
eu imagino assim a morte de pavese:
era um quarto de hotel em turim,
decerto um hotel modesto, 
de uma ou duas estrelas, 
se é que havia estrelas.
*
uma cama de pau, de verniz estalado,
rangendo de encontros fortuitos, 
um colchão mole e húmido
com a cova no meio, 
a do costume.
*
corria o mês de agosto com sua terra escura
encardindo as cortinas. 
nada ia explodir naquele mês de agosto 
àquela hora da tardede luz adocicada. 
e alguém pusera três rosas de plástico 
num solitário verde.
*
vejo como pavese entrou, 
como pousou a maleta com indiferença, 
dobrou alguns papéis
e despiu o casaco 
(como nos filmes italianos da época). 
depois foi aos lavabos
no corredor, ao fundo. 
talvez tenha pensado 
que esta vida é uma mijadela
ou que.
*
voltou ao quarto, 
havia uma fétida alma 
em tudo aquilo.
ele abriu a janela 
e pediu a chamada telefónica.
a noite ia caindo sem palavras, 
mesmo sem businas excessivas. 
encheu um copo de água. 
e esperou.
*
quando a campainha tocou, 
havia muito pouco a dizer 
e ele já o tinha dito:
já tinha dito quanto amar nos torna vulneráveis; 
e míseros, inermes;
que é precisa humildade, não orgulho;
e parar de escrever;
e que dessa nudez é que morremos.
*
foi mais ou menos isto 
– a nossa condição demasiado humana, 
a voz humana, a frágil expressão disso tudo, 
uma firmeza tensa.
«e até rapariguinhas o fizeram».
tinham nomes obscuros 
e nenhum remorso lancinante, 
ninguém pra falar delas.
*
a mais temida coisa é a coragem 
do que parecia fácil: 
tudo o que não se disse
carregado num acto de súbitas fronteiras.
foi mais ou menos isto. 
não sei se ele a seguir
pôs do lado de fora um letreiro
com do not disturb ou coisa assim,
nem se tomou as pastilhas uma a uma, 
ou se as contou.
*
não sei se o encontrou uma criada,
se a polícia veio logo, 
se deixou uma carta ao seu melhor amigo, 
se apagou a luz,
nem se pousou ao lado a carteira, 
relógio, a esferográfica.
não sei se entrou na morte 
como quem traz imagens pungentes na cabeça,
palavras marteladas de desejo, 
ou como quem friamente está no avesso do sono 
e vai calar-se e é justo.
*
não sei se foi assim, se existe uma outra verdade 
imaginável ou vedada. 
sei que ele tinha um olhar decidido, 
alguma instigadora, 
e quarenta e dois anos,
e sei que nessa altura há já poucas verdades
e nenhuma dimensão biográfica na morte.
já vem nas escrituras. 
*
eu prefiro dizer que ele fechou a porta à chave
e sei que era viril a sua transparência.
***
(Vasco Graça Moura)