terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Paixão


Ficávamos no quarto até anoitecer, 
ao conseguirmos situar num mesmo poema o coração e a pele
quase podíamos erguer entre eles uma parede
e abrir depois caminho à água.

Quem pelo seu sorriso então se aventurasse
achar-se-ia de súbito em profundas minas,
a memória das suas mais longínquas galerias
extrai aquilo de que é feito o coração.

Ficávamos no quarto, onde por vezes
o mar vinha irromper. É sem dúvida em dias de maior paixão
que pelo coração se chega à pele.
Não há então entre eles nenhum desnível.
***
(Luís Miguel Nava)

Litania



O teu rosto inclinado pelo vento;
a feroz brancura dos teus dentes;
as mãos, de certo modo, irresponsáveis,
e contudo sombrias, e contudo transparentes;

o triunfo cruel das tuas pernas,
colunas em repouso se anoitece;
o peito raso, claro, feito de água;
a boca sossegada onde apetece

navegar ou cantar, ou simplesmente ser
a cor dum fruto, o peso duma flor;
as palavras mordendo a solidão,
atravessadas de alegria e de terror,

são a grande razão, a única razão.
***
(Eugénio de Andrade)

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

O último andar



Era o último amor. A casa fria,
os pés molhados no escuro chão.
Era o último amor e não sabia
esconder o rosto em tanta solidão.

Era o último amor. Quem adivinha
o sabor breve pela escuridão?
Quem oferece frutos nessa neve?
Quem rasga com ternura o que foi verão?

Era o último amor, o mais perfeito
fulgor do que viveu sem as palavras.
Era o último amor, perfil desfeito
entre lumes e vozes e passadas.

Era o último amor e não sabia
que os pés à terra nua oferecia.
***
(Luís Filipe Castro Mendes)

O espírito



Nada a fazer amor, eu sou do bando
Impermanente das aves friorentas;
E nos galhos dos anos desbotando
Já as folhas me ofuscam macilentas;

E vou com as andorinhas. Até quando?
A vida breve não perguntes: cruentas
Rugas me humilham. Não mais em estilo brando
Ave estroina serei em mãos sedentas.

Pensa-me eterna que o eterno gera
Quem na amada o conjura. Além, mais alto,
Em ileso beiral, aí espera:

Andorinha indemne ao sobressalto
Do tempo, núncia de perene primavera.
Confia. Eu sou romântica. Não falto.
***
(Natália Correia)

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

No avesso dos voos


Há pássaros que me doem no avesso
dos voos. Como se engolisse a vertigem
de um caos de penas e perdas. Acentos
graves em desassiso na queda invertida das
lágrimas
           
do fundo de mim para a superfície dos teus
olhos.

E sei que não há outra pele que me salve
da solidão. Porque tu corres-me por dentro
do corpo. Qual seiva espessa do ar que me
atravessa. Um abismo de sopros a romper-me
o peito. Tempestade de reversos. O oposto do
teu toque.

Há pássaros que me doem no avesso
das asas, sabes. Como se a vida fosse este caminho
de pernas para o ar. Um horizonte desenhado
ao contrário. Um céu que piso sob o peso da terra.

Há pássaros que me doem, meu amor.
No avesso dos voos.
***
(Virgínia do Carmo)

Passos


revejo-te na luz silente da tua pele, e na noite ambígua
das tuas mãos. revejo os teus pés de romã e a língua rubra
de todas as manhãs. é na luz submersa do despertar
que sinto os teus passos, que não oiço, que não vejo.
são nebulosas, os teus passos. são passos ausentes,
os teus passos. são pássaros de fogo e eternidade
na luz débil das estrelas. são a água que escorre dos
meus braços e a língua de fogo do meu ventre escondido.
revejo-te silencioso, nas estórias que me conto e na memória
de uma noite sob a água e a chuva e a dança das mãos.
da tua pele, fiz uma manta de retalhos de sombras,
e com ela teci a obnibulada manhã do despertar dos ossos.
é com ela que me visto. é com ela que te visito.
é assim que te sei. manhã submersa de cada recanto
dos meus olhos. tecido estranho das vestes das noites.
visão ansiada das pálpebras da realidade. pés que caminham
sobre o chão que piso. geometria de tudo o que sei. pele.
***
(Susana Duarte)

Identidade


Preciso ser um outro
para ser eu mesmo

Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta

Sou pólen sem insecto

Sou areia sustentando
o sexo das árvores

Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro

No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço
***
(Mia Couto)

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Inventário



De que sedas se fizeram os teus dedos,
De que marfim as tuas coxas lisas,
De que alturas chegou ao teu andar
A graça de camurça com que pisas.
*
De que amoras maduras se espremeu
O gosto acidulado do teu seio,
De que Índias o bambu da tua cinta,
O oiro dos teus olhos, donde veio.
*
A que balanço de onda vais buscar
A linha serpentina dos quadris,
Onde nasce a frescura dessa fonte
Que sai da tua boca quando ris.
*
De que bosques marinhos se soltou
A folha de coral das tuas portas,
Que perfume te anuncia quando vens
Cercar-me de desejo a horas mortas.
***
(José Saramago)

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Há um ruído de asas que te é próximo



Os anjos alados 
da memória 

com as suas asas 
de pérgula 
e medronho 

a voarem noite dentro, 
pelo sonho 

Serás de branco 
despojada de tudo 
à cabeceira 

por detrás do meu ombro 
anjo mudo 

Serás de branco 
despojada de tudo, 

asas supostas 
de ti 
à minha beira 

O pássaro cintilante 
da tua nudez 
(uma matriz calada) 

Da tua nudez 

Com os teus seios 
de anjo 
sob as asas 

A tomares conta 
da memória 

És um pássaro – digo 
És um pássaro 

com penas 
cintilantes 
dos teus olhos 

As tuas asas 
de pétalas 

tecidas com a luz 
das penas 
das asas que te crescem 

Poisar um pouco 
nos parapeitos 
da memória 

antes de recomeçar 
o voo 
de regresso a casa 

Com as nossas asas 
lúcidas: 
translúcidas e pálidas 

Deixa-me voar 
por cima do teu 
colo 

até ir poisar 
na tua alma 

É a memória, 
dos teus dedos pisados 
nas asas dos meus ombros 

Entrelaçados 
Enlaçados 

Como entranças 
os sonhos 

As tuas asas de prata 
que atravessam a voar 
o território 
brando 
das minhas lágrimas 

Este 

é o inconsciente 
dos teus olhos 
de águas postas – de águas sobrepostas 

– rente 

à meiga – à mansíssima 
racha 
do teu ventre 

Em voo raso 
perto da sua boca: 

A ouvir a memória... 

Há um ruido de 
asas 
que te é próximo 

um odor a flor, 
a framboesa 

um sabor a leite 
e a morango 
numa uterina luz de penumbra acesa 

Um pouco acima 
dos teus olhos, 
como um pássaro 

a voar por dentro, 
bem por dentro 
do interior dos lábios... 

do corpo 

A parte que é 
anjo 
do teu corpo 

e me procura a meio 
da madrugada 

Sobrevoando o lago 
que é suposto 
ser no meu sono 
aquilo que calava 

A parte que é 
anjo 
do teu corpo 

e me visita 
a meio da madrugada 

descansando as asas 
dos teus ombros, 
a meu lado: 
em cima da almofada 

Voava, 
com a memória 
das asas 

no sentido inverso 
do silêncio 

e do sono 

Oiço atrás de mim, 
o breve respirar 
das tuas asas 

– quase imperceptivel – 

Um ligeiro arfar 
Como a brisa a passar
por entre as casas
***
(Maria Teresa Horta)

Companhia



Passei o dia com o teu céu
lá fora choveu
em mim fez sol.
***
(Alice Ruiz)

o sol por destino



somos

os que não calam

não se curvam

muitos mais que

o silêncio

a sombra

o desmando



o sol

é destino de

aí iremos

mesmo se sem asas

voaremos

mais alto que



o lado negro da luz

fenecerá
***
(António José Cravo)

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Desenho


Quem és tu?
Que me desenhas no espelho um corpo nu...

e a roupa de existir dorme em outro armário
o sono justo dos cansados de mim.

Afinal, quem és tu? Que desbotas no espelho...
***
(Leila Krüger)

Temor



Esses momentos breves
De ventura, e em que um raio doce aclara
Um trecho à tua tenebrosa vida:
Saboreá-los deves,
Esses momentos de fugaz ventura.
– Esta é como esquisita fruta rara,
Por muito rara, muito apetecida;
Fruta, cujo sainete pouco dura,
Saboreada com vagar, embora;
Deleita o gosto, assim saboreada,
Porém, sofregamente devorada,
Mata às vezes o louco que a devora!
Que o teu lábio sorria
Enquanto a dor sopita não desperta,
Nem vem do íntimo gozo que cala
Discreto e receoso,
Nenhum rumor alegre despertá-la.
Como um vinho acre-doce, da alegria
Ao saibo às vezes mescla-se o amargoso
De uma tristeza incerta
E vaga... Aos tristes disfarçá-las custa;
Pois, por um só prazer, mesquinho e raro,
A desventura cobra-se tão caro,
Que aos tristes o menor prazer assusta!
***
(Raimundo Correia)

Alma é abismo



pense em tudo o que se empurra 
para o seu âmago 
pedindo: "não volte" 
*
é vertigem exaurida 
em cada fim de dia 
ao mentalizar: "deixe-me dormir" 
*
apanhador de pesadelos 
em premissas tabeladas 
por programas de sobrevivência 
*
alma é onde se encaixota a antivida 
enquanto se sorri à morte 
da pouca matéria
***
(Lara Amaral)

Flash


Escrevo nas pedras 
um postulado 
redentor.
Indiferentes 
as árvores 
pintam 
as folhas
de um sabor vermelho 
os pássaros 
equilibram 
seus ninhos 
no vento 
e é tão clara 
a sapiência deste chão 
que me apetece 
rasgar 
as utopias 
e seguir 
paralelo 
ao fervor dos insetos.
***
(Helena Figueiredo)

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Um dia


Um dia 
vou dizer-te
a versão eloquente
de quem fomos,
*
...dizer-te
dum pretérito simples
e dum futuro incondicional
incerto.
*
Leremos livros
de odores ligeiros
saboreando chás
de sabores diversos,
*
diremos poemas
inventaremos núpcias
juraremos juras
e cantaremos versos,

descobriremos portos
barcos, travessias, 
tormentas brancas
e algumas calmarias...
*
Tudo isto amor
e nada mais,
brandos e contemplativos,
*
eu prometo,
*
...um dia.
***
(Teresa Cunha)


Encontro na tua sombra 
A luz dos meus dias, 
Virgens de sonhos reais, 
Mas fonte de reais sonhos, 
Onde o infinito se desfaz, 
Em pedaços do que seria 
E nunca será!
Lá, estou sempre lá, 
O cá fica mais longe!
***
(Teresa Poças)

o profundo azul da noite


O azul que me veste as mãos por dentro
é ainda o profundo azul da noite
em que bebi no sal da tua pele
o branco aceso do meu corpo
e o silêncio da aragem miúda
que antes da chegada do vento
te havia de romper os olhos
em lágrimas de espanto e sede
pela sombra dos meus dedos.
***
(Ana Oliveira)


terça-feira, 6 de novembro de 2012

Poema ingénuo


só o belo redime 
só o belo evoca 
silêncios sublimes 
espanto 
*
 não sei o que ele é 
 mas sei 
que me transtorna
comove 
excita 
estimula 
e se me cala 
pela sua perfeição 
ou um pormenor seu 
detém o olhar 
do meu corpo 
fico num estado 
de paixão subtil 
que fala baixinho 
e namora comigo 
até aparecer 
um gesto 
um olhar 
*
 talvez mesmo 
 um simples 
 beijo
***
(José Manuel Marinho)

Por isso não gosto de amoras


A lua havia de cair um dia
no chão mais próximo. 
Num lugar que havia de desvelar a palavra. 
Havia de tombar 
era irremediável. 
Sei-o agora. 
*
Mas resvalou 
desgovernada 
roubada por outras solicitações.
As esplanadas 
os bancos de jardim 
os livros 
passaram então a ser-me ardis. 
De traição em punho. 
Por isso 
já nada se parece 
com a glória antiga 
largada agora noutra morada. 
*
Depois o intragável escuro. 
Um escuro que não me deixa saber 
o elementar e o secundário. 
Entardeceram ambos. 
*
Já nada sei 
depois que o mar lambeu a areia 
e desfez a palavra. 
Se é que alguma vez soube. 
Se é que alguma vez a palavra existiu. 
E se existiu foi num instante. 
Num muro de silvas 
entre amoras falsas.
***
(Rita Carrapato)

terça-feira, 30 de outubro de 2012

As facas


Quatro letras nos matam quatro facas 
que no corpo me gravam o teu nome. 
Quatro facas amor com que me matas 
sem que eu mate esta sede e esta fome. 
*
 Este amor é de guerra. (De arma branca). 
Amando ataco amando contra-atacas 
este amor é de sangue que não estanca. 
Quatro letras nos matam quatro facas. 
*
 Armado estou de amor. E desarmado. 
Morro assaltando morro se me assaltas. 
E em cada assalto sou assassinado. 
*
 Quatro letras amor com que me matas. 
E as facas ferem mais quando me faltas. 
Quatro letras nos matam quatro facas.
***
(Manuel Alegre)

Canção grata


Por tudo o que me deste: — Inquietação, cuidado, 
(Um pouco de ternura? E certo, mas tão pouco!) 
Noites de insónia, pelas ruas, como um louco... 
Obrigado, obrigado! 
*
 Por aquela tão doce e tão breve ilusão. 
(Embora nunca mais, depois que a vi desfeita, 
Eu volte a ser quem fui), sem ironia: aceita
A minha gratidão! 
 *
Que bem me faz, agora, o mal que me fizeste! 
— Mais forte, mais sereno, e livre, e descuidado... 
Sem ironia, amor: — Obrigado, obrigado 
Por tudo o que me deste!
***
(Carlos Queiroz)


É um corpo



Estão aqui 37 graus. 
É um corpo. 
E ninguém se aproxima 
senão para recuar. 
Devorar. 
Ou ficar.
***
(Vasco Gato)

Carícia


A pele é o mar: 
aqui desaguam 
os rios da vida. 
 A pele é o cântaro: 
 aqui se guardam 
 todas as águas, 
 chuvas de alegria 
 ou lágrimas. 
 A pele é o mapa: 
 aqui se gravam 
 todos os ventos. 
 Escreva na pele do outro, 
com a ponta dos dedos, 
o alfabeto mais antigo, 
 sussurro, 
estrela,
carícia.
***
(Roseana Murray)

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Um rosto



Apenas uma coisa inteiramente transparente: o céu, 
e por baixo dele a linha obscura do horizonte nos teus olhos, 
que pude ver ainda através de pálpebras semicerradas, 
pestanas húmidas da geada matinal, 
uma névoa de palavras murmuradas num silêncio de hesitações. 
Há quanto tempo, tudo isto? 
Abro o armário onde o tempo antigo 
se enche de bolor e fungos; 
limpo os papéis, cartas que talvez nunca tenha lido até ao fim, 
foto- grafias cuja cor desaparece, 
substituindo os corpos por manchas vagas 
como aparições; 
e sinto, eu próprio, 
que uma parte da minha vida 
se apaga com esses restos. 
***
(Nuno Júdice)

Enquanto



Enquanto 
um calor mole nos tira a roupa 
e mesmo nus sobre a cama 
os corpos continuam a pedir água 
em vez doutro corpo, 
penso no tempo em que o suor 
e a saliva e o odor e o esperma 
faziam dessa agonia 
a alegria 
a que chamávamos amor. 
***
(Eugénio de Andrade)

Dá a surpresa de ser


Dá a surpresa de ser. 
É alta, de um louco escuro. 
Faz bem só pensar em ver 
Seu corpo meio maduro. 
*
 Seus seios altos parecem 
(Se ela estivesse deitada) 
Dois montinhos que amanhecem 
Sem ter que haver madrugada. 
*
 E a mão do seu braço branco 
Assenta em palmo espalhado 
Sobre a saliência do flanco 
Do seu relevo tapado. 
*
Apetece como um barco. 
Tem qualquer coisa de gomo. 
Meu Deus, quando é que eu embarco? 
Ó fome, quando é que eu como?
***
(Fernando Pessoa)

Tua ausência


Tua ausência cala o mundo, o mar, os ventos. 
 Tua ausência desaba silenciosamente sobre os meus dias, 
soterrando meu outono… 
 ela magoa demais o meu sossego. 
 (Tua ausência é essa substância densa) 
 Tua ausência é tão presente que é pessoa… 
 E me abraça.
***
(Marla de Queiroz)

Espero-te



Amo-te em cada beijo que não te dou, 
 em cada olhar que perco por sobre as nuvens, 
 e em cada verso que me escapa por entre os dedos 
Amo-te nos gritos do meu silêncio, 
 nas noites que não têm fim, 
 e em cada lágrima que teima em não cair
Amo-te nas lembranças que já nem me lembro, 
 nas cinzas de todas as horas, e nas dores que irei sentir 
 Amo-te assim feito um louco, e feito louco, 
 busco-te ferozmente em cada palavra, em cada objeto, 
 em cada mísero grão de tempo 
 Amo-te, e por amar-te tanto, espero-te, 
 ainda que nunca me ouças chamar, 
 e ainda que nunca tenhas partido.
***
(Marcelo Roque)

terça-feira, 26 de junho de 2012

As pedras




As pedras falam? pois falam 
 mas não à nossa maneira, 
 que todas as coisas 
sabem uma história que não calam. 
 * 
 Debaixo dos nossos pés 
ou dentro da nossa mão 
 o que pensarão de nós? 
 O que de nós pensarão? 
 * 
 As pedras cantam nos lagos
 choram no meio da rua 
 tremem de frio e de medo 
 quando a noite é fria e escura. 
 * 
 Riem nos muros ao sol, 
 no fundo do mar se esquecem. 
 Umas partem como aves 
 e nem mais tarde regressam. 
 * 
 Brilham quando a chuva cai. 
 Vestem-se de musgo verde 
 em casa velha ou em fonte 
 que saiba matar a sede. 
 * 
 Foi de duas pedras duras 
 que a faísca rebentou: 
 uma germinou em flor 
 e a outra nos céus voou. 
 * 
 As pedras falam? pois falam. 
 Só as entende quem quer, 
 que todas as coisas 
têm uma coisa para dizer. 
 ***
  1. (Maria Alberta Menéres)


Porque o fim de um caminho...


Porque o fim de um caminho sempre me entregou
 o limiar de outro caminho,
 o verde de um campo ou de um corpo adolescente,
 espero que regresse à minha voz
 a luz que no primeiro dia a fecundou
 e a terra que é contorno dessa luz.
*
 Porque espero ver crescer minhas mãos dessa terra
 e de minhas mãos a água necessária à minha sede,
 ergo de mim a noite residual do que vivi
 e canto,
 canto provocando a madrugada.
*
 Porque outros entoarão meu requiem e outros cerrarão
 minhas pálpebras para defender meus olhos de suas lágrimas,
 deixo essa glória aos outros
 - e exalto o meu nascimento
 e cada dia em que renasço e procuro
 a boca ou o fruto onde se reflitam os meus lábios.
*
 Porque, harmonizando-se no sangue o fogo e a água,
 eu sou o fogo e a água:
 por mim os cadáveres
e quanto é feito da matéria dos cadáveres
 libertar-se-ão em chamas, serão claridade
 e chegarão a pão pela dádiva das cinzas,
 a última dádiva, a total.
 ***
(José Bento)

Corpos


Teu corpo é arco
na ponta dos meus dedos
três leves polpas
na flor da minha mão
com que inflamo a manhã
no teu ventre.
*
 mergulhado
nos teus braços
envolto em lábios,
em perfume.
*
 em beijos,
na água do teu pescoço
brando de rosas
nos picos doces
no peito leve.
*
 Quando somos amor
nossos corpos são arcos
***
(José Jorge Frade)

Paráfrase


Este poema começa por te comparar 
com as constelações, 
com os seus nomes mágicos 
e desenhos precisos, 
e depois 
um jogo de palavras indica 
que sem ti a astronomia 
é uma ciência infeliz. 
Em seguida, duas metáforas
 introduzem o tema da luz
 e dos contrastes petrarquistas 
que existem na mulher amada, 
no refúgio triste da imaginação. 
*
 A segunda estrofe sugere 
que a diversidade de seres vivos 
prova a existência de Deus 
e a tua, ao mesmo tempo 
que toma um por um 
os atributos 
que participam da tua natureza 
e do espaço criador 
do teu silêncio. 
*
 Uma hipérbole, finalmente, 
diz que me fazes muita falta. 
*** 
(Pedro Mexia)

quarta-feira, 18 de abril de 2012

...



"Serenidade não é indiferença."
***


(Uma frase que me transmitiu a força de um poema.
E é por essa razão que a "planto" neste meu jardim.)



A poesia não morreu



A minha impaciência não cabe no poema
ou na pedra afiada pelo silêncio
que me fere os pulsos.
Gravei a sangue o furor dos dias
e deixei rasgar em minha boca
os frutos da sede e do assombro.
Não me venham dizer
que precisamos de profetas
ou de heróis ou de sábios
para o mundo ser salvo.
Nós acreditamos que o brilho das manhãs
se arredonda nas arcadas do tempo
assediando o sonho fraterno dos poetas.
A poesia não morreu.
De memória em memória
ela atravessa as palavras
com a farpa da revolta.
É preciso gritar que a poesia não morreu?
***
(Graça Pires)

No turbilhão



A Jaime Batalha Reis
***

No meu sonho desfilam as visões,
Espectros dos meus próprios pensamentos,
Como um bando levado pelos ventos,
arrebatado em vastos turbillhões...

Num espiral, de estranhas contorções,
E donde saem gritos e lamentos,
Vejo-os passar, em grupos nevoentos,
Distingo-lhes, a espaços, as feições...

-Fantasmas de mim mesmo e da minha alma,
Que me fitais com formidável calma,
Levados na onda turva do escarcéu,

Quem sois vós, meus irmãos e meus algozes?
Quem sois, visões misérrimas e atrozes?
Ai de mim! ai de mim! e quem sou eu?!...
***
(Antero de Quental)

Aspiração



Meus dias vão correndo vagarosos,
Sem prazer e sem dor parece
Que o foco interior já desfalece
E vacila com raios duvidosos.

É bela a vida e os anos são formosos,
E nunca ao peito amante o amor falece...
Mas, se a beleza aqui nos aparece,
Logo outra lembra de mais puros gozos.

Minha alma, ó Deus! a outros céus aspira:
Se um momento a prendeu mortal beleza,
É pela eterna pátria que suspira...

Porém, do pressentir dá-ma a certeza,
Dá-ma! e sereno, embora a dor me fira,
Eu sempre bendirei esta tristeza!
***
(Antero de Quental)

sexta-feira, 9 de março de 2012

Laranja cor de sangue


Está tão escuro que o fim do mundo pode estar próximo.
Convenço-me que vai chover.
Os pássaros no jardim estão silenciosos.
Nada é o que parece,
Nem nós mesmos.

Na nossa rua há uma árvore tão grande
Que podemos esconder-nos todos nas suas folhas.
Nem precisaremos de roupas.
Sinto-me tão velho como uma barata, disseste.
Imagino-me passageiro de um navio-fantasma.

Agora nem um suspiro lá fora.
Se alguém abandonou uma criança no nosso patamar,
Deve estar a dormir.
Tudo está a vacilar na borda de tudo
Com um sorriso polido.

É porque há coisas neste mundo
Sem qualquer solução, disseste.
Nesse instante ouvi a laranja cor de sangue
Rebolar pela mesa e com um baque
Cair no chão rachada ao meio.
***
(Charles Simic)
- Tradução de José Alberto Oliveira

O primeiro pensamento de Deus foi um anjo


O primeiro pensamento de Deus foi um anjo.
A primeira palavra de Deus foi um homem.

Éramos criaturas esvoaçantes,
errantes e desejosas de milhares de anos
antes que o mar e o vento da floresta
nos arrebatassem a palavra.
Hoje como poderemos exprimir
aquilo que em nós é imemorial,
unicamente com os ruídos do nosso passado?

A Esfinge só falou uma vez e disse:
"Um grão de areia é um deserto
e um deserto é um grão de areia,
e agora calemo-nos outra vez."
Eu ouvi a esfinge mas não a entendi.

Uma vez vi o rosto de uma mulher
e senti todos os seus filhos que ainda não tinham nascido
E uma mulher olhou para mim
e aí reconheceu todos os meus antepassados
mortos antes de ela ter nascido.
***
(Kahlil Gibran)

Sinistro


Inclua no seu amor um pouco de desespero
derrame seu potencial de drama nos tapetes
ponha sal nas frutas ácidas
tente um pouco de champagne no sapato
esparrame de preguiça pelos linhos
no espalhafatoso desleixo dos lençóis
use olhos cristalizados, cintilantes
com faíscas no meio das plumagens
aprenda a cantar e a cabriolar um pouco
a dança elástica de uma enguia
se esfregue nas nervuras, descubra trunfos
muito escorregadia
Saiba o zodíaco chinês e as manchas do demônio
conhecedora de alquimias
deguste seus horrores em rituais estranhos
Seja uma ameaça
Dê telefonemas interurbanos em meio à noite
a Angkor, Himalaia, Terra do Fogo
Estilhace as regras desse jogo
que um pouco de maldade é necessária
Libidinosa sempre entre parênteses
esguiche todo esse seu som de dentro
ensopada de paixão e de água fria
leviana até a última mordida
Esquiva como uma taturana
penetrando no gargalo da garrafa
estenda suas estrias até o limite da suspeita
pois não há nada como um crime atrás do outro.
***
(Bruna Lombardi)