quarta-feira, 13 de abril de 2011

O beijo


Congresso de gaivotas neste céu

Como uma tampa azul cobrindo o Tejo.

Querela de aves, pios, escarcéu.

Ainda palpitante voa um beijo.

*

Donde teria vindo! (Não é meu...)

De algum quarto perdido no desejo?

De algum jovem amor que recebeu

Mandado de captura ou de despejo?

*

É uma ave estranha: colorida,

Vai batendo como a própria vida,

Um coração vermelho pelo ar.

*

E é a força sem fim de duas bocas,

De duas bocas que se juntam, loucas!

De inveja as gaivotas a gritar...

***

(Alexandre O'Neill)

Beijo


Beijo na face

Pede-se e dá-se:

Dá?

Que custa um beijo?

Não tenha pejo:

Vá!

*

Um beijo é culpa,

Que se desculpa:

Dá?

A borboleta

Beija a violeta:

Vá!

*

Um beijo é graça,

Que a mais não passa:

Dá?

Teme que a tente?

É inocente...

Vá!

*

Guardo segredo,

Não tenha medo...

Vê?

Dê-me um beijinho,

Dê de mansinho,

Dê!

*

Como ele é doce!

Como ele trouxe,

Flor,

Paz a meu seio!

Saciar-me veio,

Amor!

*

Saciar-me? louco...

Um é tão pouco,

Flor!

Deixa, concede

Que eu mate a sede,

Amor!

*

Talvez te leve

O vento em breve,

Flor!

A vida foge,

A vida é hoje,

Amor!

*

Guardo segredo,

Não tenhas medo

Pois!

Um mais na face,

E a mais não passe!

Dois...

*

Oh! dois? piedade!

Coisas tão boas...

Vês?

Quantas pessoas

Tem a Trindade?

Três!

*

Três é a conta

Certinho, e justa...

Vês?

E que te custa?

Não sejas tonta!

Três!

*

Três, sim: não cuides

Que te desgraças:

Vês?

Três são as graças, três as virtudes;

Três.

*

As folhas santas

Que o lírio fecham,

Vês?

E não o deixam manchar,

São... quantas?

Três!

***

(João de Deus)

Canção primaveril



Anda no ar a excitação

de seios súbito exibidos

à turva luz de um alçapão,

por onde os corpos rolarão,

mordidos!

*

Ou é um deus, ou foi a Morte

que nos vestiu este torpor;

e a Primavera é um chicote,

abrindo as veias e o decote

ao meu amor!

*

Esqueço que os dedos têm ossos:

é só de sangue esta carícia;

apenas nervos os pescoços...

Mas nos teus olhos, nos meus olhos,

a luz da morte brilha.

***

(David Mourão-Ferreira)

Quando se quer



Quando se quer

da distância fazer

perto

*

Quando se inventa

do outro

a melhor parte

*

Quando se toma a lonjura

e por certo se tem do incerto

aquilo que não sabe

*

Quando se inventa na espera

o que adivinha

ser pelo excesso a linha do baraço

*

Quando a ausência vacila

no silêncio e traz de volta

o fogo no regaço

***

(Maria Teresa Horta)

Não canto porque sonho



Não canto porque sonho.

Canto porque és real.

Canto o teu olhar maduro,

O teu sorriso puro,

A tua graça animal.

*
Canto porque sou homem.

Se não cantasse seria

somente um bicho sadio

embriagado na alegria

da tua vinha sem vinha.

*
Canto porque o amor apetece.

Porque o feno amadurece

nos teus braços deslumbrados.

Porque o meu corpo estremece

Por vê-los nus e suados.

***

(Eugénio de Andrade)

Das viagens



viajono teu corpo

caminhos

nunca imaginados

*

delírios

de náufrago à deriva

em noite de temporal.

*

viajo em ti

sonhos de uma ternura

nunca sentida.

***

(Ademir António Bacca)

Tu já me arrumaste no armário dos restos



Tu já me arrumaste no armário dos restos

eu já te guardei na gaveta dos corpos perdidos

e das nossas memórias começamos a varrer

as pequenas gotas de felicidade que já fomos.

Mas no tempo subjectivo

tu és ainda o meu relógio de vento

a minha máquina aceleradora de sangue

e por quanto tempo ainda

as minhas mãos serão para ti

o nocturno passeio do gato no telhado?

***

(Isabel Meyrelles)

sábado, 9 de abril de 2011

Felicidade

Pela flor pelo vento pelo fogo

Pela estrela da noite tão límpida e serena

Pelo nácar do tempo pelo cipreste agudo

Pelo amor sem ironia - por tudo

Que atentamente esperamos

Reconheci tua presença incerta

Tua presença fantástica e liberta

***

(Sophia de Mello Breyner Andressen)

*** *** ***



-Este poema é dedicado a ti, Ana Pinheiro. Por todo o carinho que me dás a sentir em cada palavra que me escreves. Obrigada e que o título deste poema seja uma constante na tua vida.-

Não fugir. Suster o peso da hora

Não fugir. Suster o peso da hora

Sem palavras minhas e sem os sonhos,

Fáceis, e sem as outras falsidades.

Numa espécie de morte mais terrível

Ser de mim despojado,

ser abandonado aos pés como um vestido.

Sem pressa atravessar a asfixia.

Não vergar. Suster o peso da hora

Até soltar sua canção intacta.

***

(Cristovam Pavia)

Não toques nos objectos imediatos

Não toques nos objectos imediatos.

A harmonia queima.

Por mais leve que seja um bule ou uma chavená,

são loucos todos os objectos.

Uma jarra com um crisântemo transparente

tem um tremor oculto.

É terrível no escuro.

Mesmo o seu nome, só a medo o podes dizer.

A boca fica em chaga.

***

(Herberto Helder)

...


"Aprendi com as Primaveras a me deixar cortar para poder voltar sempre inteira."

***

(Cecília Meireles)