quinta-feira, 31 de julho de 2008

Confiança


O que é bonito neste mundo, e anima,
É ver que na vindima
De cada sonho
Fica a cepa a sonhar outra aventura…
E que a doçura
Que se não prova
Se transfigura
Numa doçura
Muito mais pura
E muito mais nova…
(Miguel Torga)

segunda-feira, 28 de julho de 2008

A praia


Na luz oscilam os múltiplos navios
Caminho ao longo dos oceanos frios
As ondas desenrolam os seus braços
E brancas tombam de bruços
A praia é lis e longa sob o vento
Saturada de espaços e maresia
E para trás fica o murmúrio
Das ondas enroladas como búzios.
(Sophia de Mello Breyner Andressen)

sábado, 26 de julho de 2008

Bato, bato nas pedras


Bato no fundo.
Bato nas pedras do fundo.
Julgava tudo quieto
e vai a corda parte,
caio por aqui abaixo,
digo, até ao fundo.
Levanto os olhos:
ai aquele brando som
que me chega tão cavo;
ai, digo, e estou no fundo.
Bato, bato nas pedras.
Mexo-me pouco.
Magoa respirar.
No fundo, limos, pedras,
sons que se escapam nos...
Limos, por aqui abaixo.
(Fernando Assis Pacheco)

quarta-feira, 23 de julho de 2008

O silêncio do piano


na espera do encontro
no eco da
dos sustenidos
no bolso das fisgas
na sombra dos bemóis
no dédalo das árvores
na brincadeira dos meninos
no favor das circunstâncias
na paixão dos cativos
no espelho das notas naturais
o piano do silêncio
o silêncio do piano
o piano
o silêncio
(Carlos Alberto Silva)

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Poema para os que compreendem


Malvada sede a do guerreiro insaciável do sangue
Sangue preto igual ao branco mais branco mais branco

Insuportável arma que se vende se vende e trespassa
A fronteira da razão o corpo indivisível da liberdade

Ninguém pede misericórdia ou uma palavra de consolo
Tudo se limita ao construir de novos impérios

Ali não há tempo de fugir tudo é o fim e o princípio
Caminho cruel que termina sempre numa cova
No impacto de uma bala ou duma bandeira

Ao longe longe muito longe e agasalhados
Gigantes vermelhos vermelhos vermelhos que nunca mais acabam
Esfregam as mãos de contentes até arderem de gozo

Mais abaixo no despir do seu calor e da dúvida
Outro fogo consome irmãos devora esperanças

Faz morrer a luz nos olhos das crianças.
(José António Gonçalves)

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Ser Poeta


Ser poeta é ser mais alto,
é ser maior
Do que homens!
Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede do Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!
(Florbela Espanca)

sábado, 12 de julho de 2008

Espaço curvo e finito


Oculta consciência de não ser,
ou de ser num estar que me transcende,
numa rede de presenças e ausências,
numa fuga para o ponto de partida:
um perto que é tão longe,
um longe aqui.
Uma ânsia de estar e de temer
a semente que de ser se surpreende,
as pedras que repetem as cadências
da onda sempre nova e repetida
que neste espaço curvo vem de ti.
(José Saramago)