sábado, 10 de outubro de 2009

A Vida Vivida


Quem sou eu senão um grande sonho obscuro
em face do Sonho
Senão uma grande angústia obscura
em face da Angústia
*
Quem sou eu senão a imponderável árvore
dentro da noite imóvel
E cujas presas remontam
ao mais triste fundo da terra?
*
De que venho senão da eterna caminhada de uma sombra
Que se destrói à presença das fortes claridades
Mas em cujo rastro indelével repousa a face do mistério
E cuja forma é prodigiosa treva informe?
*
Que destino é o meu senão o de assistir ao meu Destino
Rio que sou em busca do mar que me apavora
Alma que sou clamando o desfalecimento
Carne que sou no âmago inútil da prece?
*
O que é a mulher em mim
senão o Túmulo
O branco marco da minha rota peregrina
Aquela em cujos abraços vou caminhando para a morte
Mas em cujos braços somente tenho vida?
*
O que é o meu Amor, ai de mim,
senão a luz impossível
Senão a estrela parada num oceano de melancolia
O que me diz ele senão que é vã toda a palavra
Que não repousa no seio trágico do abismo?
*
O que é o meu Amor,
senão o meu desejo iluminado
O meu infinito desejo de ser o que sou acima de mim mesmo
O meu eterno partir da minha vontade enorme de ficar
Peregrino, peregrino de um instante, peregrino de todos os instantes
A quem repondo senão a ecos, a soluços, a lamentos
De vozes que morrem no fundo do meu prazer ou do meu tédio
*
Qual é o meu ideal senão fazer do céu poderoso a Língua
Da nuvem a Palavra imortal cheia de segredo
E do fundo do inferno delirantemente proclamá-los
Em Poesia que se derrame como sol ou como chuva?
*
O que é o meu ideal senão o Supremo Impossível
Aquele que é, só ele, o meu cuidado e o meu anelo
O que é ele em mim senão o meu desejo de encontra-lo
E o encontrando, o meu medo de não o reconhecer?
*
O que sou eu senão ele, o Deus em sofrimento
o temor imperceptível na voz portentosa do vento
O bater invisível de um coração no descampado...
Que sou eu senão Eu Mesmo em face de mim?
***
(Vinicius de Moraes)

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