domingo, 16 de agosto de 2009

Que é voar?


Que é voar?
É só subir no ar,
levantar da terra o corpo, os pés?
Isso é que é voar?
Não.

Voar é libertar-me,
é parar no espaço inconsistente
é ser livre, leve, independente
é ter a alma separada de toda a existência
é não viver senão em não - vivência

E isso é voar?
Não.

Voar é humano
é transitório, momentâneo...

Aquele que voa tem de poisar em algum lugar:
isso é partir
e não voltar.
***
(Ana Hatherly)

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Bilhete


Se tu me amas,
ama-me baixinho.
Não o grites de cima dos telhados,
deixa em paz os passarinhos.
Deixa em paz a mim!
*
Se me queres,enfim,
tem de ser bem devagarinho,
amada,
que a vida é breve
e o amor mais breve ainda.
***
(Mário Quintana)

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Sabedoria


Desde que tudo me cansa,
Comecei eu a viver.
Comecei a viver sem esperança...
E venha a morte quando Deus quiser.
*
Dantes, ou muito ou pouco,
Sempre esperara:
Às vezes, tanto, que o meu sonho louco
Voava das estrelas à mais rara;
Outras, tão pouco,
Que ninguém mais com tal se conformara.
*
Hoje, é que nada espero.
Para quê, esperar?
Sei que já nada é meu senão se o não tiver;
Se quero, é só enquanto apenas quero;
Só de longe, e secreto, é que inda posso amar...
*
E venha a morte quando Deus quiser.
Mas, com isto, que têm as estrelas?
Continuam brilhando, altas e belas.
***
(José Régio)

Amor é bicho instruído


Amor é bicho instruído
Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.
***
(Carlos Drummond de Andrade)

Amantes Incertos


Dormem juntos o caos e a ordem:
ele, de costas para a parede, ressona;
ela, a cabeça enterrada no travesseiro,
talvez sonhe com um ruído de rumores obscuros.
A noite envolve-os às avessas:
um caos de pernas voltadas
para o lado mais negro do infinito;
e uma ordem de braços presos no círculo da terra,
onde as raízes podres do outono rasgam os lençóis da alma.
Passo por eles em silêncio: não quero acordá-los;
e sei que me olham, com os olhos fechados do caos,
e me ouvem, com os ouvidos atentos da ordem.
***
(Nuno Júdice)

domingo, 9 de agosto de 2009

Se ao menos soubesses tudo o que eu não disse


Se ao menos soubesses tudo o que eu não disse
ou se ao menos me desses as mãos como quem beija
e não partisses, assim, empurrando o vento
com o coração aflito, sufocado de segredos
*
se ao menos tivesses levado as minhas mãos para tocar os teus dedos
para guardar o teu corpo
*
se ao menos tivesses quebrado o riso frio dos espelhos
onde o teu rosto se esconde no meu rosto
e a minha boca lembra a tua despedida,
talvez que, hoje, meu amor, eu pudesse esquecer
essa cor perdida nos teus olhos
***
(Joaquim Pessoa)

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Soneto


Arda de raiva contra mim a intriga,
Morra de dor a inveja insaciável;
Destile seu veneno detestável
A vil calúnia, pérfida inimiga.
*
Una-se todo, em traiçoeira liga,
Contra mim só, o mundo miserável.
Alimente por mim ódio entranhável
O coração da terra que me abriga.
*
Sei rir-me da vaidade dos humanos;
Sei desprezar um nome não preciso;
Sei insultar uns cálculos insanos.
*
Durmo feliz sobre o suave riso
De uns lábios de mulher gentis, ufanos;
E o mais que os homens são, desprezo e piso.
***
(Junqueira Freire)

Poema Da Voz Que Escuta

Chamam-me lá em baixo.
São as coisas que não puderam decorar-me:
As que ficaram a mirar-me longamente
E não acreditaram;
As que sem coração, no relâmpago do grito,
Não puderam colher-me.
Chamam-me lá em baixo,
Quase ao nível do mar, quase à beira do mar,
Onde a multidão formiga
Sem saber nadar.
Chamam-me lá em baixo
Onde tudo é vigoroso e opaco pelo dia adiante
E transparente e desgraçado e vil
Quando a noite vem, criança distraída,
Que debilmente apaga os traços brancos
Deste quadro negro - a Vida.
Chamam-me lá em baixo:
Voz de coisas, voz de luta.
É uma voz que estala e mansamente cala
E me escuta.
***
(Políbio Gomes dos Santos)

Há dias


Há dias em que julgamos
que todo o lixo do mundo
nos cai em cima
depois ao chegarmos à varanda
avistamos as crianças correndo no molhe
enquanto cantam
não lhes sei o nome
uma ou outra parece-se comigo
quero eu dizer:
com o que fui
quando cheguei a ser
luminosa presença
da graça ou da alegria
um sorriso abre-se então
num verão antigo e dura
dura ainda.
***
(Eugénio de Andrade)