quarta-feira, 30 de abril de 2008

Espelho


Os teus dias são negros, frios, irreais
Os teus risos mentirosos, de demente,
São tristes, como tristes funerais
A ecoar na minha alma doente

E de tudo o que vivi nada me ficou
Nem miragem distante de um abrigo
Ninguém dos que amei, um só gesto me amou
A ninguém que cruzasse chamei amigo

Vivo moribunda na torre deste castelo
As pessoas que passam olham pasmas,
Passo horas ao espelho, a escovar o meu cabelo
E a sorrir… para os meus fantasmas
(Lavínia Matos)

Suavidade



Pousa a tua cabeça dolorida
Tão cheia de quimeras, de ideal,
Sobre o regaço brando e maternal
Da tua doce Irmã compadecida.
Hás-de contar-me nessa voz tão qu'rida
A tua dor que julgas sem igual,
E eu, pra te consolar, direi o mal
Que à minha alma profunda fez a Vida.
E hás-de adormecer nos meus joelhos...
E os meus dedos enrugados, velhos,
Hão-de fazer-se leves e suaves...
Hão-de pousar-se num fervor de crente,
Rosas brancas tombando docemente,
Sobre o teu rosto, como penas de aves...
(Florbela Espanca)

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Lição


Oiço todos os dias,
De manhãzinha,
Um bonito poema
Cantado por um melro
Madrugador.
Um poema de amor
Singelo e desprendido,
Que me deixa no ouvido
Envergonhado
A lição virginal
Do natural,
Que é sempre o mesmo,
e sempre variado.
(Miguel Torga)

O horizonte das palavras


Sem direcção, sem caminho
escrevo esta página que não tem alma dentro.
Se conseguir chegar à substância de um muro
acenderei a lãmpada de pedra na montanha.
E sem apoio penetro nos interstícios fugidios
ou enuncio as simples reiterações da terra,
as palavras que se tornam calhaus
na boca ou nos meus passos.
Tentarei construir a consistência num adágio
de sílabas silvestres, de ribeiros vibrantes.
E na substância entra a mão, o balbucio branco
de uma língua espessa, a madeira, as abelhas,
um organismo verde aberto sobre o mar,
as teclas do verão, as indústrias da água.
Eu sou agora o que a linguagem mostra
nas suas verdes estratégias, nas suas pontes
de música visual: o equilíbrio preenche os buracos
com arcos, colinas e com árvores.
Um alvor nasceu nas palavras e nos montes.
O impronunciável é o horizonte do que é dito.
(António Ramos Rosa)

Tocando em frente



Ando devagar
Porque já tive pressa
E levo esse sorriso
Porque já chorei demais

Hoje me sinto mais forte,
Mais feliz, quem sabe,
Eu só levo a certeza
De que muito pouco sei,
Ou nada sei

Conhecer as manhas
E as manhãs
O sabor das massas
E das maçãs

É preciso amor
Pra poder pulsar
É preciso paz pra poder seguir
É preciso chuva para florir

Sinto que seguir a vida
Seja simplesmente
Conhecer a marcha
E ir tocando em frente
Como um velho boiadeiro

Levando a boiada
Eu vou tocando os dias
Pela longa estrada, eu vou
Estrada eu sou

Cada um de nós compõe
A sua própria história
E cada ser em si
Carrega o dom de ser capaz
De ser feliz

Todo mundo ama um dia,
Todo mundo chora
Um dia a gente chega
E no outro vai embora
(Renato Teixeira)

As mãos



Que tristeza tão inútil
essas mãos
que nem sempre são flores
que se dêem:
abertas são apenas abandono,
fechadas são pálpebras imensas
carregadas de sono.
(Eugénio de Andrade)

Entre o ser ou o não ser


Entre o ser ou o não ser
escolho o ter medo de te ver assim,
num sossego pálido
e tranquilo demais.
De entre todas as armas
escolho aquelas lindas rosas amarelas,
pintadas timidamente
nos teus imponentes vitrais.
(Ana Garret)

Amar!


Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui...além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente
Amar! Amar! E não amar ninguém!
Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!
Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!
E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...
(Florbela Espanca)

sábado, 26 de abril de 2008

Silêncio


Aos poucos começo a compreender o teu silêncio,
mas à medida que o compreendo sinto-te mais distante...
A tua voz melodiosa parece ficar muda aos poucos
como se fosse levada por uma breve brisa,
o teu olhar é apagado de uma tela colorida gasta pelo tempo...
Apenas "ouço" o teu silêncio,
como eu o compreendo
agora que já não existem mais feridas para sarar,
tenho apenas cicatrizes ao longo do meu corpo
para te recordar,
não é mesmo para isso que uma cicatriz serve,
para nos lembrarmos que já tivemos ali uma ferida
e qual foi a sua origem?!
O teu silêncio é uma ferida ainda muito aberta,
mas pelo menos já sei como fecha-la...
Silêncio, apenas "ouço" silêncio...

(Sérgio Fortunato)

Detalhes


Poupa-me dos detalhes sórdidos
Dos atalhos que escolhes em caminhos vãos
Dos erros que vais cometendo
Enquanto lutas com a realidade a cada momento
Procura-me lá,

No sítio onde me deixaste
Procura-me lá,
No sítio onde me amaste
Não quero viver o passado num futuro

Quero encontrar-te neste presente
Crescido, mudado e maduro
Em sentimentos de quem segue em frente
Não demores que está a ficar frio

O tempo... a dor... mas também o Amor
Não me deixes aqui neste sítio sem cor...

(Someia Umargi)

sexta-feira, 25 de abril de 2008

O amor é mesmo assim


O amor é mesmo assim...
Chega sem mandar aviso de chegada
Vem puro, nu, tal criança nascendo,
Ou vem ferido por senda espinhosa
Não bate à porta, entra e se instala.
Surge, anjo azul entoando cânticos;
Da nuvem onde repousava latente
Ansiedade do nosso coração sozinho
Ou andejo triste buscando carinhos.
Faz nosso corpo sempre perfumado
E todo dia ser domingo primaveril
A nossa vaidade mais vaidosa ainda
Sorrimos para o espelho, ele ao lado.
O amor é mesmo assim...
Floresce dum olhar, duma palavra...
Germina dum sorriso ou vem à-toa
Delicado como quem devia vir antes
Jogando-se ou como não querendo nada
O amor é mesmo assim...
Ao chegar traz na bagagem saudade
Ou ele se enraíza para toda a vida,
E saudades serão apenas momentos,
Ou por pouco tempo, e depois parte,
E deixa na gente um estrago danado.
(Antonio Miranda Fernandes)

Liberdade


Viemos com o peso do passado e da semente
esperar tantos anos torna tudo mais urgente
e a sede de uma espera só se estanca na torrente
e a sede de uma espera só se estanca na torrente


Vivemos tantos anos a falar pela calada
só se pode querer tudo quando não se teve nada
só quer a vida cheia quem teve a vida parada
só quer a vida cheia quem teve a vida parada


Só há liberdade a sério quando houver
a paz, o pão, habitação,
saúde, educação
só há liberdade a sério quando houver
liberdade de mudar e decidir
quando pertencer ao povo o que o povo produzir


(Sérgio Godinho)

Menina dos olhos de água

Menina em teu peito sinto o Tejo
e vontades marinheiras de aproar
menina em teus lábios sinto fontes
de água doce que corre sem parar
menina em teus olhos vejo espelhos

e em teus cabelos nuvens de encantar
e em teu corpo inteiro sinto o feno rijo e tenro
que nem sei explicar
se houver alguém que não goste

não gaste - deixe ficar
que eu só por mim quero-te tanto
que não vai haver menina p'ra sobrar

aprendi nos "Esteiros" com Soeiro
aprendi na "Fanga" com Redol
tenho no rio grande o mundo inteiro
e sinto o mundo inteiro no teu colo
aprendi a amar a madrugada

que desponta em mim quando
és um rio de água levada
e dás rumo à fragata que escolhi
se houver alguém que não goste
não gaste - deixe ficar...
que eu só por mim quero-te tanto
que não vai haver menina p'ra sobrar

(Pedro Barroso)

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Amor como em casa

Regresso devagar ao teu sorriso
como quem volta a casa.
Faço de conta que não é nada comigo.
Distraído percorro o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro.
Devagar te amo
e às vezes depressa,meu amor,
e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a casa,
compro um livro,
entro no amor como em casa.
(Manuel António Pina)

Ausência



Eu deixarei que morra em mim o desejo
de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa
de me veres eternamente exausto
No entanto a tua presença é qualquer coisa
como a luz e a vida

E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto
e em minha voz a tua voz
Não te quero ter porque
em meu ser está tudo terminado.
Quero só que surjas em mim
como a fé nos desesperados

Para que eu possa levar uma gota de orvalho
nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne
como uma nódoa do passado.
Eu deixarei ... tu irás e encostarás
a tua face em outra face

Teus dedos enlaçarão outros dedos
e tu desabrocharás para a madrugada
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu,
porque eu fui o grande íntimo da noite
Porque eu encostei a minha face
na face da noite e ouvi a tua fala amorosa

Porque meus dedos enlaçaram os dedos
da névoa suspensos no espaço
E eu trouxe até mim a misteriosa essência
do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só
como os veleiros nos portos silenciosos

Mas eu te possuirei mais que ninguém
porque poderei partir
E todas as lamentações do mar,
do vento, do céu, das aves, das estrelas
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente,
a tua voz serenizada.

(Vinícius de Moraes)

A noite na Ilha

Dormi contigo a noite inteira junto do mar, na ilha.
Selvagem e doce eras entre o prazer e o sono,
entre o fogo e a água.
Talvez bem tarde nossos sonos se uniram
na altura e no fundo,
em cima como ramos que um mesmo vento move,
em baixo como raízes vermelhas que se tocam.
Talvez teu sono se separou do meu e pelo mar escuro
me procurava como antes, quando nem existias,
quando sem te enxergar naveguei a teu lado
e teus olhos buscavam o que agora
- pão, vinho, amor e cólera - te dou,
cheias as mãos,
porque tu és a taça que só esperava os dons da minha vida.
Dormi junto contigo a noite inteira,
enquanto a escura terra gira com vivos e com mortos,
de repente desperto
e no meio da sombra meu braço rodeava tua cintura.
Nem a noite nem o sonho puderam separar-nos.
Dormi contigo, amor, despertei,
e tua boca saída de teu sono
me deu o sabor da terra,
de água-marinha, de algas,
de tua íntima vida,
e recebi teu beijo molhado pela aurora
como se me chegasse do mar que nos rodeia.

(Pablo Neruda)

terça-feira, 22 de abril de 2008

Quando a morte vier...


Quando a morte vier, meu amor,
fechemos os olhos para a olhar por dentro
e deixemos aos nossos lábios
o murmúrio da palavra branda jamais pronunciada
e às nossas mãos a carícia dispersa;
relembremos o dia impossível,
belo por isso e por isso desprezado,
e esqueçamos o que nos não deixaram ver
e o resto que sobrou do nada que possuímos;
deixemos à poesia que surge
o pranto de quem a trocou para comer
e os passos sem rumo pelas ruas hostis;
deixemos à carne o que não alcançámos,
e morramos então, naturalmente...
(Tomaz Quim)

Amigo


Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra Amigo.
Amigo é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta,
que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!
Amigo
(recordam-se, vocês aí, escrupulosos detritos?)
Amigo é o contrário de inimigo!
Amigo é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.
Amigo é a solidão derrotada!
Amigo é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil,
um tempo fértil,
Amigo vai ser
É já uma grande festa!
(Alexandre O'Neill)

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Quando o amor morrer


Quando o amor morrer dentro de ti,
Caminha para o alto onde haja espaço,
E com o silêncio outrora pressentido
Molda em duas colunas os teus braços.
Relembra a confusão dos pensamentos,
E neles ateia o fogo adormecido
Que uma vez, sonho de amor, teu peito ferido
Espalhou generoso aos quatro ventos.
Aos que passarem dá-lhes o abrigo
E o nocturno calor que se debruça
Sobra as faces brilhantes de soluços.
E se ninguém vier, ergue o sudário
Que mil saudosas lágrimas velaram;
Desfralda na tua alma o inventário
Do templo onde a vida ora de bruços
A Deus e aos sonhosque gelaram.
(Ruy Cinatti)

Poema melancólico não sei a que mullher


Dei-te os dias, as horas e os minutos
Destes anos de vida que passaram;
Nos meus versos ficaram imagens
que são máscaras anónimas
Do teu rosto proibido;
A fome insatisfeita que senti
Era de ti,
Fome do instinto que não foi ouvido.
Agora retrocedo, leio os versos,
Conto as desilusões no rol do coração,
Recordo o pesadelo dos desejos,
Olho o deserto humano desolado,
E pergunto porquê, por que razão
Nas dunas do teu peito o vento passa
Sem tropeçar na graça
Do mais leve sinal da minha mão...
(Miguel Torga)

Seria o amor português


Muitas vezes te esperei,
perdi a conta,
longas manhãs te esperei
tremendo no patamar dos olhos.
Que importa que batam à porta,
façam chegar jornais
ou cartas de amizade um pouco
- tanto pó sobre os móveis tua ausência.
Se não és tu, que me importa?
Alguém bate, insiste através da madeira,
que me importa que batam à porta,
a solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.
Um pássaro morto no jardim com neve.
(Fernando Assis Pacheco)

domingo, 20 de abril de 2008

Chamamento

Da margem do sonho
e do outro lado do mar
alguém me estremece
sem me alcançar.

Um bafo de desejo
chega, vago, até mim.
Perfume delido
de impossivel jasmim

É ele que me sonha?
Sou eu a sonhar?
Sabê-lo seria desfazer,
no vento,tranças de luar.

Nuvens,
barcos,
espumas
desmancham-se na noite.

E a vida lateja, longe,
num outro lugar...
(Luísa Dacosta)

Deixa-me amar-te



Deixa-me amar-te em meus silêncios
Na calmaria do teu coração que me acolhe
E de onde se desprendem meus sonhos
Em vôos etéreos de plena liberdade

Deixa-me amar-te em minha solidão
Ainda que meus labirintos te confundam
E que teus fios generosos de compreensão
Se emaranhem no tapete dos meus enigmas

Deixa-me amar-te sem qualquer explicação
Na ternura das tuas mãos que me sorriem
Escrevendo desejos em versos despidos
Na minha alva tez que te cobre e descobre

Deixa-me amar-te em meus segredos
Para que desvendes o que também desconheço
A alma dos meus abismos, onde anoiteço
E meus olhos adormecem embalados pelo mistério

Deixa-me amar-te em tuas demoras, longas horas
Em que meu corpo se veste de céu à tua espera
E minhas mãos em frenesi acendem estrelas
Para alumiar-te, ainda que ausente estejas...

(Fernanda Guimarães)

Destino

Quem disse à estrela o caminho
Que ela há-de seguir no céu?
A fabricar o seu ninho
Como é que a ave aprendeu?
Quem diz à planta --- FLORESCE! ---
E ao mudo verme que tece
Sua mortalha de seda
Os fios quem lhos enreda?

Ensinou alguém à abelha
Que no prado anda a zumbir
Se à flor branca ou à vermelha
O seu mel há-de ir pedir?

Que eras tu meu ser, querida,
Teus olhos a minha vida,
Teu amor todo o meu bem...
Ai! não mo disse ninguém.
Como a abelha corre ao prado,
Como no céu gira a estrela,
Como a todo o ente o seu fado
Por instinto se revela,
Eu no teu seio divino
Vim cumprir o meu destino...
Vim, que em ti só sei viver,
Só por ti posso morrer.
(Almeida Garret)

O Poema

A tarde cai,
silenciosa,
morosa...


Na alma do poeta,
o poema,
estranha rosa,
rubra e preta,
abre...


Afinal,
escrever um poema
é fixar uma pena,
sentindo estoirar
o calabre
do coração,
nostálgico do éden...


- Vá, poeta,
deixa o coração sangrar!

Para que negar
a esmola que te pedem?

(Saul Dias)

Balada da Neve

Batem leve, levemente,
como quem chama por mim.
Será chuva? Será gente?
Gente não é, certamente
e a chuva não bate assim.


É talvez a ventania:
mas há pouco, há poucochinho,
nem uma agulha bulia
na quieta melancolia
dos pinheiros do caminho...


Quem bate, assim, levemente,
com tão estranha leveza,
que mal se ouve, mal se sente?
Não é chuva, nem é gente,
nem é vento com certeza.


Fui ver. A neve caía
do azul cinzento do céu,
branca e leve, branca e fria...

– Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!


Olho-a através da vidraça.
Pôs tudo da cor do linho.
Passa gente e, quando passa,
os passos imprime e traça
na brancura do caminho...


Fico olhando esses sinais
da pobre gente que avança,
e noto, por entre os mais,
os traços miniaturais
duns pezitos de criança...


E descalcinhos, doridos...
a neve deixa inda vê-los,
primeiro, bem definidos,
depois, em sulcos compridos,
porque não podia erguê-los!...


Que quem já é pecador
sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor,
porque lhes dais tanta dor?!...
Porque padecem assim?!...


E uma infinita tristeza,
uma funda turbação
entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na Natureza
– e cai no meu coração.

(Augusto Gil)

Amor, que o gesto humano na alma escreve

Amor, que o gesto humano na alma escreve,
Vivas faíscas me mostrou um dia,
Donde um puro cristal se derretia
Por entre vivas rosas e alva neve.

A vista, que em si mesma não se atreve,
Por se certificar do que ali via,
Foi convertida em fonte, que fazia
A dor ao sofrimento doce e leve.

Jura Amor que brandura de vontade
Causa o primeiro efeito; o pensamento
Endoudece, se cuida que é verdade.

Olhai como Amor gera, num momento
De lágrimas de honesta piedade,
Lágrimas de imortal contentamento.
(Luís de Camões)

sábado, 19 de abril de 2008

Sombras Brancas

Sombras fragéis, brancas, adormecidas na praia,
Adormecidas no seu amor, na sua flor de universo,
A ardente cor da vida ignorando
Sobre um leito de areia e de acaso abolido.

Livremente os beijos desde seus lábios caem
No mar indomável como pérolas inúteis;
Pérolas cinzentas ou talvez cinzentas estrelas
Ascendendo até ao céu com luz desvanecida.

Por detrás da noite o mundo silencioso naufraga;
Por detrás da noite rostos fixos, mortos, se perdem.
Só essas sombras brancas, oh brancas, sim, tão brancas.
A luz também dá sombras, mas sombras azuis.

(Luís Cernuda)



Noite

Mais uma vez encontro a tua face,
Ó minha noite que julguei perdida.
Mistério das luzes e das sombras
Sobre os caminhos de areia,
Rios de palidez que escorre
Sobre os campos a lua cheia,
Ansioso subir de cada voz
Que na noite clara se desfaz e morre.
Secreto, extasiado murmurar
De mil gestos entre a folhagem
Tristeza das cigarras a cantar.
Ó minha noite, em cada imagem
Reconheço e adoro a tua face,
Tão exaltadamente desejada,
Tão exaltadamente encontrada,
Que a vida há-de passar, sem que ela passe,
Do fundo dos meus olhos onde está gravada.


(Sophia de Mello Breyner Andresen)

Anoitecer

É como o sono que se aproxima,
recolhendo as suas asas,
ofuscante matéria do horizonte,
algo assim,
pesado,
batendo na cara,
na sua ardente solidão.
Em certas noites o vento canta.
No oásis cresce uma vegetação de pranto
e num porto sem luzes
aproximam-se as sombras da melancolia.
Um sino toca algures
onde se enlouquece.
Procuro-te ainda,
no interior da névoa,
no assombro das ilhas.
(José Agostinho Baptista)

Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim
.E sinto-a, branca, tão pegada,
aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência,
essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.
(Carlos Drummond de Andrade)

A flor da solidão

Vivemos
convivemos
resistimos
cruzámo-nos nas ruas
sob as árvores
fizemos porventura algum ruído
traçámos pelo ar tímidos gestos
e no entanto, por que palavras dizer
que nosso era um coração solitário
silencioso
silencioso profundamente silencioso
e afinal o nosso olhar olhava
como os olhos que olham nas florestas
No centro da cidade tumultuosa,
no ângulo visível das múltiplas arestas
a flor da solidão crescia dia a dia mais viçosa
Nós tínhamos um nome para isto
mas o tempo dos homens impiedoso
matou-nos quem morria até aqui
E neste coração ambicioso
sozinho como um homem morre cristo
Que nome dar agora ao vazio
que mana irresistível como um rio?
Ele nasce
engrossa e vai desaguar
e entre tantos gestos é um mar
Vivemos, convivemos,
resistimos
sem bem saber
que em tudo um pouco nós morremos.
(Ruy Belo)

quinta-feira, 17 de abril de 2008

...

Amortecera o lume da lareira;
no pálido clarão, que o fundo esmalta,
a minha fantasia que se exalta,
vê passar mil visões, como em fileira.




Como as fagulhas correm na madeira
e morrem, passam elas na ribalta;
nem uma só lembrança ali me falta
de tanto que passei na vida inteira!




Oh! deixem-me sonhar um sonho infindo!
Dormir é reviver. Quero, dormindo,
viver o meu passado tão risonho!




Não me despertes, anjo da saudade...
Tanto sonho já foi realidade;
já foi realidade... e agora é sonho!


(D. João da Câmara)

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Teu Segredo

Flores envenenadas na jarra.
Roxas, azuis, encarnadas, atapetam o ar.
Que riqueza de hospital.
Nunca vi mais belas e mais perigosas.
É assim então o teu segredo.
Teu segredo é tão parecido contigo
que nada me revela além do que já sei.
E sei tão pouco como se o teu enigma fosse eu.
Assim como tu és o meu.
(Clarice Lispector )

Os Poemas

Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde
e pousam no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso nem porto;
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...
(Mário Quintana)

terça-feira, 15 de abril de 2008

Amor Amado

Assim como os poentes
São rubros e as rosas,
ão vivo é o meu amor por ti.
Com essa força atravesso
Todas as tempestades
E descubro em cada momento
A fonte da alegria.
No silêncio repito
O teu nome como um bálsamo
E sei que tu o meu repetesc
omo um apelo.
E o apelo não é vão
Pois com ele me dás as estradas
E os atalhos para chegar a ti.
Ao teu encontro vou
Com as rosas de Maio
Com as cerejas de Junho
Com as uvas de Setembro
E cada mês me dá para te levar
a sua novidade
Pois o amor faz novas todas as coisas.
Quando te não vejo
vejo-te em todo o lado
E oiço-te em todas as vozes
Tu que és a única voz.
Em ti me refaço e me transformo
E fluo para ti como um grande rio
Na certeza de ti,
que és o meu (a)mar.
(Maria Teresa Dias Furtado)

A duas flores

São duas flores unidas,
São duas rosas nascidas
Talvez do mesmo arrebol,
Vivendo no mesmo galho,
Da mesma gota de orvalho,
Do mesmo raio de sol.

Unidas, bem como as penas
Das duas asas pequenas
De um passarinho do céu...
Como um casal de rolinhas,
Como a tribo de andorinhas
Da tarde no frouxo véu.

Unidas, bom como os prantos,
Que em parelha descem tantos
Das profundezas do olhar...
Como o suspiro e o desgosto,
Como as covinhas do rosto,
Como as estrelas do mar.

Unidas... Ai quem pudera
Numa eterna primavera
Viver, qual vive esta flor.
Juntar as rodas da vida,
Na rama verde e florida,
Na verde rama do amor!
(Castro Alves)

Talvez

Talvez não ser,
é ser sem que tu sejas,
sem que vás cortando
o meio dia com uma flor azul,
sem que caminhes mais tarde
pela névoa e pelos tijolos,
sem essa luz que levas na mão que,
talvez, outros não verão dourada,
que talvez ninguém soube que crescia
como a origem vermelha da rosa,
sem que sejas, enfim,
sem que viesses brusca, incitante
conhecer a minha vida,
rajada de roseira,
trigo do vento,
E desde então, sou porque tu és

E desde então és
sou e somos...
E por amor
Serei... Serás...Seremos...
(Pablo Neruda)

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias

(O soneto que só errado ficou certo)

Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias
para te dizer, com a simplicidade do bater do coração,
que afinal ao pé de ti apenas sinto as mãos mais frias
e esta ternura dos olhos que se dão.
Nem asas, nem estrelas, nem flores sem chão
- mas o desejo de ser a noite que me guias
e baixinho ao bafo da tua respiração
contar-te todas as minhas covardias.
Ao pé de ti não me apetece ser herói
mas abrir-te mais o abismo que me dói
nos cardos deste sol de morte viva.
Ser como sou e ver-te como és:
dois bichos de suor com sombra aos pés.
Complicações de luas e saliva
(José Gomes Ferreira)

domingo, 13 de abril de 2008

O que eu te diria

O que eu te diria tem o nome dos instantes suspensos
como há depois da música, nas flores,
e no começo da noite...


O que eu te diria só podias ouvi-lo com a última nudez;
minhas palavras têm a claridade dos corpos que se dão
sem pertencerem.


O que eu te diria tem-te esperado muito.
Por isso te sabe de cor e te perco tanto;
e dos longos diálogos que é não chegares
vais morrendo, excessiva, de ti mesma.


Se nalgum lugar do destino nos encontrarmos
olharás em mim o teu rosto com os olhos brancos,
como se olhasses tua morte mais pura.

(Vitor Matos e Sá)

Que dizer da borboleta

Que dizer da borboleta
que pousa de ramo em ramo?

Talvez ela não saiba
que meus olhos a vêem voar no vento.

Talvez saiba.

Também o meu afecto
vai no vento e voa
e pousa nos ramos frágeis
da minha amada.
(Casimiro de Brito)

Amor é um fogo que arde sem se ver




Amor é um fogo que arde sem se ver
É poder sonhar sempre acordado;
É ter em minha alma, aconchegado,
Teu corpo e a essência de teu ser.


É ter-te ainda para além de ter,
Sem saber onde começo ou acabo;
E tu me teres e eu em mim te trago,
E não há dor que mate este prazer.


É ter a tua mão dentro da minha,
É onde a alma tu foste pôr
Para que ao meu coração te leve.


É este incêndio que em mim caminha,
Arde nas veias e no teu rubor,
É ser eterno ainda que breve.

(António Simões)

Soneto

Se, para possuir o que me é dado,
Tudo perdi e eu própio andei perdido,
Se, para ver o que hoje é realizado,
Cheguei a ser negado e combatido.

Se, para estar agora apaixonado,
Foi necessário andar desiludido,
Alegra-me sentir que fui odiado
Na certeza imortal de ter vencido!

Porque, depois de tantas cicatrizes,
Só se encontra sabor apetecido
Àquilo que nos fez ser infelizes!

E assim cheguei à luz de um pensamento
De que afinal um roseiral florido
Vive de um triste e oculto movimento
(António Botto)

A Palavra Impossível

Deram-me o silêncio para eu guardar dentro de mim
A vida que não se troca por palavras.
Deram-mo para eu guardar dentro de mim
As vozes que só em mim são verdadeiras.
Deram-mo para eu guardar dentro de mim
A impossível palavra da verdade.


Deram-me o silêncio como uma palavra impossível,
Nua e clara como o fulgor duma lâmina invencível,
Para eu guardar dentro de mim,
Para eu ignorar dentro de mim
A única palavra sem disfarce -
A Palavra que nunca se profere.

(Adolfo Casais Monteiro)

Ternura


Desvio dos teus ombros o lençol
que é feito de ternura amarrotada,
da frescura que vem depois do Sol,
quando depois do Sol não vem mais nada...
Olho a roupa no chão: que tempestade!
Há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
em que uma tempestade sobreveio...
Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente
que da nossa ternura anda sorrindo...
Mas ninguém sonha
a pressa com que nós a despimos
assim que estamos sós!
(David Mourão Ferreira)

sábado, 12 de abril de 2008

Poesia


Se todo o ser ao vento abandonamos
E sem medo nem dó nos destruímos,
Se morremos em tudo o que sentimos
E podemos cantar, é porque estamos nús em sangue,
embalando a própria dor
Em frente às madrugadas do amor.
Quando a manhã brilhar refloriremos
E a alma possuirá esse esplendor
Prometido nas formas que perdemos.
.
(Sophia de Mello Breyner Andresen)

Falavam-me de Amor


Quando um ramo de doze badaladas
Se espalhava nos móveis e tu vinhas
Solstício de mel pelas escadas
De um sentimento com nozes e com pinhas,
Menino eras de lenha e crepitavas
Porque do fogo o nome antigo tinhas
E em sua eternidade colocavaso
O que a infância pedia às andorinhas.
Depois nas folhas secas te envolvias
De trezentos e muitos lerdos dias
E eras um sol na sombra flagelado.
O fel que por nós bebes te liberta
E no manso natal que te conserta
Só tu ficaste a ti acostumado.
(Natália Correia)

Bonita

Primeiro foram as mãos que me disseram
Que ali havia gente de verdade
Depois fugi-te pelo corpo acima
Medi-te na boca a intensidade
Senti que ali dentro havia um tigre
Naquele repouso havia movimento
Olhei-te e no sol havia pedras
Parámos ambos como se parasse o tempo

É tão dificil encontrar pessoas assim
Bonitas
É tão dificil encontrar pessoas assim
Bonitas
Atrevi-me a mergulhar nos teus cabelos
Respirando o espanto que me deras
Ali havia força havia fogo
Havia a memória que aprenderas
Senti no corpo todo um arrepio
Senti nas veias um fogo esquecido
Percebemos num minuto a vida toda
Sem nada te dizer ficaste ali comigo
É tão dificil encontrar pessoas assim
Bonitas
É tão dificil encontrar pessoas assim
Bonitas
Falavas de projectos e futuro
De coisas banais frivolidades
Mas quando me sorriste parou tudo
Problemas do mundo enormidades
Senti que um rio parava e o nevoeiro
Vestia nos teus dedos capa e espada
Queria tanto que um olhar bastasse
E não fosse no fundo preciso
Queria tanto que um olhar bastasse
E não fosse preciso dizer nada...
É tão dificil encontrar pessoas assim
Bonitas
É tão dificil encontrar pessoas assim
Bonitas
(Pedro Barroso)

Súplica

Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.

Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer,
Enquanto o nosso amor durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.
(Miguel Torga)

Surdo, subterrâneo rio

Surdo, subterrâneo rio de palavras
me corre lento pelo corpo todo;
amor sem margens onde a lua rompe
e nimba de luar o próprio lodo.
Correr do tempo ou só rumor do frio
onde o amor se perde e a razão de amar
surdo, subterrâneo, impiedoso rio,
para onde vais, sem eu poder ficar?
(Eugénio de Andrade)