segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Nesta curva



Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.
***
(Alexandre O'Neill)

Pensamento



ontem à noite
sonhei de corpo inteiro
-acordei com teu cheiro
***
(Alonso Alvarez)

Sacode as nuvens



Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos,

Sacode as aves que te levam o olhar.

Sacode os sonhos mais pesados do que as pedras.

Porque eu cheguei e é tempo de me veres,

Mesmo que os meus gestos te trespassem

De solidão e tu caias em poeira,

Mesmo que a minha voz queime o ar que respiras

E os teus olhos nunca mais possam olhar.
***
(Sophia de Mello Breyner Andresen)

Estudo de nu



Essa linha que nasce nos teus ombros,
Que se prolonga em braço, depois mão,
Esses círculos tangentes, geminados,
Cujo centro em cones se resolve,
Agudamente erguidos para os lábios
Que dos teus se desprenderam, ansiosos.

Essas duas parábolas que te apertam
No quebrar onduloso da cintura,
As calipígias ciclóides sobrepostas
Ao risco das colunas invertidas:
Tépidas coxas de linhas envolventes,
Contornada espiral que não se extingue.

Essa curva quase nada que desenha
No teu ventre um arco repousado,
Esse triângulo de treva cintilante,
Caminho e selo da porta do teu corpo,
Onde o estudo de nu que vou fazendo
Se transforma no quadro terminado.
***
(José Saramago)

Amanhã


Estar contigo ao acordar, ver como
se abrem as tuas pálpebras, cortinas
corridas sobre o sonho, sacudir dos
teus lábios o silêncio da noite para
que um primeiro riso me traga o dia:

assim, amor, reconheço a vida que
entra contigo pela casa, escancara
janelas e portas, deixa ouvir os pássaros
e o vento fresco da manhã, até que voltas
para junto de mim, e tudo recomeça.
***
(Nuno Júdice)

Cântico



Num impudor de estátua ou de vencida,
Coxas abertas, sem defesa…, nua
Ante a minha vigília, a noite, e a lua,
Ela, agora, descansa, adormecida.

Dos seus mamilos roxo-azuis, em ferida,
Meu olhar doce desce aonde o sexo estua.
Choro… e porquê? Meu sonho, irreal, flutua
Sobre funduras e confins da vida.

Minhas lágrimas caem-lhe nos peitos…,
Enquanto o luar a nimba, inerte, gasta
Da ternura feroz do meu amplexo.

Cantam-me as veias poemas nunca feitos…
E eu pouso a boca, religiosa e casta,
Sobre a flor esmagada do seu sexo.
***
(José Régio)

Despedida



Alguns amores mesmo sendo intensos,

São carregados de fragilidade.

Como se o Adeus viesse abanar lenços

Mostrando enfim que tudo é efemeridade.

*

E os sentimentos, claros, fortes, densos

Duvidam que aquilo seja verdade

Enquanto os amantes ficam ali propensos

A discutir o que é ilusão, o que é realidade.

*

Mas que bom que nada disso fosse assim.

E que cada dia fosse sempre um recomeço

E que jamais houvesse a palavra fim.

*

E os dois se lembrassem que é fugaz a vida

Pois amor nenhum sabe ao certo o preço.

O preço que se cobra uma despedida.
***
(Jenário de Fátima)

Presídio



Nem todo o corpo é carne … Não, nem todo,
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco …?

E o ventre, inconsistente como o lodo? …
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor … Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo …

É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio

vulto da Primavera em pleno Outono …
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!
***
(David Mourão-Ferreira)

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Rodopio



Volteiam dentro de mim,
Em rodopio, em novelos,
Milagres, uivos, castelos,
Forcas de luz, pesadelos,
Altas torres de marfim.

Ascendem hélices, rastros...
Mais longe coam-me sois;
Há promontórios, farois,
Upam-se estátuas de herois,
Ondeiam lanças e mastros.

Zebram-se armadas de côr,
Singram cortejos de luz,
Ruem-se braços de cruz,
E um espelho reproduz,
Em treva, todo o esplendor...

Cristais retinem de medo,
Precipitam-se estilhaços,
Chovem garras, manchas, laços...
Planos, quebras e espaços
Vertiginam em segrêdo.

Luas de oiro se embebedam,
Rainhas desfolham lírios;
Contorcionam-se círios,
Enclavinham-se delírios.
Listas de som enveredam...

Virgulam-se aspas em vozes,
Letras de fogo e punhais;
Há missas e bacanais,
Execuções capitais,
Regressos, apoteoses.

Silvam madeixas ondeantes,
Pungem lábios esmagados,
Há corpos emaranhados,
Seios mordidos, golfados,
Sexos mortos de anseantes...

(Há incenso de esponsais,
Há mãos brancas e sagradas,
Há velhas cartas rasgadas,
Há pobres coisas guardadas -
Um lenço, fitas, dedais...)

Há elmos, troféus, mortalhas,
Emanações fugidias,
Referências, nostalgias,
Ruínas de melodias,
Vertigens, erros e falhas.

Há vislumbres de não-ser,
Rangem, de vago, neblinas;
Fulcram-se poços e minas,
Meandros, paúes, ravinas
Que não ouso percorrer...

Há vácuos, há bolhas de ar,
Perfumes de longes ilhas,
Amarras, lemes e quilhas -
Tantas, tantas maravilhas
Que se não podem sonhar!...
***
(Mário de Sá-Carneiro)

A luz que vem das pedras



A luz que vem das pedras, do íntimo da pedra,
tu a colhes, mulher, a distribuis
tão generosa e à janela do mundo.
O sal do mar percorre a tua língua;
não são de mais em ti as coisas mais.
Melhor que tudo, o voo dos insectos,
o ritmo nocturno do girar dos bichos,
a chave do momento em que começa o canto
da ave ou da cigarra
— a mão que tal comanda no mesmo gesto fere
a corda do que em ti faz acordar
os olhos densos de cada dia um só.
Quem está salvando nesta respiração
boca a boca real com o universo?
***
(Pedro Tamen)

A ti



Como o sol nasce do monte
E todo o vale alumia,
Assim no meu horizonte
Nasceu teu olhar, um dia.

Nessa manhã cor-de-rosa,
Que dos teus olhos saía,
Tua voz melodiosa
Foi a voz da cotovia.

E logo na minha mágoa,
Neste canteiro sem flor,
Brotou, qual nascente de água,
O teu amor, meu Amor!

Então fez sol deslumbrante
Nos dias da minha vida:
Já não era a luz distante,
Já não a fonte escondida.

Nuvens, tormentas e dores,
Que enchiam meu coração,
Tudo se cobriu de flores,
A esse divino clarão!

E à luz que os teus olhos deram,
Como faróis redentores,
Mundos no mundo nasceram,
Do amor brotaram amores.

Três aves no nosso ninho
O enchem de um fulgor sagrado:
Já não és o sol sozinho,
Fizeste o céu estrelado!

Deus te proteja e te guarde,
Minha Mulher, minha Irmã,
Ó minha Estrela da Tarde,
Minha Estrela da Manhã!
***
(Alberto Oliveira)

Retrato do herói



Herói é quem num muro branco inscreve
O fogo da palavra que o liberta:
Sangue do homem novo que diz povo
e morre devagar de morte certa.

Homem é quem anónimo por leve
lhe ser o nome próprio traz aberta
a alma à fome fechado o corpo ao breve
instante em que a denúncia fica alerta.

Herói é quem morrendo perfilado
Não é santo nem mártir nem soldado
Mas apenas por último indefeso.

Homem é quem tombando apavorado
dá o sangue ao futuro e fica ileso
pois lutando apagado morre aceso.
***
(Ary dos Santos)

Contemplo o que não vejo



Contemplo o que não vejo.
É tarde, é quase escuro.
E quanto em mim desejo
Está parado ante o muro.

Por cima o céu é grande;
Sinto árvores além;
Embora o vento abrande,
Há folhas em vaivém.

Tudo é do outro lado,
No que há e no que penso.
Nem há ramo agitado
Que o céu não seja imenso.

Confunde-se o que existe
Com o que durmo e sou.
Não sinto, não sou triste.
Mas triste é o que estou.
***
(Fernando Pessoa)

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Pai, a minha sombra és tu



a cadeira está vazia, um corpo ausente
não aquece a madeira que lhe dá forma

e não ouço o recado que me quiseste dar
nem a tua voz forte que grita meninos
na hora de acordar
ouço o teu abraço, no corredor em gaia
e os olhos molhados pela inusitada despedida

o sol foge
mas o crepúsculo desenha a sombra que
tenho colada aos pés
ou o espelho, coberto com a tua face

pai, digo-te
a minha sombra és tu
***
(Jorge Reis-Sá)

(Dedicado ao meu pai, com eterna saudade e amor.)