segunda-feira, 23 de junho de 2008

Ás vezes a vida não é vida...


Às vezes a vida não é vida.
É o que sobrou da morte.
Um porta-retrato sem foto,
Uma roupa que nunca foi usada.
Às vezes a vida é apenas o que a morte ainda não levou
E embora isso pareça muito, nunca é o bastante…

Olho a vidraça do tempo
E sinto que vai chover por toda a eternidade.

Os dias de sol não brilham o bastante
Para derreter todos os fantasmas.
Olho os pássaros no céu,
Deixo-me levar por eles…

Na verdade já fui para muito longe
E não sei mais quem escreve esses versos…
(Carol Timm)

domingo, 22 de junho de 2008

Referência


Quantas vezes te digo
quantas vezes…
que és para mim
o meu homem amado?
*
O que chega primeiro
e só parte por vezes
antes de eu perceber
que já tinhas voltado
*
Quantas vezes te digo
quantas vezes…
que és para mim
o meu homem amado?
*
Aquele que me beija
e me possui
me torna e me deixa
ficando a meu lado
*
Quantas vezes te digo
quantas vezes…
que és para mim
o meu homem amado?
*
Que sempre me enlouquece
e só aí percebo
como estava perdida
sem te ter encontrado.
(Maria Teresa Horta)

sábado, 21 de junho de 2008

Só tu


Dos lábios que me beijaram,
Dos braços que me abraçaram
Já não me lembro, nem sei…
São tantas as que me amaram!
São tantas as que eu amei!
*
Mas tu - que rude contraste!
Tu, que jamais me beijaste,
Tu, que jamais abracei,
Só tu, nesta alma, ficaste,
De todas as que eu amei.
(Paulo Setúbal)

sexta-feira, 20 de junho de 2008

...o coração sentiu...


Depois que o coração,
por qualquer motivo,
saiu do peito para espiar aqui fora…
Reentrou triste pela desilusão que viu.

Os olhos que dele escondiam
o mundo que viam…
Somente acompanharam… nada mais…
Chorando a dor que o coração sentiu.
(António Miranda Fernandes)

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Reflexão Total

Recolhi as tuas lágrimas
na palma da minha mão,
e mal que se evaporaram
todas as aves cantaram
e em bandos esvoaçaram
em torno da minha mão.
Em jogos de luz e cor
tuas lágrimas deixaram
os cristais do teu amor,
faces talhadas em dor
na palma da minha mão.
(António Gedeão)

terça-feira, 10 de junho de 2008

Condição


Se não podes ser minha, mas tão minha
que sejamos os dois uma criatura;
que a meu lado te sintas tão segura
quanto, longe de mim, fraca e sozinha!
*
Tanto que eu seja o peito que te aninha;
que te torna suave a desventura;
a presença que embala, que fulgura,
e a ausência que tortura, que amesquinha!
*
Tanto que seja a tua própria vida
uma fatalidade refletida
na minha vida, em meu destino, em mim!
*
Tanto que eu seja a luz que te encaminha!
Se não podes ser minha, mas tão minha,
não sejas minha. Eu não te quero assim!
*
(Guioseppe Ghiaroni)

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Ódio


Ódio por Ele?
Não… Se o amei tanto,
Se tanto bem lhe quis no meu passado,
Se o encontrei depois de o ter sonhado,
Se à vida assim roubei todo o encanto
*
Que importa se mentiu?
E se hoje o pranto
Turva o meu triste olhar, marmorizado,
Olhar de monja, trágico, gelado
Com um soturno e enorme Campo Santo!
*
Nunca mais o amar já é bastante!
Quero senti-lo doutra, bem distante,
Como se fora meu, calma e serena!
*
Ódio seria em mim saudade infinda,
Mágoa de o ter perdido, amor ainda!
Ódio por Ele? Não… não vale a pena…
*
(Florbela Espanca)

sábado, 7 de junho de 2008

Os amantes sem dinheiro


Tinham o rosto aberto a quem passava
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com a água
e um anjo de pedra por irmão.
*
Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.
*
Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos,
mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.
*
(Eugénio de Andrade)

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Adeus


Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
*
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
*
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
*
Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
*
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certezade que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
*
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
*
Adeus.
(Ernesto Cardenal)

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Saudades de ti


Folhas que murcham, caindo,
crianças que choram rindo,
e eu a pensar em ti.
Gente que passa, cantando,
quanta o faz mas chorando,
e eu a pensar em ti.
Águas que jorram das fontes,
ervas que crescem nos montes,
e eu a pensar em ti.
Rios que correm contentes,
tristezas que tu não sentes,
e eu a pensar em ti.
Aves que passam, voando,
seu chilreado entoando,
e eu a pensar em ti.
Gente que nasce e que morre,
é a morte que passa, que corre,
e eu a pensar em ti.
Por fim olho a Natureza,
como fico!
Tu não sabes
sinto uma grande tristeza,
e tenho tantas saudades
saudades mas só de ti!
(Fernanda)

...

Porque escrevo?
Pela visão de um mundo solene,
Justo, perene...
Não pelo saber do que fiz ou sou
Mas pelo seu cerne.
Não foi por tí que chorei à anos atrás,

Perante a morte.
Não foi cobardia ou submissão
A tristeza (que sorte; o que me custou!).
Foi mais um acto de ser,

Talvez a fúria de viver
Que me emocionou.
Porque escrevo?

Pelo amor!
Pelo vigente ardor
Da alma.
E agora que somos mais que carne,
Talvez queiras partilhar do seu charme.
Da vida, do fulgor.
Não me iludo a procurar razões,

Não me desgasto a antever consequências,
Ou descobrir profecias.
Escrevo sómente por escrever à toa
Como derradeiro Messias, como ave que voa
Sentir Fernando,
Escrever Pessoa.
Mas não dou ao demo a cardada

Que arrependimento não mata nem nada!
Conquanto não seja demasiado,
Pois não me agoire a sorte o ter provocado.
O poema de escrever é o poema de viver,

E que importa o resto?
Viver para escrever,
Escrever para viver...
(Pedro Piloto Casimiro)

Sempre a Razão vencida foi de Amor


Sempre a Razão vencida foi de Amor;
Mas, porque assim o pedia o coração,
Quis Amor ser vencido da Razão.
Ora que caso pode haver maior!
-
Novo modo de morte e nova dor!
Estranheza de grande admiração,
Que perde suas forças a afeição,
Por que não perca a pena o seu rigor.
-
Pois nunca houve fraqueza no querer,
Mas antes muito mais se esforça assim
Um contrário com outro por vencer.
-
Mas a Razão, que a luta vence, enfim,
Não creio que é Razão; mas há-de ser
Inclinação que eu tenho contra mim.
(Luís de Camões)

Sim, já sei...

Sim, já sei...
Há uma lei
Que manda que no sentir
Haja um seguir
Uma certa estrada
Que leva a nada.
Bem sei.
É aquela
Que dizem bela
E definida
Os que na vida
Não querem nada
De qualquer estrada,
Vou no caminho
Que é meu vizinho
Porque não sou
Quem aqui estou.
(Fernando Pessoa)

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Espaço curvo e finito


Oculta consciência de não ser,
ou de ser num estar que me transcende,
numa rede de presenças e ausências,
numa fuga para o ponto de partida:
um perto que é tão longe, um longe aqui.
Uma ânsia de estar e de temer
a semente que de ser se surpreende,
as pedras que repetem as cadências
da onda sempre nova e repetida
que neste espaço curvo vem de ti.

(José Saramago)

domingo, 1 de junho de 2008

Só tu, doce criança


Nas tuas mãos um papel
Pode ser de mil cores
Um soldado sem quartel
Ou um jardim com flores
Um avião que não pousa
Uma bala que não mata
Um cavalo sem arreata
Que não conhece senhor
Um irmão com quem tu brincas
À apanha e ao pião
Um pão quente que tu trincas
Como só se trinca o pão
Pai que te faz companhia
Nos teus sonhos sempre belos
Uma mãe quente e macia
E que te afaga os cabelos
Tudo quanto a vista alcança
E possas imaginar
Que só tu doce criança
Consegues reinventar.
(Mário Margaride)