quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Poema Em Linha Recta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possiblidade do soco;
Eu que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu que verifico que não tenho par nisto neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo,
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu um enxovalho,
Nunca foi senão - princípe - todos eles princípes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana,
Quem confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó princípes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde há gente no mundo?
Então só eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
***
(Álvaro de Campos )

2 comentários:

josé luís disse...

sempre que releio este poema acho que o engenheiro álvaro não estava de todo em si quando tentou aplicar a geometria aos seus textos...

digo isto por o conheçer razoavelmente e ele ser, a par do guarda-livros bernardo, um dos meus irmãos pessoa preferidos.

e gostava que lesse o que penso desta irmandade - se quiser, consulte o meu "palavrog" (fábulas incompletas) e diga-me o que pensa do que escrevi em 02.jul.2009.

Cristiana disse...

Alberto Caeiro é o que mais gosto e o que me oferece uma leitura e interpretação mais acessíveis. No lado oposto fica Fernando Pessoa, o que considero mais complexo de interpretar e entender.
Não sei se concorda comigo.

Irei visitar o seu "Palavrog" e com certeza que lhe direi o que penso.
Obrigada por mais uma visita.