quarta-feira, 28 de novembro de 2012

O último andar



Era o último amor. A casa fria,
os pés molhados no escuro chão.
Era o último amor e não sabia
esconder o rosto em tanta solidão.

Era o último amor. Quem adivinha
o sabor breve pela escuridão?
Quem oferece frutos nessa neve?
Quem rasga com ternura o que foi verão?

Era o último amor, o mais perfeito
fulgor do que viveu sem as palavras.
Era o último amor, perfil desfeito
entre lumes e vozes e passadas.

Era o último amor e não sabia
que os pés à terra nua oferecia.
***
(Luís Filipe Castro Mendes)

O espírito



Nada a fazer amor, eu sou do bando
Impermanente das aves friorentas;
E nos galhos dos anos desbotando
Já as folhas me ofuscam macilentas;

E vou com as andorinhas. Até quando?
A vida breve não perguntes: cruentas
Rugas me humilham. Não mais em estilo brando
Ave estroina serei em mãos sedentas.

Pensa-me eterna que o eterno gera
Quem na amada o conjura. Além, mais alto,
Em ileso beiral, aí espera:

Andorinha indemne ao sobressalto
Do tempo, núncia de perene primavera.
Confia. Eu sou romântica. Não falto.
***
(Natália Correia)

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

No avesso dos voos


Há pássaros que me doem no avesso
dos voos. Como se engolisse a vertigem
de um caos de penas e perdas. Acentos
graves em desassiso na queda invertida das
lágrimas
           
do fundo de mim para a superfície dos teus
olhos.

E sei que não há outra pele que me salve
da solidão. Porque tu corres-me por dentro
do corpo. Qual seiva espessa do ar que me
atravessa. Um abismo de sopros a romper-me
o peito. Tempestade de reversos. O oposto do
teu toque.

Há pássaros que me doem no avesso
das asas, sabes. Como se a vida fosse este caminho
de pernas para o ar. Um horizonte desenhado
ao contrário. Um céu que piso sob o peso da terra.

Há pássaros que me doem, meu amor.
No avesso dos voos.
***
(Virgínia do Carmo)

Passos


revejo-te na luz silente da tua pele, e na noite ambígua
das tuas mãos. revejo os teus pés de romã e a língua rubra
de todas as manhãs. é na luz submersa do despertar
que sinto os teus passos, que não oiço, que não vejo.
são nebulosas, os teus passos. são passos ausentes,
os teus passos. são pássaros de fogo e eternidade
na luz débil das estrelas. são a água que escorre dos
meus braços e a língua de fogo do meu ventre escondido.
revejo-te silencioso, nas estórias que me conto e na memória
de uma noite sob a água e a chuva e a dança das mãos.
da tua pele, fiz uma manta de retalhos de sombras,
e com ela teci a obnibulada manhã do despertar dos ossos.
é com ela que me visto. é com ela que te visito.
é assim que te sei. manhã submersa de cada recanto
dos meus olhos. tecido estranho das vestes das noites.
visão ansiada das pálpebras da realidade. pés que caminham
sobre o chão que piso. geometria de tudo o que sei. pele.
***
(Susana Duarte)

Identidade


Preciso ser um outro
para ser eu mesmo

Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta

Sou pólen sem insecto

Sou areia sustentando
o sexo das árvores

Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro

No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço
***
(Mia Couto)

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Inventário



De que sedas se fizeram os teus dedos,
De que marfim as tuas coxas lisas,
De que alturas chegou ao teu andar
A graça de camurça com que pisas.
*
De que amoras maduras se espremeu
O gosto acidulado do teu seio,
De que Índias o bambu da tua cinta,
O oiro dos teus olhos, donde veio.
*
A que balanço de onda vais buscar
A linha serpentina dos quadris,
Onde nasce a frescura dessa fonte
Que sai da tua boca quando ris.
*
De que bosques marinhos se soltou
A folha de coral das tuas portas,
Que perfume te anuncia quando vens
Cercar-me de desejo a horas mortas.
***
(José Saramago)

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Há um ruído de asas que te é próximo



Os anjos alados 
da memória 

com as suas asas 
de pérgula 
e medronho 

a voarem noite dentro, 
pelo sonho 

Serás de branco 
despojada de tudo 
à cabeceira 

por detrás do meu ombro 
anjo mudo 

Serás de branco 
despojada de tudo, 

asas supostas 
de ti 
à minha beira 

O pássaro cintilante 
da tua nudez 
(uma matriz calada) 

Da tua nudez 

Com os teus seios 
de anjo 
sob as asas 

A tomares conta 
da memória 

És um pássaro – digo 
És um pássaro 

com penas 
cintilantes 
dos teus olhos 

As tuas asas 
de pétalas 

tecidas com a luz 
das penas 
das asas que te crescem 

Poisar um pouco 
nos parapeitos 
da memória 

antes de recomeçar 
o voo 
de regresso a casa 

Com as nossas asas 
lúcidas: 
translúcidas e pálidas 

Deixa-me voar 
por cima do teu 
colo 

até ir poisar 
na tua alma 

É a memória, 
dos teus dedos pisados 
nas asas dos meus ombros 

Entrelaçados 
Enlaçados 

Como entranças 
os sonhos 

As tuas asas de prata 
que atravessam a voar 
o território 
brando 
das minhas lágrimas 

Este 

é o inconsciente 
dos teus olhos 
de águas postas – de águas sobrepostas 

– rente 

à meiga – à mansíssima 
racha 
do teu ventre 

Em voo raso 
perto da sua boca: 

A ouvir a memória... 

Há um ruido de 
asas 
que te é próximo 

um odor a flor, 
a framboesa 

um sabor a leite 
e a morango 
numa uterina luz de penumbra acesa 

Um pouco acima 
dos teus olhos, 
como um pássaro 

a voar por dentro, 
bem por dentro 
do interior dos lábios... 

do corpo 

A parte que é 
anjo 
do teu corpo 

e me procura a meio 
da madrugada 

Sobrevoando o lago 
que é suposto 
ser no meu sono 
aquilo que calava 

A parte que é 
anjo 
do teu corpo 

e me visita 
a meio da madrugada 

descansando as asas 
dos teus ombros, 
a meu lado: 
em cima da almofada 

Voava, 
com a memória 
das asas 

no sentido inverso 
do silêncio 

e do sono 

Oiço atrás de mim, 
o breve respirar 
das tuas asas 

– quase imperceptivel – 

Um ligeiro arfar 
Como a brisa a passar
por entre as casas
***
(Maria Teresa Horta)

Companhia



Passei o dia com o teu céu
lá fora choveu
em mim fez sol.
***
(Alice Ruiz)

o sol por destino



somos

os que não calam

não se curvam

muitos mais que

o silêncio

a sombra

o desmando



o sol

é destino de

aí iremos

mesmo se sem asas

voaremos

mais alto que



o lado negro da luz

fenecerá
***
(António José Cravo)

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Desenho


Quem és tu?
Que me desenhas no espelho um corpo nu...

e a roupa de existir dorme em outro armário
o sono justo dos cansados de mim.

Afinal, quem és tu? Que desbotas no espelho...
***
(Leila Krüger)

Temor



Esses momentos breves
De ventura, e em que um raio doce aclara
Um trecho à tua tenebrosa vida:
Saboreá-los deves,
Esses momentos de fugaz ventura.
– Esta é como esquisita fruta rara,
Por muito rara, muito apetecida;
Fruta, cujo sainete pouco dura,
Saboreada com vagar, embora;
Deleita o gosto, assim saboreada,
Porém, sofregamente devorada,
Mata às vezes o louco que a devora!
Que o teu lábio sorria
Enquanto a dor sopita não desperta,
Nem vem do íntimo gozo que cala
Discreto e receoso,
Nenhum rumor alegre despertá-la.
Como um vinho acre-doce, da alegria
Ao saibo às vezes mescla-se o amargoso
De uma tristeza incerta
E vaga... Aos tristes disfarçá-las custa;
Pois, por um só prazer, mesquinho e raro,
A desventura cobra-se tão caro,
Que aos tristes o menor prazer assusta!
***
(Raimundo Correia)

Alma é abismo



pense em tudo o que se empurra 
para o seu âmago 
pedindo: "não volte" 
*
é vertigem exaurida 
em cada fim de dia 
ao mentalizar: "deixe-me dormir" 
*
apanhador de pesadelos 
em premissas tabeladas 
por programas de sobrevivência 
*
alma é onde se encaixota a antivida 
enquanto se sorri à morte 
da pouca matéria
***
(Lara Amaral)

Flash


Escrevo nas pedras 
um postulado 
redentor.
Indiferentes 
as árvores 
pintam 
as folhas
de um sabor vermelho 
os pássaros 
equilibram 
seus ninhos 
no vento 
e é tão clara 
a sapiência deste chão 
que me apetece 
rasgar 
as utopias 
e seguir 
paralelo 
ao fervor dos insetos.
***
(Helena Figueiredo)

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Um dia


Um dia 
vou dizer-te
a versão eloquente
de quem fomos,
*
...dizer-te
dum pretérito simples
e dum futuro incondicional
incerto.
*
Leremos livros
de odores ligeiros
saboreando chás
de sabores diversos,
*
diremos poemas
inventaremos núpcias
juraremos juras
e cantaremos versos,

descobriremos portos
barcos, travessias, 
tormentas brancas
e algumas calmarias...
*
Tudo isto amor
e nada mais,
brandos e contemplativos,
*
eu prometo,
*
...um dia.
***
(Teresa Cunha)


Encontro na tua sombra 
A luz dos meus dias, 
Virgens de sonhos reais, 
Mas fonte de reais sonhos, 
Onde o infinito se desfaz, 
Em pedaços do que seria 
E nunca será!
Lá, estou sempre lá, 
O cá fica mais longe!
***
(Teresa Poças)

o profundo azul da noite


O azul que me veste as mãos por dentro
é ainda o profundo azul da noite
em que bebi no sal da tua pele
o branco aceso do meu corpo
e o silêncio da aragem miúda
que antes da chegada do vento
te havia de romper os olhos
em lágrimas de espanto e sede
pela sombra dos meus dedos.
***
(Ana Oliveira)


terça-feira, 6 de novembro de 2012

Poema ingénuo


só o belo redime 
só o belo evoca 
silêncios sublimes 
espanto 
*
 não sei o que ele é 
 mas sei 
que me transtorna
comove 
excita 
estimula 
e se me cala 
pela sua perfeição 
ou um pormenor seu 
detém o olhar 
do meu corpo 
fico num estado 
de paixão subtil 
que fala baixinho 
e namora comigo 
até aparecer 
um gesto 
um olhar 
*
 talvez mesmo 
 um simples 
 beijo
***
(José Manuel Marinho)

Por isso não gosto de amoras


A lua havia de cair um dia
no chão mais próximo. 
Num lugar que havia de desvelar a palavra. 
Havia de tombar 
era irremediável. 
Sei-o agora. 
*
Mas resvalou 
desgovernada 
roubada por outras solicitações.
As esplanadas 
os bancos de jardim 
os livros 
passaram então a ser-me ardis. 
De traição em punho. 
Por isso 
já nada se parece 
com a glória antiga 
largada agora noutra morada. 
*
Depois o intragável escuro. 
Um escuro que não me deixa saber 
o elementar e o secundário. 
Entardeceram ambos. 
*
Já nada sei 
depois que o mar lambeu a areia 
e desfez a palavra. 
Se é que alguma vez soube. 
Se é que alguma vez a palavra existiu. 
E se existiu foi num instante. 
Num muro de silvas 
entre amoras falsas.
***
(Rita Carrapato)