sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Ali não havia

Ali não havia eletricidade.

Por isso foi à luz de uma vela mortiça

Que li, inserto na cama,

O que estava à mão para ler —

A Bíblia, em português (coisa curiosa), feita para protestantes.

E reli a "Primeira Epístola aos Coríntios".

Em torno de mim o sossego excessivo de noite de província

Fazia um grande barulho ao contrário,

Dava-me uma tendência do choro para a desolação.

A "Primeira Epístola aos Coríntios"...

Relia-a à luz de uma vela subitamente antiqüíssima,

E um grande mar de emoção ouvia-se dentro de mim...

Sou nada...

Sou uma ficção...

Que ando eu a querer de mim ou de tudo neste mundo?

"Se eu não tivesse a caridade."

E a soberana luz manda, e do alto dos séculos,

A grande mensagem com que a alma é livre...

"Se eu não tivesse a caridade..."

Meu Deus, e eu que não tenho a caridade!...

***

(Álvaro de Campos)

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