despejo?
*
É uma ave estranha: colorida,
Vai batendo como a própria vida,
Um coração vermelho pelo ar.
*
E é a força sem fim de duas bocas,
De duas bocas que se juntam, loucas!
De inveja as gaivotas a gritar...
***
(Alexandre O'Neill)

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros


Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
De vivo luzir,
Estrelas incertas, que as águas dormentes
Do mar vão ferir.
*
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
Têm meiga expressão,
Mais doce que a brisa, — mais doce que o nauta
De noite cantando, — mais doce que a frauta
Quebrando a solidão.
*
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
De vivo luzir,
São meigos infantes, gentis, engraçados
Brincando a sorrir.
*
São meigos infantes, brincando, saltando
Em jogo infantil,
Inquietos, travessos; — causando tormento,
Com beijos nos pagam a dor de um momento,
Com modo gentil.
*
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
Assim é que são;
Às vezes luzindo, serenos, tranquilos,
Às vezes vulcão!
*
Às vezes, oh! sim, derramam tão fraco,
Tão frouxo brilhar,
Que a mim me parece que o ar lhes falece,
E os olhos tão meigos, que o pranto humedece
Me fazem chorar.
*
Assim lindo infante,
que dorme tranquilo,
Desperta a chorar;
E mudo e sisudo, cismando mil coisas,
Não pensa — a pensar.
*
Nas almas tão puras da virgem, do infante,
Às vezes do céu
Cai doce harmonia duma Harpa celeste,
Um vago desejo; e a mente se veste
De pranto co'um véu.
*
Quer sejam saudades, quer sejam desejos
Da pátria melhor;
Eu amo seus olhos que choram em causa
Um pranto sem dor.
*
Eu amo seus olhos tão negros, tão puros,
De vivo fulgor;
Seus olhos que exprimem tão doce harmonia,
Que falam de amores com tanta poesia,
Com tanto pudor.
*
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
Assim é que são;
Eu amo esses olhos que falam de amores
Com tanta paixão.
***
(Gonçalves Dias)

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Anseio


Amor, vivo tão só, nesta tristeza,
onde minh'alma se desfaz em pranto,
longe do teu olhar cheio de encanto,
em que fiquei eternamente presa.
*
Tão longe ando de ti,
numa incerteza de ter-te, minha vida!
E entretanto, vai crescendo este amor,
mas tanto e tanto, em místico fervor como quem reza!...
*
Ando faminta, cheia de desejo dessas carícias
tão de mim ausentes,
que me enlouquecem, e que em ti prevejo...
*
E morro na paixão que mal pressentes,
e perdem-se pelo ar cheios de pejo
os beijos que te dou e tu não sentes...
***
(Helena Verdugo Afonso)

Crepúsculo


Começa a entardecer. Amor, é tarde...
Descansa no meu peito a tua fonte,
e vê o Sol baixando no horizonte,
em chamas de ouro, como brilha e arde.
*
Agora, resignados, sem alarde,
vamos descendo a escosta deste monte.
Já não tenho mais versos que te conte,
e nem um verso eterno em que te guarde!...
*
Calam-se os passarinhos no arvoredo.
- É a noite que vem. Não tenhas medo.
Acabaram-se os cantos festivais.
*
Silencio. Solidão. Ninguém se afoite...
Anoitecer que importa, se é de noite
que os beijos de quem ama sabem mais.
***
(Espínola de Mendonça)

Perplexidade


Hesito no caminho.
Ninguém segue este rumo...
É noutra direcção
Que o vento leva o fumo
Das paixões...
Chegar, sei que não chego,
De nenhuma maneira;
Mas queria ao menos ir no lírico sossego
De quem não se enganou na estrada verdadeira.
*
E não vou.
Cada vez mais sozinho
Na solidão,
Duvido da certeza dos meus passos.
Vejo a sede ancestral da multidão
Voltar costas às fontes que pressinto,
E fico na mortal indecisão
De afirmar ou negar o cego instinto
Que me serve de guia e de bordão.
***
(Miguel Torga)

Quando te vi


A manhã era clara, refulgente.
Uma manhã dourada. Tu passaste.
Abriu mais uma flor em cada haste.
Teve mais brilho o sol, fez-se mais quente.
*
E eu inundei-me dessa luz ardente.
Depois não sei mais nada. Olhei... Olhaste...
E nunca mais te vi... - Raro contraste! -
A madrugada transformou-se em poente.
*
Luz que nasceu e apenas cintilou!
Deixou-me triste assim que se apagou,
às vezes fecho os olhos; vejo-a ainda...
*
E há tanto sol dourando esses trigais!
Olhaste, olhei, fugiste...
Ai nunca mais, nunca mais tive outra manhã tão linda!
***
(Virgínia Victorino)

quarta-feira, 21 de abril de 2010

O retrato fiel


Não creias nos meus retratos,
nenhum deles me revela,
ai, não me julgues assim!
*
Minha cara verdadeira
fugiu às penas do corpo,
ficou isenta da vida.
*
Toda minha faceirice
e minha vaidade toda
estão na sonora face;
naquela que não foi vista
e que paira, levitando,
em meio a um mundo de cegos.
*
Os meus retratos são vários
e neles não terás nunca
o meu rosto de poesia.
*
Não olhes os meus retratos,
nem me suponhas em mim.
***
(Gilka Machado)

No campo


Tarde. Um arroio canta pela umbrosa
Estrada; as águas límpidas alvejam
Com cristais. Aragem suspirosa
Agita os roseirais que ali vicejam.

No alto, entretanto, os astros rumorejam
Um presságio de noute luminosa
E ei-la que assoma – a Louca tenebrosa,
Branca, emergindo às trevas que a negrejam.

Chora a corrente múrmura, e, à dolente
Unção da noute, as flores também choram
Num chuveiro de pétalas, nitente,

Pendem e caem – os roseirais descoram
E elas bóiam no pranto da corrente
Que as rosas, ao luar, chorando enfloram.
***
(Augusto dos Anjos)

Soneto antigo


Responder a perguntas não respondo.
Perguntas impossíveis não pergunto.
Só do que sei de mim aos outros conto:
de mim, atravessada pelo mundo.
*
Toda a minha experiência, o meu estudo,
sou eu mesma que, em solidão paciente,
recolho do que em mim observo e escuto
muda lição, que ninguém mais entende.
*
O que sou vale mais do que o meu canto.
Apenas em linguagem vou dizendo
caminhos invisíveis por onde ando.
*
Tudo é secreto e de remoto exemplo.
Todos ouvimos, longe, o apelo do Anjo.
E todos somos pura flor de vento.
***
(Cecília Meireles)

terça-feira, 20 de abril de 2010

Bonita


Primeiro foram as mãos que me disseram
que ali havia gente de verdade
depois fugi-te pelo corpo acima
medi-te na boca a intensidade
senti que ali dentro havia um tigre
naquele repouso havia movimento
olhei-te e no sol havia pedras
parámos ambos como se parasse o tempo
parámos ambos como se parasse o tempo
é tão dificil encontrar pessoas assim bonitas
é tão dificil encontrar pessoas assim bonitas

atrevi-me a mergulhar nos teus cabelos
respirando o espanto que me deras
ali havia força havia fogo
havia a memória que aprenderas
senti no corpo todo um arrepio
senti nas veias um fogo esquecido
percebemos num minuto a vida toda
sem nada te dizer ficaste ali comigo
sem nada te dizer ficaste ali comigo
é tão dificil encontrar pessoas assim bonitas
é tão dificil encontrar pessoas assim bonitas

falavas de projectos e futuro
de coisas banais frivolidades
mas quando me sorriste parou tudo
problemas do mundo enormidades
senti que um rio parava e o nevoeiro
vestia nos teus dedos capa e espada
queria tanto que um olhar bastasse
e não fosse no fundo preciso
queria tanto que um olhar bastasse
e não fosse preciso dizer nada

é tão dificil encontrar pessoas assim bonitas
é tão dificil encontrar pessoas assim pessoas
***
(Pedro Barroso)

Lição sobre a água


Este líquido é água.
Quando pura
é inodora, insípida e incolor.
Reduzida a vapor,
sob tensão e a alta temperatura,
move os êmbolos das máquinas que, por isso,
se denominam máquinas de vapor.

É um bom dissolvente.
Embora com excepções mas de um modo geral,
dissolve tudo bem, bases e sais.
Congela a zero graus centesimais
e ferve a 100, quando à pressão normal.

Foi neste líquido que numa noite cálida de Verão,
sob um luar gomoso e branco de camélia,
apareceu a boiar o cadáver de Ofélia
com um nenúfar na mão.
***
(António Gedeão)

... Que culpa terão as ondas


...Que culpa terão as ondas
Dos movimentos que façam?
São os ventos que as impelem
E sulcos profundos traçam.
Aos ventos quem lhes ordena
Que rasguem rugas no mar?
São as nuvens inquietas
Que os não deixam sossegar.
E as nuvens, almas de névoa,
Porque não param, coitadas?
É que as asas das gaivotas
As trazem desafiadas.
Mas as asas das gaivotas
O cansaço há-de detê-las!
Juraram buscar descanso
Nas pupilas das estrelas.
E como as estrelas estão altas
E não tombam nem se alcançam,
As asas das pobrezinhas
Baldamente se cansam
Baldamente se cansam,
Baldamente palpitam!
As nuvens, por fatalismo,
Logo com elas se agitam;
Os impulsos que elas dão
Arrastam as ventanias;
As vagas arfam nos mares
Em macabras fantasias.
Assim as almas inquietas
Prisioneiras de ansiedades,
Mal que se erguem da terra,
Naufragam nas tempestades!
***
(Reinaldo Ferreira)

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Haja névoa


Haja névoa!
Dancem os véus na minha alma
(E externos nas luzes próximas,
Que se recusam como estrelas na distância).
Haja névoa!
Paire nela a memória dos maníacos
Sonhando na penumbra dos portais
Assassínios brutais.
Haja, haja névoa!
Aqui e além no mar.
No mar, nos mares, para que todas as viagens,
Para que todos os barcos em todas as paragens,
Na iminência dos naufrágios improváveis
- Improváveis, possíveis -,
Se gastem nos avisos aflitos
Das luzes, dos rádios, dos radares,
Dos gritos
Dos apitos.
Haja, haja névoa...
Desgastem-se os contornos
Das coisas excessivamente conhecidas.
Não haja céu sequer.
Névoa, só névoa!
E eu, nas ruas distorcidas,
Livre e tão leve
Como se fosse eu próprio a névoa
Da noite longa duma existência breve.
***
(Reinaldo Ferreira)

Nas grandes horas em que a insónia avulta


Nas grandes horas em que a insónia avulta
Como um novo universo doloroso,
E a mente é clara com um ser que insulta
O uso confuso com que o dia é ocioso,
*
Cismo, embebido em sombras de repouso
Onde habitam fantasmas e a alma é oculta,
Em quanto errei e quanto ou dor ou gozo
Me farão nada, como frase estulta.
*
Cismo, cheio de nada, e a noite é tudo.
Meu coração, que fala estando mudo,
Repete seu monótono torpor
*
Na sombra, no delírio da clareza,
E não há Deus, nem ser, nem Natureza
E a própria mágoa melhor fora dor.
***
(Fernando Pessoa)

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Canção de enganar tristeza


Se a tristeza um dia
Te encontrar triste sozinho
Trata bem dela
Porque a tristeza quer carinho
E fala sobre a beleza
Com tanta delicadeza
Por não ter nenhum carinho
Que ela só existe
Por não ter nenhum carinho
E dá-lhe um amor tão lindo
Que quando ela se for indo
Ela vá contente
De ter tido o teu carinho
***
(Vinicius de Moraes)

Terror de te amar


Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo
Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa
***
(Sophia de Mello Breyner Andresen)

Quase um poema de amor


Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor.
E é o que eu sei fazer com mais delicadeza!
A nossa natureza
Lusitana
Tem essa humana
Graça
Feiticeira
De tornar de cristal
A mais sentimental
E baça
Bebedeira.
Mas ou seja que vou envelhecendo
E ninguém me deseje apaixonado,
Ou que a antiga paixão
Me mantenha calado
O coração
Num íntimo pudor,
…Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor.
(Miguel Torga)

Poema de amor


Este é o poema do amor.
O poema que o poeta propositadamente escreveu
só para falar de amor,
de amor,
de amor,
de amor,
para repetir muitas vezes amor,
amor,
amor,
amor.
Para que um dia, quando o Cérebro Electrónico
contar as palavras que o poeta escreveu,
tantos que,
tantos se,
tantos lhe,
tantos tu,
tantos ela,
tantos eu,
conclua que a palavra que o poeta mais vezes escreveu
foi amor,
amor,
amor.
Este é o poema do amor.
***
(António Gedeão)

terça-feira, 13 de abril de 2010

Alegoria floral


Um dia em que a mulher nasça do caule da roseira
que cresce no quintal; ou um dia em que a nuvem
desça do céu para vestir de névoa os seus seios de flor:
seguirei o caminho da água nos canteiros
que me levam ao caule,
e meter-me-eipela terra em busca da raíz.
Nesse dia em que os cabelos da mulher
se confundirem com os fios luminosos
que o sol faz passar pela folhagem;
e em que um perfume de pólen se derramar
no ar liberto da névoa:
procurarei o fundo dos seus olhos,
onde corre uma tranparência de ribeiro.
Um dia irei tirar essa mulher de dentro da flor,
despi-la das suas pétalas, e emprestar-lhe
o véu da madrugada.
Então, vendo-a nascer com o dia,
desenharei nuvens com a cor dos seus lábios,
e empurrá-las-ei para o mar com o vento brando
da sua respiração.
Depois, cobrirei essa mulher que nasceu da roseira
com o lençol celeste; e vê-la-ei adormecer,
como um botão de rosa, esperando que a nuvem desça do céu
para a roubar ao sonho da flor.
***
(Nuno Júdice)

segunda-feira, 12 de abril de 2010

De noite amada


De noite, amada, prende o teu coração ao meu
e que no sono eles dissipem as trevas
como um duplo tambor combatendo no bosque
contra o espesso muro das folhas molhadas.
*
Nocturna travessia, brasa negra do sono
interceptando o fio das uvas terrestres
com a pontualidade dum comboio desvairado
que a sombra e pedras frias sem cessar arrastasse.
*
Por isso, amor, prende-me ao movimento puro,
à tenacidade que tem em teu peito bate
com as asas dum cisne submerso,
*
para que às perguntas estreladas do céu
responda o nosso com uma única chave,
com uma única porta fechada pela sombra.
***
(Pablo Neruda)

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Vivam, apenas.




Vivam, apenas.
Sejam bons como o sol.
Livres como o vento
naturais como as fontes.
*
Imitem as árvores dos caminhos
Que dão flores e frutos
Sem complicações.
*
Mas não queiram convencer os cardos
A transformar os espinhos
Em rosas e canções.
*
E principalmente não pensem na Morte.
Não sofram por causa dos cadáveres
Que só são belos
Quando se desenham na terra em flores.
*
Vivam, apenas.
A morte é para os mortos.
***
(José Gomes Fereira)

Notícias do bloqueio


Aproveito a tua neutralidade,
o teu rosto oval, a tua beleza clara,
para enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam ansiosos.
*
Tu lhes dirás do coração o que sofremos
nos dias que embranquecem os cabelos …
Tu lhes dirás a comoção e as palavras
que prendemos – contrabando –
aos teus cabelos.
*
Tu lhes dirás o nosso ódio construído,
sustentando a defesa à nossa volta
- único acolchoado para a noite
florescida de fome e de tristezas.
*
Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,um mapa,
duas cartas, uma lágrima …
*
Dirás como trabalhamos em silêncio,
como comemos silêncio, bebemos silêncio,
nadamos e morremos
feridos de silêncio duro e violento.
*
Vai pois e noticia com um archote
aos que encontrares de fora das muralhas
o mundo em que nos vemos, poesia massacrada
e medos à ilharga.
*
Vai pois e conta nos jornais diários
ou escreve com ácido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu disse
entre dois bombardeamentos já esperados.
*
Mas diz-lhes que se mantém indevassável
o segredo das torres que nos erguem,
e suspensa delas uma flor em lume
grita o seu nome incandescente e puro.
*
Diz-lhes que se resiste na cidade
desfigurada por feridas de granadas
e, enquanto a água e os víveres escasseiam,
aumenta a raiva
e a esperança reproduz-se.
***
(Egito Gonçalves)
Obs: Um dos poemas mais lindos e emocionantes que já li até hoje.
Verdadeiramente lindo.

Não me peças mais canções


Não me peças mais canções
Porque a cantar vou sofrendo;
Sou como as velas do altar
Que dão luz e vão morrendo,
Se a minha voz conseguisse
Dissuadir essa frieza
E a tua boca sorrisse!
Mas sóbria por natureza
Não a posso renovar
E o brilho vai-se perdendo...
-Sou como as velas do altar
Que dão luz e vão morrendo.
***
(António Botto)

Mulher


Chamam-te linda, chamam-te formosa,
Chamam-te bela, chamam-te gentil...
A rosa é linda, é bela, é graciosa,
Porém a tua graça é mais subtil.
*
A onda que na praia, sinuosa,
A areia enfeita com encantos mil,
Não tem a graça, a curva luminosa
Das linhas do teu corpo, amor e ardil.
*
Chamam-te linda, encantadora ou bela;
Da tua graça é pálida aguarela
Todo o nome que o mundo à graça der.
*
Pergunto a Deus o nome que hei-de dar-te,
E Deus responde em mim, por toda parte:
Não chames bela – Chama-lhe Mulher.
***
(Rui de Noronha)

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Poesia


Gastei uma hora pensando em um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.
***
(Carlos Drummond de Andrade)

Choro


Como exalas, penhasco, o licor puro,
Lacrimante a floresta lisonjeando?
Se choras por ser duro, isso é ser brando,
Se choras por ser brando, isso é ser duro.
*
Eu, que o rigor lisonjear procuro,
No mal me rio, dura penha, amando;
Tu, penha, sentimentos ostentando,
Que enterneces a selva, te asseguro.
*
Se a desmentir afetos me desvio,
Prantos, que o peito banham, corroboro,
De teu brotado humor, regato frio.
Chora festivo já, cristal sonoro;
Que quanto choras se converte em rio,
E quanto eu rio, se converte em choro.
***
(Gregório de Matos)

O convertido


Entre os filhos dum século maldito
Tomei também lugar na ímpia mesa,
Onde, sob o folgar, geme a tristeza
Duma ânsia impotente de infinito.
*
Como os outros, cuspi no altar avito
Um rir feito de fel e de impureza…
Mas um dia abalou-se-me a firmeza,
Deu-me um rebate o coração contrito!
*
Erma, cheia de tédio e de quebranto,
Rompendo os diques ao represo pranto,
Virou-se para Deus minha alma triste!
*
Amortalhei na Fé o pensamento,
E achei a paz na inércia e esquecimento…
Só me falta saber se Deus existe!
***
(Antero de Quental)

Escrevo-te onde a luz é feita de papoilas


Clareiras onde pássaros
piam ecos coagulados

Memórias transpiradas,
em vozes que desaguam no teu silêncio,
e o teu corpo forma-se no ar,
tecido de nuvens.

sinto-te nas frágeis linhas
da tua ausência

Sou margem do rio onde a tua poeira
se mistura com a fúria das sílabas.

Descubro o teu rosto e escrevo o teu nome
nas folhagens das nuvens
onde os corpos são
formas de vento
***
(Maria Sousa)