quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Este amor que nos jorra


Este amor que nos jorra – jorra e queima
em paixão que flutua ou já guerreia
contra si próprio se tornado cinza,
contra o destino se tornado areia…
Este amor é dilúvio – é fora e dentro
mesmo se sabendo que é candeia
a esmorecer em bruma, ao fogo lento
de nos deixar a dor quando se enleia
à nossa desrazão, ao fim do entendimento,
à ambígua amarração de luz e de tormento
nestas bolsas de sal às vezes cheias.
Este amor é de carne – é foz patente
de um rio sempre a crescer, sempre na esteira
do que tão perto está mesmo se ausente.
***
(João Rui de Sousa)

Conto


No meu conto,
Não havia fadas
Não havia príncipes
Não havia sapatinhos
Não havia charrete
*
No meu conto,
Havia sonhos
Havia amor
Havia saudades
*
Sem fadas ,
Não vi o príncipe
Não fui ao baile
Não fui princesa
Não perdi o sapatinho
Fui apenas gata borralheira.
***
(Flor Pedrosa)

Consente-me!!!

Saciar esta vontade,
que aguça a minha curiosidade,
de poder te amar e beijar.
Sentir o teu cheiro,
que misturado com esta flor,
exala um perfume de amor.
Permanecer sempre ao teu lado,
cativar-te, e fazer que confies,
que ainda te posso querer.
Passear com as mãos macias
pelo teu corpo, e fazer-te sentir
a maciez do meu toque.
Acariciar-te hoje,
agora e para sempre.
Envolver-me em teu corpo,
sedoso de paixão, conquistar teu coração
e demonstrar meu desejo de sedução.
***
(José Ernesto Ferraresso)

Charneca em flor


Enche o meu peito, num encanto mago,
O frémito das coisas dolorosas...
Sob as urzes queimadas nascem rosas...
Nos meus olhos as lágrimas apago...
*
Anseio! Asas abertas! O que trago em mim?
Eu oiço bocas silenciosas
Murmurar-me as palavras misteriosas
Que perturbam meu ser como um afago!
*
E, nesta febre ansiosa que me invade,
Dispo a minha mortalha, o meu burel,
E já não sou, Amor, Soror Saudade...
*
Olhos a arder em êxtases de amor,
Boca a saber a sol, a fruto, a mel:
Sou a charneca rude a abrir em flor.
***
(Florbela Espanca)

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Acho que é isso...



tem os que passam
e tudo se passa
com passos já passados
tem os que partem
da pedra ao vidro
e tem, ainda bem,
os que deixam
a vaga impressão
de ter ficado
***
(Alice Ruiz)

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Título por haver





No meu poema ficaste
de pernas para
o ar
(mas também eu
já estive tantas vezes)

Por entre versos vejo-te as mãos
no chão
do meu poema
e os pés tocando o título
(a haver quando eu
quiser)

Enquanto o meu desejo assim serás:
incómodo estatuto:
preciso de escrever-te
do avesso
para te amar em excesso
***
(Ana Luísa Amaral)

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Quimera


Eu quis um violino no telhado
e uma arara exótica no banho.
Eu quis uma toalha de brocado
e um pavão real do meu tamanho.
Eu quis todos os cheiros do pecado
e toda a santidade que não tenho.
Eu quis uma pintura aos pés da cama
infinita de azul e perspectiva.
Eu quis ouvir ouvir a história de Mira Burana
na hora da orgia prometida.
Eu quis uma opulência de sultana
e a miséria amarga da mendiga.
Eu quis um vinho feito de medronho
de veneno, de beijos, de suspiros.
Eu quis a morte de viver dum sonho
eu quis a sorte de morrer dum tiro.
Eu quis chorar por ti durante o sono
eu quis ao acordar fugir contigo.
Mas tudo o que é excessivo é muito pouco.
Por isso fiquei só, com o meu corpo.
***
(Rosa Lobato de Faria)

Breve


Breve
o botão que foste
e o pudor de sê-lo.
Breve
o laço vermelho
dado no cabelo.
Breve
a flor que abriu
e o sol mudou.
Breve
tanto sonho findo
que a vida pisou.
***
(João José Cochofel)

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Suave


Sincera como as crianças
falas com o corpo todo.
Ainda quando descansas
há peixes vivos no lodo.
Recebem-me as tuas pernas,
durmo encostado ao teu braço,
tuas rudes frases ternas
lavam o rumo que faço.
Se neste Inverno me alargo
pelos caminhos adversos,
és tu o café amargo
que aquece o peito aos meus versos.
O teu sorriso perfeito,
mais leve que um voo de ave,
é o leito em que me deito,
suave, suave, suave, suave.
***
(Vasco Costa Matos)

De ser o som do amor tão enleado

De ser o som do amor tão enleado
em cristalinas veias,
em palavras suaves, em recantos
que são gestos bem vivos e são letras
de irradiante lume,
havia este destino que era um lábio
a arder na vastidão de descobrir
o lugar onde ardia este esperar-te.
***
(João Rui de Sousa)

domingo, 10 de outubro de 2010

Lugar nenhum


Chamaste-me
e eu chamei-te.
Encontrámo-nos os dois,
na meia-luz
e à meia-distância,
no ponto onde a luz não era luz
e as trevas não eram trevas,
mas tudo era luz
trevas,
no ponto onde nada era tudo
e tudo era nada,
e não havia tudo nem nada.
No ponto enfim,
onde eu não era eu
e tu não eras tu,
mas eu era tu
e tu eras eu...
Ali ficámos, suspensos no tempo,
em sublime e mútua adoração.
Chegado a este ponto,
contar-vos- ia, talvez, a minha história,
acaso houvesse história
para contar.
Mas é difícil existir história
quando não há princípio nem fim,
e quando o fim é o princípio
e o princípio é o fim
e entre ambos, princípio e fim,
nada mais existe senão
o fim e o princípio deles próprios...
Na verdade, nunca existimos,
ali naquele lugar sem nome,
até ao momento em que, cruelmente,
fomos arrastados de volta a nós mesmos.
Saímos. Saí.
E de fora, não vislumbrava mais
a porta de entrada,
nem conseguia situar o local,
recuperados que estavam os meus conceitos geográficos.
Conclui, pois, que o local não cabia
na Geografia...
Tentei depois, uma vez mais, regressar,
até acabar por entender
que não era a mim que cabia
a escolha do tempo ou do lugar,
mas eram eles que me escolhiam.
Vinham, sem anúncio prévio
ou aviso preparatório,
envolver-me nos seus braços.
Geralmente quando,
incauto e descuidado,
me tivesse esquecido
da imensidade das coisas
que não controlo...
***
(Luís Beirão)

sábado, 9 de outubro de 2010

Poema Suspirado


Algures, num momento de silêncio,
neste campo aberto que é a minha vida,
de noite,
sempre de noite - quando a magia acontece,
surge uma forma no vento
e nele,
um poema suspirado.
É certo que os poemas são mesmo efémeros
e as palavras um dia serão nada,
desaparecerão no esquecimento das eras
tal como as peles que vestimos
e os nomes que ostentamos.
O poema que é teu,
trazido pela brisa que na relva fresca te desenha,
um dia não será mais que outra coisa,
acompanhando-nos,
na impiedosa sucessão de formas e sabores
que provamos
e temos de largar.
*
Mas esse teu suspiro
e essa tua forma
e esse teu poema
e esse teu sentido (tão próximo do meu)
pintaram-se no quadro do horizonte
deste campo aberto que é a minha vida...
e de noite, sempre de noite - quando a magia acontece,
a realidade perceptível da ilusão do universo
colidirá com nossos fogos,
ardendo em uníssono,
dançando no mesmo vento
que agora desenha nós os dois,
que agora suspira o ar quente da cama embriagada,
que nesse momento se deixa entregar...
no mesmo campo aberto que é a nossa vida
e de noite - quando a magia acontece,
àquela pequena parte de um segundo
de uma eternidade passageira.
***
(Rui Diniz)

Por estas noites


Por estas noites frias e brumosas
É que melhor se pode amar, querida!
Nem uma estrela pálida, perdida
Entre a névoa, abre as pálpebras medrosas
Mas um perfume cálido de rosas
Corre a face da terra adormecida ...
E a névoa cresce, e, em grupos repartida,
Enche os ares de sombras vaporosas:
Sombras errantes, corpos nus, ardentes
Carnes lascivas ... um rumor vibrante
De atritos longos e de beijos quentes...
E os céus se estendem, palpitando, cheios
Da tépida brancura fulgurante
De um turbilhão de braços e de seios.
***
(Olavo Bilaque)

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

A palavra


A palavra é uma estátua submersa,
um leopardo que estremece em escuros bosques,
uma anémona sobre uma cabeleira.
Por vezes é uma estrela
que projecta a sua sombra sobre um torso.
Ei-la sem destino no clamor da noite,
cega e nua, mas vibrante de desejo
como uma magnólia molhada.
Rápida é a boca
que apenas aflora os raios de uma outra luz.
Toco-lhe os subtis tornozelos, os cabelos ardentes
e vejo uma água límpida numa concha marinha.
É sempre um corpo amante e fugídio
que canta num mar musical o sangue das vogais.
***
(António Ramos Rosa)

Fim


Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa,
Eu quero por força ir de burro.
***
(Mário de Sá-Carneiro)

Desnecessária explicação


Que importa a melodia,
se acaso aos outros dou,
com pávida alegria,
o pouco que me sou?

Que importa ao que me sabe
estar só no meu caminho,
se dentro de mim cabe
a glória de ir sózinho?

Que importa a vã ternura
das horas magoadas,
se ao meu redor perdura
o eco das passadas?

Que importa a solidão
e o não saber onde ir,
se tudo, ao coração,
nos fala de partir?
***
(Daniel Filipe)

Ver Claro


Toda a poesia é luminosa, até
a mais obscura.
O Leitor é que tem às vezes,
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
Outra vez e outra vez
e outra vez
e essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja de lá chegar.
***
(Eugénio de Andrade)

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

As mãos


as tuas mãos são as mãos mais perfeitas meu amor
e tu bem sabes porquê.
as tuas mãos não são mãos,
mas um círculo em redor de mim
como os anéis em redor de Saturno.
as tuas mãos são como o tronco de heras
que cresce em volta do pinheiro manso no nosso jardim.
tu sabes que o pinheiro não se importa da companhia das heras.
as tuas mãos nunca enxugaram as lágrimas.
mesmo quando parti e as tuas lágrimas correram
correram com a mesma certeza que o rio corre para o mar
na exacta direcção das curvas do teu rosto
umas em direcção à boca
outras precipitando-se do teu queixo
como pingos de chuva, em direcção ao abismo da terra.
as tuas mãos nunca enxugaram lágrimas
porque a terra te pede humidade para crescer
e a tua boca água para matar a sede.
as tuas mãos são flores de veludo.
suaves lilases,
rosas,
orquídeas,
papoilas, margaridas…
as tuas mãos são beijos,
as tuas mãos são bússolas,
manhãs de céu primaveril
que me abrem a porta para comprovar o sol.
as tuas mãos são os teus dedos
e os anéis de noivado e da aliança.
às vezes as tuas mãos são o sal que tempera a comida
o açúcar exacto no café
as mãos de ferro que me brune as camisas
as mãos de aço que me levantam como gruas nos momentos difíceis.
outras vezesas tuas mãos são pirómanas
porque incendeiam cada poro da minha pele
as tuas mãos também são rebeldes
mãos de carne,
de músculo e de osso,
mãos de coração arritmado
por força do compasso mútuo das nossas ancas,
mãos firmes que me fazem arder até mais não.
as tuas mãos desenham as mesmas palavras que a tua boca.
as tuas mãos escrevem cartas de amor
e nelas às vezes eu leio saudade
que é uma palavra complicada de traduzir noutras línguas
e outras mais naturais
como paz,
amor,
mãe,
irmão,
que são palavras simples sem prefixos nem sufixos,
nem aglutinações ou composições,
ou coisas demais complexas que as mãos não entendem.
as tuas mãos e as minhas nunca dirão adeus.
de mãos dadas
dizer adeus é impossível.
***
(José Miguel de Oliveira)

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Poema para Galileu

Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileu! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios.)
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.

Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria…
Eu sei… eu sei…
As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileu Galilei!

Olha. Sabes? Lá em Florença
está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário.

Eu queria agradecer-te, Galileo,
a inteligência das coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar- que disparate, Galileu!
- e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação-
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.

Pois não é evidente, Galileu?
Quem acredita que um penedo caia
com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo da praia?
Esta era a inteligência que Deus nos deu.

Estava agora a lembrar-me, Galileu,
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo
e tinhas à tua frente
um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo
a olharem-te severamente.
Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível que um homem da tua idade
e da tua condição,
se tivesse tornado num perigo
para a Humanidade
e para a Civilização.
Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios,
e percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.

Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas,
desceram lá das suas alturas
e poisaram, como aves aturdidas- parece-me que estou a vê-las -,
nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.
E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite louvores à harmonia universal.
E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma,
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e descrevias
para eterna perdição da tua alma.
Ai Galileu!
Mal sabem os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,
andavam a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.
Tu é que sabias, Galileu Galilei.

Por isso eram teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.
Por isso estoicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto incessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo,
caindo,
caindo,
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa do quadrado dos tempos.

***

(António Gedeão)


quinta-feira, 29 de julho de 2010

O que temos


Deixei contigo o meu amor,
música de açúcar a meio da tarde,
um botão de vestido por apertar
e o da vida por desapertar,
a flor que secou nas páginas de um livro,
tantas palavras por dizer
e a pressa de chegar
com o azul do céu à saída,
por entre cafés fechados e um por abrir.
*
Mas trouxe comigo o teu amor,
os murmúrios que o dizem quando os lembro,
a supresa de um brilho no olhar,
brinco perdido em secreto campo,
o remorso de partir ao chegar
e tudo descobrir de cada vez,
mesmo que seja igual ao que vês
neste caminho por encontrar
em que só tu me consegues guiar.
*
Por isso tenho tudo o que preciso,
mesmo que nada nos seja dado;
e basta-me lembrar o teu sorriso
para te sentir ao meu lado.
***
(Nuno Júdice)
(Obrigada! E que esta singela palavra te diga tudo aquilo que não escrevo aqui.)

Sonhei comigo...


Sonhei comigo esta noite
Vi-me ao comprido deitada
Tinha estrelas nos cabelos
Em meus olhos madrugadas.
Sonhei comigo esta noite
Como queria ser sonhada
Senti o calor da mão
Percorrendo uma guitarra.
De longe vinha um gemido
Uma voz desabalada
Havia um campo de trigo
Um sol forte me abrasava.
E acordei meio sonhando
Procurando me encontrar
Quando me vi ao espelho
Era teu o meu olhar.
***
(Eugénia Tabosa)

Procura a maravilha


Procura a maravilha.
Onde um beijo sabe a barcos e bruma.
No brilho redondo e jovem dos joelhos.
Na noite inclinada de melancolia.
Procura.
Procura a maravilha.
(Eugénio de Andrade)

Promessa


És tu a Primavera que eu esperava,
A vida multiplicada e brilhante,
Em que é pleno e perfeito cada instante.
***
(Sophia de Mello Breyner Andressen)

Respondendo...


Se te quero, te desejo?
Plena em ti me revejo
Meu amor, meu doce enlevo
Meu divagar no vento
Parte de mim, meu sossego
Meu pairar cantante nos ares
Meu afago
Minha pele
De cantantes despertares
Minha lonjura
Tormento
Lágrima oculta
Despedida
Na noite tornada escura
Meu anseio de ventura
Minha canção dolente
Minha luz, minha aurora
Despertando sorridente
Terna forma espiralante
Quadricular, secante
Geometrias perdidas
Simbologias d’outrora
Morango rubro, meu mel
De leve trago a fel
Na hora das despedidas
Meu céu azul, meu luar
Meu voo leve, sereno
Num Outono mui ameno
Chuva d’estrelas, meu mar
Oásis o deserto salvando
Sede que matas a sede
Que em mim tu te perdeste
Eu em ti unificando
Minha fidelidade louca
Em silenciosos falares
Sussuros e murmurares
Cega, surda e mouca
A convites, distracções
Enlevos e seduções
Vivendo p’ra ti somente
Meditando sorridente
***
(Amita)

terça-feira, 27 de julho de 2010

Última Carta


Escrevi-te
como quem pedia água
de que nunca terás sede;
como quem dá
a certeza do Azul
nos dias mais cinzentos;
como quem se dá
na certeza
da troca
que nunca virá.
Escrevi-te
e chamei-te asa
como quem diz
nuvem
e disse viagem
como quem diz
rio
e fogo
e dor...
desta vez, porém
escrevo-te
e chamo-te
longe
como quem diz
lágrima
e despedida!...
***
(Maria Mamede)

Aguardo


como dói! como magoa o peito, este ânsia de respirar todo o ar.
inspiro lenta e profundamente.
alcança-me a brisa soprada dos teus poros. sufoco em ti quando os teus olhos param nos meus. aguardo a chegada da tua boca, dos teus lábios que pingam de desejo, perdidos como nau que não busca rumo.
os teus gestos são os que me despem.
e pedem aos meus que ousem imitá-los.
***
(Luísa Azevedo)

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Ser Poeta

Ser Poeta
é predicado
Não se estuda nem se aprende
É um dom ao nascer dado
Não se compra nem se vende.
*
Ser poeta
é possuir
Rara sensibilidade
Da voz das coisas ouvir
E dar-lhes vitalidade...
*
Ser poeta
é entender
A perene Natureza
E em verso descrever
A sua bruma e beleza...
*
Ser poeta
é divagar
Pelo Universo infinito
Na ânsia de desvendar
O seu mistério inaudito.
*
Ser poeta
é transformar
Duma forma enternecida
As palavras para dar
Mais sentido à própria vida!...
*
Ser poeta
é ter talento
De expressar a inspiração
Ousado eu... Quando tento
Sou apenas pretensão !...
***
(Euclides Cavaco)

O mais perfeito poema



Deus é o grande poeta do universo,
sua poesia tem pouca opção de rima,
Ele sempre dá ênfase em cada verso,
ao amor, desprendimento e estima.

Em sua sabedoria, de infinita ternura.
num gesto meigo e de candura suprema,
à obra da criação deu-lhe total formosura,
Ele inseriu a mulher, seu mais perfeito poema.

Ele fez os últimos retoques e achou-a perfeita,
em cada detalhe, destacou o amor como tema,
deu-lhe aconchego, e para jamais ser refeita,
Ele inseriu a mulher, seu mais perfeito poema.

Ele assistiu desolado, o homem disseminar rancor,
ferir, matar inocentes, viver sempre no dilema,
entre o bem e o mal e para prevalecer o amor,
Ele inseriu a mulher, seu mais perfeito poema.

Não Lhe escapa nenhum detalhe, Ele tudo assiste,
o que vale é a intenção, nós somos seu diadema,
e para amenizar a dor da amargura que existe,
Ele inseriu a mulher, seu mais perfeito poema.

O sofrimento é imenso e o desespero campeia,
os asilos, os hospitais, são um centro de lamento,
e para aliviar a dor que por toda parte vagueia,
Ele inseriu a mulher, seu mais perfeito poema.

E o mundo se transforma, pois a mulher decidiu,
participar, produzir, decidir, não importa o tema,
e agora entendemos porque o mundo tanto evoluiu,
Ele inseriu a mulher, seu mais perfeito poema.

A verdade prevalece, o aconchego amplia o espaço,
foi Deus quem concebeu esse fantástico estratagema,
e podemos relaxar, reduzindo o peso desse cansaço,
pois Deus inseriu a mulher, seu mais perfeito poema.
***
(Bernardino Matos.)

Porta da solidão



À minha porta bateram
e em silêncio fui espreitar
era um rosto que sorria
com olhos de cativar

Deixei-a entrar de mansinho
para com ela conversar
estava triste nesse dia
só me queria consolar

Quando a mandei embora
ela disse: - Vou voltar!
percebi tarde demais
que vinha sem a chamar

Ficou para sempre comigo
como uma sombra no ar
tinha encontrado um abrigo
para em mim, descansar

A porta que fui abrir
foi a do meu coração
era um rosto a sorrir
no corpo da solidão
***
(Mar)

domingo, 25 de julho de 2010

Poema a meu pai...


hoje senti saudades de ti, pai...
saudades de te ter, de te abraçar
hoje senti saudades de ti
saudades de te ver sorrir
saudades da tua face e teus olhos
hoje senti saudade de te olhar
saudades da tua voz
senti saudades de te ouvir falar,
hoje senti saudades de ti
de te ver a trabalhar,
de te ouvir rir,
pena não te ver envelhecer...
ver-te chegar a casa, era uma casa cheia
hoje olhei-me ao espelho, pensei em ti
no verde de meus olhos vi saudade,
vi-te dentro do meu olhar, fiquei ali...
e fiquei nos meus olhos à vontade
pedi então a Deus p'ra adormecer
que pudesse ver-te, ainda que a sonhar
mas não pude dormir, pai ,
não pude...
que a saudade foi mais forte do que eu,
pôs-me chorar...
***
(Tibéu)
Escolhi este poema lindíssimo e publico-o para prestar uma pequena homenagem ao meu querido Pai, que hoje completaria mais um aniversário.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Já não há Domingos...


Todas as vidas gastei
para morrer contigo.
*
E agora
esfumou-se o tempo
e perdi o teu passo
para além da curva do rio.
*
Rasguei as cartas.
Em vão: o papel restou intacto.
Só os meus dedos murcharam, decepados.
*
Queimei as fotos.
Em vão: as imagens restaram incólumes
e só os meus olhos se desfizeram, redondas cinzas.
*
Com que roupa
vestirei minha alma
agora que já não há Domingos?
*
Quero morrer, não consigo.
Depois de te viver
não há poente
nem o enfim de um fim.
*
Todas as mortes gastei
para viver contigo.
***
(Mia Couto)

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Baloiço


Empurrei-te o baloiço, para a frente, para trás,
Tinhas asas, eras pássaro, cometa, avião!
Balançavas como se fosses capaz
De tocar no céu com a tua própria mão!
*
Na praia eras barco, submarino,
peixe, sereia,
Quando te vi, em mergulhos,
partir à conquista do mar!
*
Golfinho entre a espuma das ondas a saltitar
Até terra firme, onde rebolavas na areia!
Quando correste sem parar atrás da bola no relvado,
Eras avançado a marcar golo da vitória!
*
Quando, à noite, te contei uma história,
Tornaste-te rei, um grande herói, príncipe encantado!
Resgataste a princesa do tirano malvado,
E viveste feliz para sempre!
*
Mas quando te peguei ao colo,
eras pequenina novamente,
Aninhaste no meu peito,
quiseste saber de tua mãe.
*
Um anjo caído mesmo à minha frente,
A quem eu, admirado, perguntei:
“O que és tu, afinal, linda criatura,
E com que contagiosa esperança
Brincas, corres e saltas com prazer?”
*
Foi quando me encaraste
cheia de ternura,
E sorrindo, respondeste:
“sou criança,
Por isso, posso ser o que quiser!”
***
(Flipkosta)
(Dedicado à minha sobrinha linda que completa 7 lindos aninhos.
Adoro-te, princesinha!)

domingo, 4 de julho de 2010

Aquele que o meu coração ama


Aquele que o meu coração ama
ergueu-se do meu leito e nele esqueceu
as repetidas promessas de um regresso
em que aos meus olhos ensinaria
a única maneira de esconder
o prenúncio de invisíveis desertos
*
aquele que o meu coração ama
afogou em noites de leite e mel
o rasto dos oásis que
teciam a sede do desejo no meu peito
e bebeu neles as horas de um destino que
me acenava de muito longe
*
aquele que o meu coração ama
partiu às cegas sem descobrir
as húmidas palavras que se espalham
à sombra dos ciprestes
contando os minutos que faltam
para a vertigem do corpo onde o aguardo
***
(Alice Vieira)

sábado, 3 de julho de 2010

Vício


trinco-te as palavras
como a este massapão
de recheio guloso
meu vício é amargoso
porém
nunca morro de indigestão
***
(Rui de Morais)

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Raio de sol


Flor que desabrocha,
raio de sol que tudo ilumina em seu redor…
Inocência tão jovem… tão bela…
Não cresças, eterna criança!
Fica para sempre presa nos laços da infância,
sobre as estrelas do teu céu…
Deixa que a luz desponte em ti,
que o vento sopre orgulhoso no nosso jardim:
“Nasceu uma nova flor…”
***
(Joana Assis)
(Dedicado com muito amor e carinho ao meu querido afilhado que completa hoje o seu primeiro aninho de vida!)

terça-feira, 29 de junho de 2010

Outra coisa

Apresentar-te aos deuses e deixar-te
entre sombra de pedra e golpe de asa
exaltar-te perder-te desconfiar-te
seguir-te de helicóptero até casa
*
dizer-te que te amo amo amo
que por ti passo raias e fronteiras
que não me chamo mário que me chamo
uma coisa que tens nas algibeiras
*
lançar a bomba onde vens no retrato
de dez anos de anjinho nacional
e nove de colégio terceiro acto
*
pôr-te na posição sexual
tirar-te todo o bem e todo o mal
esquecer-me de ti como do gato
***
(Mário Cesariny)

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Conjugamos em coro


Conjugamos em coro
o verbo amanhecer

com sílabas que roubo
ao que a noite nos dê
***
(David Mourão-Ferreira)

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Neurastenia

Sinto hoje a alma cheia de tristeza!
Um sino dobra em mim Ave-Maria!
Lá fora, a chuva, brancas mãos esguias,
Faz na vidraça rendas de Veneza …
*
O vento desgrenhado chora e reza
Por alma dos que estão nas agonias!
E flocos de neve, aves brancas, frias,
Batem as asas pela Natureza …
*
Chuva … tenho tristeza! Mas porquê?!
Vento … tenho saudades! Mas de quê?!
Ó neve que destino triste o nosso!
*
Ó chuva! Ó vento! Ó neve! Que tortura!
Gritem ao mundo inteiro esta amargura,
Digam isto que sinto que eu não posso!!!…
***
(Florbela Espanca)

Estrela perigosa


Estrela perigosa
Rosto ao vento
Marulho e silêncio
leve porcelana
templo submerso
trigo e vinho
tristeza de coisa vivida
árvores já floresceram
o sal trazido pelo vento
conhecimento por encantação
esqueleto de idéias
ora pro nobis
Decompor a luz
mistério de estrelas
paixão pela exatidão
caça aos vagalumes.
Vagalume é como orvalho
Diálogos que disfarçam conflitos por explodir
Ela pode ser venenosa como às vezes o cogumelo é.
No obscuro erotismo de vida cheia
nodosas raízes.
Missa negra, feiticeiros.
Na proximidade de fontes,
lagos e cachoeiras
braços e pernas e olhos,
todos mortos se misturam e clamam por vida.
Sinto a falta dele
como se me faltasse um dente na frente:
excrucitante.
Que medo alegre,
o de te esperar.
***
(Clarice Lispector)

segunda-feira, 7 de junho de 2010

A segurança destas paralelas


A segurança destas paralelas
- a beira da varanda e o horizonte;
assim me pacifico, e é por elas
que subo lentamente cada monte.
*
O tempo arrefecido, e só soprado
por uma brisa tarda que do mar
torna este minuto leve aconchegado
traz mansas as certezas de se estar.
*
E vêm novos nomes: são as fadas,
gigantes e anões, que são assim
alegres de o serem – parcos nadas
*
que enchendo de silêncios este sim
dele fazem brinquedos, madrugadas…
Agora eu estou em ti e tu em mim.
***
(Pedro Tamen)

O relógio da paixão


Um segundo é uma hora
e uma hora é um segundo
no relógio da paixão.
Não há tempo nesse tempo.
Quem ama nunca sabe
as horas que são.
E as horas também não sabem
onde os amantes estão.
No relógio da paixão
O tempo pára, retrocede, avança.
Não está parado nem está
em movimento.
Está perdido, mas não está perdido.
Como tu, que amas, apenas dança.
***
(Álvaro Magalhães)

O estado da paixão


aprendi hoje que a paixão é um estado de alma
demora vinte segundos a ser sentida,
dez anos a ser esquecida
mas quando é correspondida dura toda uma vida.
***
(João Gomes de Almeida )

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Deitada és uma ilha


Deitada és uma ilha.
E raramente
surgem ilhas no mar tão alongadas
com tão prometedoras enseadas
um só bosque no meio florescente
promontórios a pique e de repente
na luz de duas gémeas madrugadas
o fulgor das colinas acordadas
o pasmo da planície adolescente

Deitada és uma ilha.
Que percorro
descobrindo-lhe as zonas mais sombrias
Mas nem sabes se grito por socorro
ou se te mostro só que me inebrias
Amiga amor amante amada
eu morro da vida
que me dás todos os dias.
***
(David Mourão-Ferreira )

Que culpa terão as ondas...


...Que culpa terão as ondas
Dos movimentos que façam?
São os ventos que as impelem
E sulcos profundos traçam.
Aos ventos quem lhes ordena
Que rasguem rugas no mar?
São as nuvens inquietas
Que os não deixam sossegar.
E as nuvens, almas de névoa,
Porque não param, coitadas?
É que as asas das gaivotas
As trazem desafiadas.
Mas as asas das gaivotas
O cansaço há-de detê-las!
Juraram buscar descanso
Nas pupilas das estrelas.
E como as estrelas estão altas
E não tombam nem se alcançam,
As asas das pobrezinhas
Baldamente se cansam
Baldamente se cansam,
Baldamente palpitam!
As nuvens, por fatalismo,
Logo com elas se agitam;
Os impulsos que elas dão
Arrastam as ventanias;
As vagas arfam nos mares
Em macabras fantasias

Assim as almas inquietas
Prisioneiras de ansiedades,
Mal que se erguem da terra,
Naufragam nas tempestades!
***
(Reinaldo Ferreira)

sexta-feira, 21 de maio de 2010

servidão


não suporto os olhos.
longe de ti.
doem-me as têmporas
as aves do rio atravessam
cansadas
a luz que os peixes saquearam.
quero-te única
na vaga medonha
das lembranças
se me dissesses
que és um pouco mais feliz
por seres corpo e pele
do poema.
só os teus olhos escrevem
no meio desta servidão
a palavra dor.
olhos tão ausentes
como uma carta
extraviada
que nunca chega.
sabes o que é a noite?
é um lugar imaginado
donde foges
sempre que me aproximo
dos teus lábios.
sabes o que é a morte?
é não existires
para além
de um instante
de ficção.
***
(Alberto Serra)

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Ofício de morrer


eu imagino assim a morte de pavese:
era um quarto de hotel em turim,
decerto um hotel modesto,
de uma ou duas estrelas,
se é que havia estrelas.
*
uma cama de pau, de verniz estalado,
rangendo de encontros fortuitos,
um colchão mole e húmido
com a cova no meio,
a do costume.
*
corria o mês de agosto com sua terra escura
encardindo as cortinas.
nada ia explodir naquele mês de agosto
àquela hora da tardede luz adocicada.
e alguém pusera três rosas de plástico
num solitário verde.
*
vejo como pavese entrou,
como pousou a maleta com indiferença,
dobrou alguns papéis
e despiu o casaco
(como nos filmes italianos da época).
depois foi aos lavabos
no corredor, ao fundo.
talvez tenha pensado
que esta vida é uma mijadela
ou que.
*
voltou ao quarto,
havia uma fétida alma
em tudo aquilo.
ele abriu a janela
e pediu a chamada telefónica.
a noite ia caindo sem palavras,
mesmo sem businas excessivas.
encheu um copo de água.
e esperou.
*
quando a campainha tocou,
havia muito pouco a dizer
e ele já o tinha dito:
já tinha dito quanto amar nos torna vulneráveis;
e míseros, inermes;
que é precisa humildade, não orgulho;
e parar de escrever;
e que dessa nudez é que morremos.
*
foi mais ou menos isto
– a nossa condição demasiado humana,
a voz humana, a frágil expressão disso tudo,
uma firmeza tensa.
«e até rapariguinhas o fizeram».
tinham nomes obscuros
e nenhum remorso lancinante,
ninguém pra falar delas.
*
a mais temida coisa é a coragem
do que parecia fácil:
tudo o que não se disse
carregado num acto de súbitas fronteiras.
foi mais ou menos isto.
não sei se ele a seguir
pôs do lado de fora um letreiro
com do not disturb ou coisa assim,
nem se tomou as pastilhas uma a uma,
ou se as contou.
*
não sei se o encontrou uma criada,
se a polícia veio logo,
se deixou uma carta ao seu melhor amigo,
se apagou a luz,
nem se pousou ao lado a carteira,
relógio, a esferográfica.
não sei se entrou na morte
como quem traz imagens pungentes na cabeça,
palavras marteladas de desejo,
ou como quem friamente está no avesso do sono
e vai calar-se e é justo.
*
não sei se foi assim, se existe uma outra verdade
imaginável ou vedada.
sei que ele tinha um olhar decidido,
alguma instigadora,
e quarenta e dois anos,
e sei que nessa altura há já poucas verdades
e nenhuma dimensão biográfica na morte.
já vem nas escrituras.
*
eu prefiro dizer que ele fechou a porta à chave
e sei que era viril a sua transparência.
***

(Vasco Graça Moura)

terça-feira, 18 de maio de 2010

Dobrou-se sobre ela


Dobrou-se sobre ela puxou-lhe fogo
Escancarou-lhe os olhos puxou-lhe fogo
Cerziu-se-lhe no peito puxou-lhe fogo
Tirou-lhe pó de cima puxou-lhe fogo
Sentiu-se tão pesado puxou-lhe fogo
Cobriu-a de ar; destapou-lhe a carne; mordeu.

Era fim de tarde era depressa era comprido
Verteu palavras tenras até já não ter voz
Chorou, soletrou-lhe o corpo membro a membro
E foi no soalho a solidão de a desventrar
Tremeu tremeu puxou-lhe fogo

E ela ardeu.
***
(Manuel Cintra)

Breve


Breve
o botão que foste
e o pudor de sê-lo.
Breve
o laço vermelho
dado no cabelo.
Breve
a flor que abriu
e o sol mudou.
Breve
tanto sonho findo
que a vida pisou.
***
(João José Cochofel)

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Príncipe


Príncipe:
Era de noite quando eu bati à tua porta
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e não me conheceste.
Era de noite
são mil e umas
as noites em que bato à tua porta
e tu vens abrir
e não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.
Contudo
quando eu batia à tua porta
e tu vieste abrir
os teus olhos de repente
viram-me
pela primeira vez
como sempre de cada vez é a primeira
a derradeira
instância do momento de eu surgir
e tu veres-me.
Era de noite quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
e viste-me
como um náufrago sussurrando qualquer coisa
que ninguém compreendeu.
Mas era de noite
e por isso
tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te
na escuridão da tua casa.
Ah era de noite
e de súbito tudo era apenas
lábios pálpebras intumescências
cobrindo o corpo de flutuantes volteios
de palpitações trémulas adejando pelo rosto.
Beijava os teus olhos por dentro
beijava os teus olhos pensados
beijava-te pensando
e estendia a mão sobre o meu pensamento
corria para ti
minha praia jamais alcançada
impossibilidade desejada
de apenas poder pensar-te.
São mil e umas
as noites em que não bato à tua porta
e vens abrir-me
***
(Ana Hatherly)

Acho que é isso...


tem os que passam
e tudo se passa
com passos já passados
tem os que partem
da pedra ao vidro
e tem, ainda bem,
os que deixam
a vaga impressão
de ter ficado
***
(Alice Ruiz)

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Sonho domado


Sei que é preciso sonhar.
*
Campo sem orvalho, seca
A frente de quem não sonha.
*
Quem não sonha o azul do vôo
perde seu poder de pássaro.
*
A realidade da relva
cresce em sonho no sereno
para não ser relva apenas,
mas a relva que se sonha.
*
Não vinga o sonho da folhas
e não crescer incrusta
dono sonho que se fez árvore.
*
Sonhar, mas sem deixar nunca
que o sol do sonho se arraste
pelas campinas do vento.
*
É sonhar, mas cavalgando
o sonho e inventando o chão
para o sonho florescer.
***
(Thiago de Mello)