quinta-feira, 20 de maio de 2010

Ofício de morrer


eu imagino assim a morte de pavese:
era um quarto de hotel em turim,
decerto um hotel modesto,
de uma ou duas estrelas,
se é que havia estrelas.
*
uma cama de pau, de verniz estalado,
rangendo de encontros fortuitos,
um colchão mole e húmido
com a cova no meio,
a do costume.
*
corria o mês de agosto com sua terra escura
encardindo as cortinas.
nada ia explodir naquele mês de agosto
àquela hora da tardede luz adocicada.
e alguém pusera três rosas de plástico
num solitário verde.
*
vejo como pavese entrou,
como pousou a maleta com indiferença,
dobrou alguns papéis
e despiu o casaco
(como nos filmes italianos da época).
depois foi aos lavabos
no corredor, ao fundo.
talvez tenha pensado
que esta vida é uma mijadela
ou que.
*
voltou ao quarto,
havia uma fétida alma
em tudo aquilo.
ele abriu a janela
e pediu a chamada telefónica.
a noite ia caindo sem palavras,
mesmo sem businas excessivas.
encheu um copo de água.
e esperou.
*
quando a campainha tocou,
havia muito pouco a dizer
e ele já o tinha dito:
já tinha dito quanto amar nos torna vulneráveis;
e míseros, inermes;
que é precisa humildade, não orgulho;
e parar de escrever;
e que dessa nudez é que morremos.
*
foi mais ou menos isto
– a nossa condição demasiado humana,
a voz humana, a frágil expressão disso tudo,
uma firmeza tensa.
«e até rapariguinhas o fizeram».
tinham nomes obscuros
e nenhum remorso lancinante,
ninguém pra falar delas.
*
a mais temida coisa é a coragem
do que parecia fácil:
tudo o que não se disse
carregado num acto de súbitas fronteiras.
foi mais ou menos isto.
não sei se ele a seguir
pôs do lado de fora um letreiro
com do not disturb ou coisa assim,
nem se tomou as pastilhas uma a uma,
ou se as contou.
*
não sei se o encontrou uma criada,
se a polícia veio logo,
se deixou uma carta ao seu melhor amigo,
se apagou a luz,
nem se pousou ao lado a carteira,
relógio, a esferográfica.
não sei se entrou na morte
como quem traz imagens pungentes na cabeça,
palavras marteladas de desejo,
ou como quem friamente está no avesso do sono
e vai calar-se e é justo.
*
não sei se foi assim, se existe uma outra verdade
imaginável ou vedada.
sei que ele tinha um olhar decidido,
alguma instigadora,
e quarenta e dois anos,
e sei que nessa altura há já poucas verdades
e nenhuma dimensão biográfica na morte.
já vem nas escrituras.
*
eu prefiro dizer que ele fechou a porta à chave
e sei que era viril a sua transparência.
***

(Vasco Graça Moura)