domingo, 14 de agosto de 2016

Anadiómene


Das marinhas espumas engendrada,
essa que vai nas águas cristalinas
sobre a concha de nácar, embalada
pelo coro das horas vespertinas,
*
da onda que a gerou, ao sol doirada,
no seio ostenta as curvas peregrinas;
deu-lhe a sereia a voz enamorada,
veste-a de encanto a graça das Ondinas...
*
Ao clarão que em seus olhos amanhece,
a Natureza alvoroçada acorda
e de prazer e júbilo estremece,
*
porque do Amor a misteriosa essência
dos seus peitos, já túmidos, transborda
como o supremo encanto da existência.








***
(António Feijó)

Os silêncios da fala


São tantos
os silêncios da fala
De sede
De saliva
De suor

Silêncios de sílex
no corpo do silêncio
Silêncios de vento
de mar
e de torpor
De amor

Depois, há as jarras
com rosas de silêncio
Os gemidos
nas camas
As ancas
O sabor

O silêncio que posto
em cima do silêncio
usurpa do silêncio o seu magro labor.

***
(Maria Teresa Horta)

sábado, 13 de agosto de 2016

Memória sobre os teus olhos


Magníficos.

como os jactos que aguardam no aeroporto o iminente sinal da partida,

seus grandes olhos imensos escorvam, impacientes,

o subsolo da imagem pressentida.

Perfurantes como as brocas dos mineiros,

pontas de aço-vanádio

que o cubro alcançam sem perder o gume,

um fogo o olhar o queima, um mar invade-o,

um lume feito de água, água de lume.

Súbito, seus grandes olhos imensos descolam e levantam voa.

Ei-los que sobem.

Seu movimento é como se apenas as coisas deles se afastassem,

é como se move o tempo, sem agravo nem estrago,

como boiam as folhas na dormência do lago,

como bate o coração do homem enterrado no chão.

Na estática subida a que se entregam

são o próprio silêncio em que navegam,

são a curva do espaço,

a quarta dimensão.

Cá em baixo,

onde as superfícies se avaliam

multiplicando pi por érre dois,

um formigueiro de bois

desenha na planície coloridos talhões.

Cumprem-se as sementeiras.

As cores são as bandeiras;

os regos, os limites das nações.

Um rabiar de células,

Cultura de bactérias num capacete de aço,

ziguezagueiam, obstinadas como libélulas,

num charco de sargaço.

Entretanto,

seus grandes olhos imensos olham, e olhando,

no desígnio frontal que não hesita nem disfarça,

com linhas de olhos vão bordando a talagarça.

Sento-me à secretária,

preparo-a, limpo-a, esfrego-a

na aflita busca do mais puro espaço,

e com o esquadro e a régua,

o lápis e o compasso,

construo os olhos d'Ela.

Deliberada e escrupulosamente

ergue-se a construção de arquitectura mansa,

quase cinicamente,

como quem premedita uma vingança.

(Aliás

o engano, a ilusão,

a mentira, a falsidade,

o perjúrio, a invenção,

tudo, em Amor, é verdade.)

Eis os mais lindos olhos deste mundo.

O Amor os fez.

Proas de galeões de velas pandas,

meninas a correr que chegam às varandas

olhando o mundo pela primeira vez.

Dou-lhes uns toques nas íris, um tempero

na plácida inocência,

um miligrama de cianeto, morte sem desespero,

acicate da humana permanência.

Sobre o fundo sombrio um tom de folha seca

de plátano, uns veios

de clorofila,

mancha irisada

em redor da pupila,

óleo vertido no asfalto da estrada.

Encosto o rosto às mãos, e embevecido

contemplo a construção de linhas,

e finjo-me esquecido

como se não soubesse que são minhas.

Como se não soubesse

comovo-me e entrego-me no sorriso total,

Construo o meu real

conforme me apetece.

***
(António Gedeão)