sábado, 31 de janeiro de 2009

Se às vezes digo que as flores sorriem


Se às vezes digo que as flores sorriem
E se eu disser que os rios cantam,
Não é porque eu julgue que há sorrisos nas flores
E cantos no correr dos rios...
É porque assim faço mais sentir aos homens falsos
A existência verdadeiramente real das flores e dos rios.
Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezes
À sua estupidez de sentidos...
Não concordo comigo mas absolvo-me,
Porque só sou essa cousa séria, um intérprete da Natureza,
Porque há homens que não percebem a sua linguagem,
Por ela não ser linguagem nenhuma.
(Alberto Caeiro)

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Amo-te

Amo-te como a planta que não floriu
e tem dentro de si, escondida, a luz das flores,
e, graças ao teu amor, vive obscuro em meu corpo
o denso aroma que subiu da terra.
Amo-te sem saber como, nem quando, nem onde,
amo-te directamente sem problemas nem orgulho:
amo-te assim porque não sei amar de outra maneira
a não ser deste modo em que nem eu sou nem tu és,
tão perto que a tua mão no meu peito é minha,
tão perto que os teus olhos se fecham com meu sono.
(Pablo Neruda)

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

A miséria do meu ser


A miséria do meu ser,
Do ser que tenho a viver,
Tornou-se uma coisa vista.
Sou nesta vida um qualquer
Que roda fora da pista.
*
Ninguém conhece quem sou
Nem eu mesmo me conheço
E, se me conheço, esqueço,
Porque não vivo onde estou.
Rodo, e o meu rodar apresso.
*
É uma carreira invisível,
Salvo onde caio e sou visto,
Porque cair é sensível
Pelo ruído imprevisto...
Sou assim. Mas isto é crível?
(Fernando Pessoa)

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Tempo de ter tempo


Aqui pode ser longe dentro de mim:
há sempre a música imprevista de um verso novo
assomando no postigo do momento.

Quem dera que o tempo que tenho
fosse tempo de ter tempo
como não tenho agora.
Um qualquer tempo lento, sonolento
que, livre, me desse tempo para semear o meu tempo
Tempo de viajar vagarosamente
pelos meandros da memória.
Que não os silêncios que perdemos
no afã do tempo que não temos.

Sei que o tempo me consome,
que envelheço, que entristeço.
Que nesta procura do tempo que passa,
perco o tempo que procuro
na busca do tempo que não tenho

(Autor Desconhecido)

sábado, 24 de janeiro de 2009

Livro de Horas


Aqui, diante de mim,
Eu, pecador, me confesso
De ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
Que vão em leme da nau
Nesta deriva em que vou.
Me confesso
Possesso
Das virtudes teologais,
Que são três,
E dos pecados mortais
Que são sete,
Quando a terra não repete
Que são mais.
Me confesso
O dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas
E das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
Andanças
Do mesmo todo.
Me confesso de ser charco
E luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
Que atira setas acima
E abaixo da minha altura.
Me confesso de ser tudo
Que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
Desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.
Me confesso de ser Homem.
De ser o anjo caído
Do tal céu que Deus governa;
De ser o monstro saído
Do buraco mais fundo da caverna.
Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
Para dizer que sou eu
Aqui, diante de mim!
(Miguel Torga)

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

...


Mal nos conhecemos
Inauguramos a palavra amigo!
Amigo é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo
Uma casa,
mesmo modesta, que se oferece.


Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!
Amigo
(recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
Amigo é o contrário de inimigo!
Amigo é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado.


É a verdade partilhada, praticada.
Amigo é a solidão derrotada!
Amigo é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
Amigo vai ser,
é já uma grande festa!

(Alexandre O'Neill

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Amiga...


Tu sempre foste una
e sempre foste minha,
ainda quando a cor e a forma tua se fundiam
com outra forma e cor que tu não tinhas.
Por isto é que te falo de umas coisas
que não lembras
nem nunca lembrarias
de tais coisas entre mim e ti
ainda quando tu não me sabias
e dividida em outras te mostravas
e assim dispersa me ouvias.
*
Tu sempre foste uma
ainda quando o corpo teu
com outro corpo a sós se punha,
pois o que me tinhas a dar
a outro nunca o deste
e nunca o doarias.
*
Por isto é que te sintocom tanta intimidade
e te possuo com tanta singeleza
desde quando recém vinda
ostentavas nos teus olhos grande espanto
de quem não compreendia
a antiguidade desse amor que em mim fluía.
*
(Affonso Romano de Sant'Anna)

sábado, 17 de janeiro de 2009

Silêncio Gritante


O silêncio da tua voz e do teu olhar,
neste instante me chega tão gritante…
como fosse do íntimo do mundo…
tão mais alto que em outros de antes.
Vem com a dor dos degredos…
se instala e me emudece…
me estanca dentro de mim mesmo.
Chega-me misto de lamento profundoe prece.
Fogem-me as palavras ao vento
como fossem grãos de areia por entre os dedos.
Fica-me o coração choroso de versos
e as mãos conchas vazias de segredos.

(António Miranda Fernandes)

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Há um tempo



Há um tempo em que é preciso

abandonar as roupas usadas,

que já têm a forma do nosso corpo,

e esquecer os nossos caminhos,

que nos levam sempre aos mesmos lugares.

É o tempo da travessia:

e, se não ousarmos fazê-la,

teremos ficado, para sempre,

à margem de nós mesmos.

(Fernando Teixeira de Andrade)