domingo, 28 de agosto de 2011

Adeus



adeus

já vai longo este poema:
de tudo quanto amei, é a tua sombra que me tenta.
oscilam os dias e é possível ainda ser, por breve mas ígneo instante,
ramo de árvore no leve entardecer.

não bati sequer:
entrei de rompante por entre os teus passos de veludo.
nunca mais seremos os mesmos, eu e tu
trocaríamos arbitrárias rimas antes que outra vida iniciasse,
vertiginosamente, teríamos os mais belos planos para as palavras
secretas, brilhando entre os lençóis.

Se sou inteiro,
perguntas pelo gesto que hesita.

Se na distância te insinuas,
exiges o canto há muito prometido.

Ficamos, pois, assim:
do mundo distraídos, marcando encontros triviais.
ao mínimo ruído seríamos descobertos,
por certo primeira página nos jornais.

Ficamos, de alma pousada no chão:
mentindo sobre o tempo enganador,
mera fábula ou pardo eco sem incêndio,
e desistindo das conclusões e do carinho celeste.

Queres partir:
como é luminosamente triste o teu sorriso…
Só agora me dou conta das luas que te seguem.
Sonhei um dia ter o sol calado da minha infância.
Nesta mão, que agora te toca e te desenha o coração entreaberto,
cabe a madrugada de um aceno e este imperfeito gesto de ser mortal.
Sufoco de ser invisível no manto terrestre e, navegando no silêncio incerto,
ser mera sílaba em excesso.

Vai longo este poema e tu desejas partir.
de tudo quanto amei, amei o grito claro
e a visita guiada pelas asas que o vento oferece.
Vais partir e aguardas um adeus que tarda:
vai tombando a areia na ampulheta,
cada grão um desejo suspendido na corda da memória,
prefiro navegar, em duro exílio, dando a volta ao mundo,
em discreta harmonia com a noite cintilante.

Lá fora, já nasceu o dia
e suspeito que esquecerás o meu nome
quando disser amo-te e tu não estiveres lá,
assistindo na primeira fila ao rasgar do tecido da luz.

Procuro a metáfora que me velasse em mistério:
desajeitado, pobre em rima e caprichoso do sopro que perdi,
balbucio, envergonhado, fantásticas nebulosas e, imóvel,
receio que me condene um deus caído.

Desisto de contemplar os pilares da criação,
permaneço só.

julgava que seria difícil tocar-te, beijar-te sem palavras
pensava que não seria capaz de esquecer o rumo das estrelas:
queimar todos os livros, deitar fora os versos perdidos,
serenamente inventando um novo alfabeto dos astros

insolência a minha,
escrever noite e dia,
em vão murmurando o rosto proibido

em vez disso,
é na imprecisa ausência que me surges mais real
olho-te sem palavras de sangue e sem rugas onde outro mundo se insinua
sou somente a nudez do esquecimento

Queres partir:
mas é mais fácil imaginar-te para sempre
perdida nos confins do oriente
humanamente, penteando os fios pretos,
amplo véu oculto, e de livro na mesa do café,
água a meio, cigarro sumido, revista manchada.
a paz aqui é perfeita e pergunto-te: és feliz?
Queres partir:
e também um dia viajarei por continentes estranhos.
Ninguém saberia que estaria pronto para quebrar a promessa,
procurando a carteira perdida colada à pele;
em gesto ímpar pintaria a boca de silêncio,
confessando ter tido inofensivo encontro com as palavras.

Agora sei que jamais começarei um poema por adeus.
Agora sei que não haverá luta:
as palavras chegam e eu não as procurarei calar.
Só é louco quem nunca perguntou
o que é isto de andar com um nome pelo vento?

Sabes do que falo?

Em salto decidido para o outro lado do tempo,
aprecio (confesso-o) o livro que nunca conseguirei passar para o papel.
É enlaçarem-se mecanicamente os lábios esburacados
e ler-se heidegger sobre nietzsche
e ainda assim não entrever os adolescentes de mãos dadas,
nem tão pouco recordar o tempo em que pintavas
o céu com estrelas transparentes.

Sim, sim.

Vai longo este poema e partes sem mim.

adeus
***

(Ricardo Gil Soeiro)

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