terça-feira, 30 de março de 2010

Onde a dor não tem razão


Canto
Pra dizer que no meu coração
Já não mais se agitam as ondas de uma paixão
Ele não é mais abrigo de amores perdidos
É um lago mais tranquilo
Onde a dor não tem razão
Nele a semente de um novo amor nasceu
Livre de todo rancor, em flor se abriu
Venho reabrir as janelas da vida
E cantar como jamais cantei
Esta felicidade ainda
Quem esperou, como eu, por um novo carinho
E viveu tão sozinho
Tem que agradecer
quando consegue do peito tirar um espinho
É que a velha esperança
Já não pode morrer.
***
(Letra da música de Simone)

Amor


Amor é tudo
o que se espera duma rosa
quando se orna de pétalas
macias,
se enfeita, se perfuma
e sai
para passar a noite no decote
entre os teus seios
***
(Nuno de Figueiredo)

Se eu fosse


Se eu fosse um descascador de canela
deitar-me-ia na tua cama
e deixaria o pó amarelo da casca
na tua almofada.
Os teus seios e os teus ombros cheirariam a canela
nunca mais poderias passar no mercado
sem a profissão dos meus dedos
flutuando por cima de ti. O cego tropeçaria
certo de quem se aproximava
mesmo que tomasses banho
na chuva das calhas, na monção.
Aqui no cimo da coxa
neste macio pasto
vizinho do teu cabelo
ou do sulco
que te divide as costas. Este tornozelo.
Serás conhecida entre os estranhos
como a mulher do descascador de canela.
Só a custo te podia ver
antes do casamento
nunca te toquei
- a tua mãe nariguda, os teus irmãos tão brutos.
Enterrei as minhas mãos
em açafrão, disfarcei-as com
alcatrão de tabaco
ajudei os apicultores a colher o mel…
Uma vez que estávamos a nadar
toquei-te na água
e os nossos corpos permaneceram livres,
podias segurar-me e ser cega de cheiro
Saltaste a margem e disseste
isto é como tu tocas as outras mulheres
a mulher do cortador de relva,
a filha do queimador de limão
E procuraste nas tuas mãos
o perfume desaparecido
e soubeste
como é bom
ser a filha do queimador de lima
deixada sem marca
como se lhe tivessem falado no acto do amor
como se ferida sem o prazer de uma cicatriz
Roçaste o teu ventre nas minhas mãos
no ar seco e disseste
sou a mulher do descascador
de canela.
Cheira-me.
***
(Michael Ondaatje)

domingo, 28 de março de 2010

Tristeza


Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto o poento caminheiro;
Como as horas de um longo pesadelo,
Que se desfaz ao dobre de um sineiro;
*
Como um desterro de minha alma errante,
Onde fogo insensato a consumia…
Só levo um saudade – é um desses tempos
Que amorosa ilusão embelecia.
*
Só levo uma saudade – é dessas sombras
Que eu sentia velar nas noites minhas…
De ti, ó minha mãe, pobre coitada,
Que por minha tristeza te definhas!
*
Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz – e escrevam nela:
Foi poeta, sonhou e amou a vida…
***
(Alvares de Azevedo)

Sim, sei bem


Sim, sei bem
Que nunca serei alguém.
Sei de sobra
Que nunca terei uma obra.
Sei, enfim,
Que nunca saberei de mim.
Sim, mas agora,
Enquanto dura esta hora,
Este luar, estes ramos,
Esta paz em que estamos,
Deixem-me crer
O que nunca poderei ser.
***
(Fernando Pessoa)

quinta-feira, 25 de março de 2010

Sons íntimos


Abre um pouco os lábios,
deixa-os escutar o que te digo.
***
(Pedro Jordão)

Labirinto ou não foi nada


Talvez houvesse uma flor
aberta na tua mão.
Podia ter sido amor,
e foi apenas traição.
*
É tão negro o labirinto
que vai dar à tua rua…
Ai de mim, que nem pressinto
a cor dos ombros da Lua!
*
Talvez houvesse a passagem
de uma estrela no teu rosto.
Era quase uma viagem:
foi apenas um desgosto.
*
É tão negro o labirinto
que vai dar à tua rua…
Só o fantasma do instinto
na cinza do céu flutua.
*
Tens agora a mão fechada;
no rosto, nenhum fulgor.
Não foi nada, não foi nada:
podia ter sido amor.
***
(David Mourão-Ferreira)

Tela


Hoje sou eu que poso para o teu poema
Como uma modelo numa cama de flores
Que estaria
A vida inteira diante dos teus olhos
Até ser só ossos, ouro, palavras, rebentação.
***
(Ana Salomé)

quarta-feira, 24 de março de 2010

Fingimento


Nunca fui poeta,
fingi que era para sobreviver.
Existe alguma forma mais bonita
de enganar a si mesmo,
brincar de ser profeta,
ser feliz, viver?
Errei?
Sem a menor falsidade,
tenho certeza de que nunca os enganei,
os amigos fingiram gostar dos meus versos
por solidariedade.
***
(Ivone Boechat)

Desencanto


Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.
Meu verso é sangue.
Volúpia ardente...
Tristeza esparsa...
remorso vão...
Dói-me nas veias.
Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.
E nestes versos de angústia rouca,
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.
Eu faço versos como quem morre.
***
(Manuel Bandeira)

segunda-feira, 22 de março de 2010

Chegam cedo demais, quando ainda não podem escolher


Chegam cedo demais,
quando ainda não podem escolher nem decidir.
Vêm carregados de espectros, de memórias
e de feridas que não souberam sarar;
mas trazem a confiança da cura nas palavras.
Convencem-se de que amam outra vez
quando nos tocam os pequenos lugares,
esquecendo-se do rumo incerto dos seus passos
nas estradas tortuosas que os trouxeram.
Abafam-se num cobertor de mentiras sem saber
e falam de injustiça quando tentamos chamá-los à verdade.

Dormem de vez em quando nas nossas camas
e protegemo-los da dor como aos filhos que não iremos ter nunca
porque não nos resignamos a perdê-los.
E, um dia, partem, vão culpados,
não chegam a explicar o que os arrasta.
Escrevem cartas mais tarde
― uma ou duas para se aliviarem dessa espada.
E nós fiamos, eternamente, sem vergonha,
à espera que regressem.
***
(Maria do Rosário Pedreira)

Estou vivo e escrevo sol


Eu escrevo versos ao meio-dia
e a morte ao sol é uma cabeleira
que passa em frios frescos sobre a minha cara de vivo
Estou vivo e escrevo sol

Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam
no vazio fresco
é porque aboli todas as mentiras
e não sou mais que este momento puro
a coincidência perfeita
no acto de escrever sol

A vertigem única da verdade em riste
a nulidade de todas as próximas paragens
navego para o cimo
tombo na claridade simples
e os objectos atiram as suas faces
e na minha língua o sol trepida

melhor que beber vinho é mais claro
ser no olhar o próprio olhar
a maravilha é este espaço aberto
a rua
um grito
a grande toalha do silêncio verde
***
(António Ramos Rosa)

Morto de amor


Que é aquilo que reluz
pelos altos corredores?
Fecha essa porta, meu filho,
acabam de dar as onze.
Em meus olhos, sem querer,
brilham quatro lampiões.
Talvez ainda aquela gente
esteja a polir o cobre.

*

Alho de agónica prata
o quarto minguante, põe
cabeleiras amarelas
sobre as amarelas torres.
A noite chama a tremer
a vidraça das varandas,
perseguida pelos mil
rafeiros que não a conhecem,
e um olor de vinho e âmbar
solta-se dos corredores.

*

Brisas de cana molhada
e rumor de velhas vozes
ressoavam pelo arco
quebrado da meia-noite.
Os bois e as rosas dormiam.
Somente nos corredores
as quatro luzes clamavam
com o furor de S. Jorge.
Tristonhas mulheres do vale
desciam seu sangue de homem,
tranquilo de flor cortada
e amargo de coxa jovem.
E velhas mulheres do rio
choravam ao pé do monte
um minuto intransitável
de cabeleiras e nomes.
Fachadas de cal tornavam
quebrada e branca essa noite.
Ciganos e serafins
tocavam acordeões.
Minha mãe, quando eu morrer,
que se informem os senhores.
Põe telegramas azuis
que cheguem ao Sul e ao Norte.
Sete gritos, sete sangues,
sete duplas papoulas,
quebraram opacas luas
pelos escuros salões.
Coberto de mãos cortadas
e de grinaldas de flores,
o oceano dos juramentos
ressoava, não sei onde.
E o céu batia nas portas
do brusco rumor do bosque,
enquanto as luzes clamavam
pelos altos corredores.
***
(Frederico García Lorca)

sexta-feira, 19 de março de 2010

Dia do Pai

Duas flores num jardim de Primavera
***
Entraste com teus pés de algodão suave
sobre a rama do silêncio.
A sala do sossego - agora a presença tímida e ousada
da criança que experimenta a resposta do adulto.
A tua carita dizia mais que todas as palavras.
Infantil, muito querida, de cabelos atirados para trás,
Reviraste os olhitos e, serena, perguntaste:
“Pai, achas que estou bonita?”
E o teu pai, mais que responder-te,
queria abraçar-te muito.
“Pai, esta flor é para ti.”
Naquele instante, não sabia o que era mais bonito:
se a camélia... se a tua carita... se as tuas palavras...
“Pai, esta flor é para ti.”
E o teu pai recebeu a flor
e colou um beijinho na conchilinha da tua mão.
“Obrigado, filha. És muito bonita
e eu gosto muito desta flor.”
***
(Manuel Maria)
Tu, meu pai
***
Foste o meu maior exemplo, o meu único ídolo.
Foste o primeiro homem da minha vida.
O único que amo e amarei até ao último dos meus dias.
*
Foste criança comigo, foste amigo, foste defensor, foste duro quando precisaste ser.
Foste o meu chão, onde me sentia segura e foste as minhas asas quando quis voar.
Foste parte dos meus sonhos e a minha melhor realidade.
*
Foste parte das minhas vitórias e estiveste sempre presente nas horas da minha fraqueza.
Foste a minha força e a minha coragem.
Foste o sorriso que coroava as minhas alegrias e o colo onde chorei as minhas tristezas.
*
Foste a luz que iluminou o meu caminho. Foste esse caminho.
Foste palavras e gestos que fizeram de mim a pessoa que sou.
Foste sorrisos e lágrimas, foste beleza e verdade.
*
Foste o melhor pai do mundo!
És o melhor pai do mundo!
Serás sempre o melhor pai do mundo!
***
(Cris)
(Homenagem ao melhor pai do mundo. O meu.)

terça-feira, 16 de março de 2010

Encantação


Encontro no teu amor o ouro puro
O brilho que me dá luz, que me dá vida
Paixão que me ilumina qual Sol o dia
Tu és o meu desejo, tu és meu tudo
*
Não há amor igual no mundo, julgo
Que tal doçura tenha, tal magia
O teu carinho e ternura é que me guia
És razão do meu ser, te amo e adulo
*
Sem ti, nem é possível o paraíso
Pois em ti está todo o fim e princípio
És a razão do meu próprio coração
*
Sem ti, até o mundo, é tão escuro
Tão negro, tão vazio, tão confuso
Tu és, amor, meu encanto e encantação
***
(Silvério Gabriel de Melo)

Eu


Quero escrever versos,
Versos de amor, de ironia,
Quero preencher todos os espaços,
Desta folha vazia.
*
Quero, ao escrever,
Ser completamente livre,
Lembrar-me do que quis ter,
Mas que nunca tive.
*
Quero com estas tantas palavras,
Que escrevo sem encontrar fim
Encher além destas folhas brancas,
Os espaços imensos que há em mim.
*
Lembrar, esquecer
Dormir, acordar,
Desejar morrer,
E depois lamentar.
*
Senti a presença da solidão,
Ri as lágrimas que não chorei,
Agindo com o coração,
Sempre errei.
*
Escrevo partes do que sou,
E dedico-tas a ti,
Mas só eu o sei,
Não sairá daqui.
*
Todas as lágrimas foram enxutas,
Neste pedaço de papel,
que agora é um pouco de mim,
As minhas palavras sentidas, doces ou brutas,
Assim como eu chegaram ao fim.
***
(Inês Delgado)

sexta-feira, 12 de março de 2010

Suave


Sincera como as crianças
falas com o corpo todo.
Ainda quando descansas
há peixes vivos no lodo.
Recebem-me as tuas pernas,
durmo encostado ao teu braço,
tuas rudes frases ternas
lavam o rumo que faço.
Se neste Inverno me alargo
pelos caminhos adversos,
és tu o café amargo
que aquece o peito aos meus versos.
O teu sorriso perfeito,
mais leve que um voo de ave,
é o leito em que me deito,
suave, suave, suave, suave.
***
(Vasco Costa Matos)

Conto


No meu conto,
Não havia fadas
Não havia príncipes
Não havia sapatinhos
Não havia charrete
*
No meu conto,
Havia sonhos
Havia amor
Havia saudades
*
Sem fadas ,
Não vi o príncipe
Não fui ao baile
Não fui princesa
Não perdi o sapatinho
Fui apenas gata borralheira.
***
(Flor Pedrosa)

Os teus lábios


Inclina para mim os teus lábios
e que ao sair da minha boca
a minha alma volte a entrar dentro de ti.
***
(Denis Diderot)

segunda-feira, 8 de março de 2010

Feminina


Eu queria ser mulher pra me poder estender
Ao lado dos meus amigos, nas banquettes dos cafés.
Eu queria ser mulher para poder estender
Pó de arroz pelo meu rosto, diante de todos, nos cafés.
*
Eu queria ser mulher pra não ter que pensar na vida
E conhecer muitos velhos a quem pedisse dinheiro
-Eu queria ser mulher para passar o dia inteiro
A falar de modas e a fazer «potins» – muito entretida.
*
Eu queria ser mulher para mexer nos meus seios
E aguçá-los ao espelho, antes de me deitar
-Eu queria ser mulher pra que me fossem bem estes enleios,
Que num homem, francamente, não se podem desculpar.
*
Eu queria ser mulher para ter muitos amantes
E enganá-los a todos – mesmo ao predilecto
-Como eu gostava de enganar o meu amante loiro, o mais esbelto,
Com um rapaz gordo e feio, de modos extravagantes…
*
Eu queria ser mulher para excitar quem me olhasse,
Eu queria ser mulher pra me poder recusar…
***
(Mário de Sá-Carneiro)
Feliz Dia da Mulher!

domingo, 7 de março de 2010

Trono

Pus-te num trono,
que é o lugar onde deve estar quem se ama,
esse lugar da alma que, sendo íntimo,
não esconde a aparência de altar
de uma igreja singular.
Mas, como a crença é sempre vacilante
e não se pode ter por adquirida,
hás-de saber que nada nos garante
que eu fique a venerar-te toda a vida.
***
(Torquato da Luz)

quarta-feira, 3 de março de 2010

Sentimental


Ponho-me a escrever teu nome
com letras de macarrão.
No prato, a sopa esfria, cheia de escamas
e debruçados na mesa todos contemplam
esse romântico trabalho.
Desgraçadamente falta uma letra,
uma letra somente
para acabar teu nome!
- Está sonhando? Olhe que a sopa esfria!
Eu estava sonhando…
E há em todas as consciências um cartaz amarelo:
“Neste país é proibido sonhar”.
***
(Carlos Drummond de Andrade)

E de novo a armadilha dos braços

E de novo a armadilha dos abraços.
E de novo o enredo das delícias.
O rouco da garganta, os pés descalços
a pele alucinada de carícias.
As preces, os segredos, as risadas
no altar esplendoroso das ofertas.
De novo beijo a beijo as madrugadas
de novo seio a seio as descobertas.
Alcandorada no teu corpo imenso
teço um colar de gritos e silêncios
a ecoar no som dos precipícios.
E tudo o que me dás eu te devolvo.
E fazemos de novo, sempre novo
o amor total dos deuses e dos bichos.
***
(Rosa Lobato de Faria)