sexta-feira, 30 de maio de 2008

Casa


Tentei fugir da mancha mais escura
Que existe no teu corpo e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
Era a dor de ficar sem sepultura.
Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.
Só por dentro de ti há corredores
E em quartos interiores o cheiro a fruta
Que veste de frescura a solidão…
Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
O que me sai, sem voz, do coração.
(David Mourão-Ferreira)

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Apenas sou tua


No voltear da caneta
As mãos trêmulas
Abraçam palavras e desejos
Há sempre no olhar
O suspiro que se contém
A ausência absoluta
Contando aos meus silêncios
A mesma história
Que te chama de minha saudade
São inúteis os dias
Distraídos em meus olhares
A vida, espectáculo perdido
Se não me sei debruçada
Nos braços do teu pensamento
Convocada pelos lábios da tua saudade
Na palma das minhas mãos
Deslizam letras e anseios
Ocultando-me em labirintos de afectos
Não há o impossível, nem a tua falta
Quando nua de segredos
Deixo-me afagar pela poesia
Que me declama por ti
E envolve-me numa vertigem lenta
Em meio a memória da ternura
O universo do meu corpo
Suspira letras de desejo
Pronunciando apenas que sou tua
(Fernanda Guimarães)

terça-feira, 27 de maio de 2008

Oferenda


Eu dou estes meus versos à humildade
Dos que são meus irmãos no insatisfeito anseio;
Aos poetas que não ousam cantar,
E a esses pintores cujo mais belo quadro,
Entrevisto num sonho,
É sempre o que jamais podem pintar;
Aos que sentem na alma os ritmos estranhos
Da partitura que não sabem escrever;
E aos que, vivendo a Vida, em cada instante
Pensam que hão-de morrer;
Aos que consigo trazem a ternura
E o generoso anseio de se dar,
Mas que ninguém quis aceitar;
E aos homens e mulheres que morrerão
Obscuros como eu,
Porque nunca puderam encontrar
Sua íntima expressão;
Aos soldados que não foram heróis
Só porque nunca combateram;
E aos soldados vencidos nas batalhas,
Mais tristes porque nelas não morreram;
E aos que adoram crianças, sem ter filhos,
E a todos,
Todos os que, por diferentes trilhos,
Levam em segredo e quase a medo,
Dentro de si,
Um mundo destroçado de ilusões desfeitas,
Ou, como eu,
Um infinito de Capelas Imperfeitas.
(Marcelo Mathias)

Água


A água é terra antes de estar sólida.
O homem deita-se nela à espera.
Pouco a pouco o peito torna-se podre.
É uma caverna pantanosa
que respira anéis de enxofre.
A carne dissolve-se em Iodo.
Afunda-se nos limos da terra,
húmido lume.
As águas trazem o sono.
Calcinam-nos os membros,
inflamam-nos o sangue.
Deitado em lençóis de cal
o homem desfaz-se em Iodo
e depois em sonhos.
O sangue é o combustível da luz.
As estrelas são plantas aquáticas.
A matéria mortal abre saudosa
durante a noite corolas magníficas
com pétalas de metal.
O sono mágico da água produz
nenúfares incorruptíveis,
flores frias de lume, esmeraldas.
Mergulham em cinza o seu caule.
O amor e a morte transmutam ao alto
em memória os corpos.
Vêem-se lótus.
As águas profundas reabsorvem as cinzas.
A saudade desfaz-nos o corpo em febre.
Fezes.
Sobre o lodo aparecem estrelas de oiro
círculos brilhantes de luz,
pedras brancas de sal.
(António Cândido Franco)

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Lágrima


Dos olhos me cais
redonda formusura.
Quase fruto ou lua,
cais desamparada.
Regressas à água
mais clara do dia,
obscuro alimento de altas açucenas.
Breve arquitectura
da melancolia.
Lágrima, apenas.
(Eugénio de Andrade)

Estranho é o sono que não te devolve


Estranho é o sono que não te devolve.
Como é estrangeiro o sossego
de quem não espera recado.
Essa sombra como é a alma de quem
já só por dentro se ilumina
e surpreende
e por fora é apenas peso de ser tarde.
Como é amargo não poder guardar-te
em chão mais próximo do coração.
(Daniel Faria)

Respiro o teu corpo


Respiro o teu corpo:
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noites
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.
(Eugénio de Andrade)

sábado, 24 de maio de 2008

Curiosidade


Quantos braços já te abraçaram
sem te quererem abandonar?
Quantos, quantos, imagino,
apesar de não querer pensar...
Quantos lábios já te beijaram,
proclamando querer te amar?
Quantos, quantos, imagino,
apesar de não querer pensar...
Faz de tua vida um segredo,
e de meu amor por ti sofrer,
Deixa que eu sempre imagine,
apesar de não querer saber.
(Manuel L. Ponte)

Suspenso no teu amor


Talvez seja o rosto que não consigo esquecer.
Talvez o meu tesouro ou o preço que tenho a pagar.
Ela talvez seja o Sol que o Verão canta.
Talvez seja uma centena de coisas diferentes,
dentro dos limites de um dia.
Talvez seja a bela ou a fera.
Talvez seja a fome ou o banquete.
Talvez seja o espelho dos meus sonhos.
Um sorriso reflectido num riacho.
Talvez seja a razão pela qual sobrevivo.
O “porquê” e o “para quê” pelos quais estou vivo.
Eu tomarei o seu sorriso e as suas lágrimas,
e farei delas todas as minhas recordações.
Pois para onde ela for, eu tenho de estar!
(Andy)

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Retrato Ardente


No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.


Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.

Da cintura aos joelhos
é que a areia queima,
o sol é secreto,
cego o silêncio.

Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha.

(Eugénio de Andrade)

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Este livro

Este livro.
Passa um dedo pela página, sente o papel
como se sentisses a pele do meu corpo,
o meu rosto.
Este livro tem palavras. esquece as palavras por momentos.
O que temos para dizer não pode ser dito.
Sente o peso deste livro.
O peso da minha mão sobre a tua.
Damos as mãos quando seguras este livro.
Não me perguntes quem sou.
Não me perguntes nada.
Eu não sei responder a todas as perguntas do mundo.
Pousa os lábios sobre a página.
Pousa os lábios sobre o papel.
Devagar, muito devagar.
Vamos beijar-nos.
(José Luís Peixoto)

De cada vez


Contínua realidade que me sorves os dias
Como hei-de responder-te
Se vives incluída nos meus olhos abertos
Nas ávidas e frias pedras incertas
Vida
Prisioneira do espelho que embacias
De cada vez que a turva suicida
Torna ao morrer visíveis
As formas com que comes os meus dias.
(Gastão Cruz)

sábado, 17 de maio de 2008

Romance


Olha o mundo.
E faz perguntas, como se nascesses agora.
Sobre o que vês, sobre o que é a luz e a realidade.
E a subtil diferença
Entre o superficial e o profundo.
E então, se quiseres mesmo,
Talvez consigas entender o que sinto na tua presença.
E consigas perceber o que é renascer a cada momento,
E ter uma luz diferente cada dia.
E saber que o que sou é porque és,
E que sem isso nada mais é que deserto.
E que se te pareço a ti incerto,
A incerteza é tua
Porque para mim não há
Juras e promessas além de ti,
E leis além do que me dizes e olhas.
E quero, isso quero,
Quero-te amar não ao ponto de dar a minha vida por ti,
Mas ao ponto de dar a minha vida contigo.
Quero amar-te não ao ponto de dar a minha vida por nós,
Mas sermos nós a minha vida.
E quero amar-te para além do significado das palavras
E para além do significado do amor,
Mas nunca para além do teu significado.
E se não quiseres,
Não precisas de querer.
O amor não se quer, cria ou transforma.
Existe, em mim, por ti até morrer,
E se não existe em ti, nada a fazer, pois não se forma.
(Pedro Leitão)

sexta-feira, 16 de maio de 2008

Noite de Saudade


A Noite vem poisando devagar
Sobre a Terra,
que inunda de amargura ...
E nem sequer a bênção do luar
A quis tornar divinamente pura ...

Ninguém vem atrás dela a acompanhar
A sua dor que é cheia de tortura ...
E eu oiço a Noite imensa soluçar!
E eu oiço soluçar a Noite escura!

Por que és assim tão escura, assim tão triste?!
É que, talvez, ó Noite, em ti existe
Uma Saudade igual à que eu contenho!

Saudade que eu sei donde me vem ...
Talvez de ti, ó Noite!... Ou de ninguém!...
Que eu nunca sei quem sou, nem o que tenho!!!



(Florbela Espanca)

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Desalento


Sim, vai e diz
Diz assim
Que eu chorei
Que eu morri
De arrependimento
Que o meu desalento
Já não tem mais fim
Vai e diz
Diz assim
Como sou infeliz
No meu descaminho
Diz que estou sozinho
E sem saber de mim
Diz que eu estive por pouco
Diz a ela que estou louco
Pra perdoar
Que seja lá como for
Por amorPor favor
É pra ela voltar
Sim, vai e dizDiz assim
Que eu rodei
Que eu bebi
Que eu caí
Que eu não sei
Que eu só sei
Que cansei, enfim
Dos meus desencontros
Corre e diz a ela
Que eu entrego os pontos
(Vinícius de Morais)

terça-feira, 6 de maio de 2008

Não posso adiar o amor


Não posso adiar o amor para outro século,
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite
e arda sob as montanhas cinzentas.
Não posso adiar este braço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio.
Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
Não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor nem o meu grito de libertação
Não posso adiar o coração
(António Ramos Rosa)

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Lágrima de preta


Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.
Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.
Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.
Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.
Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:
Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.
(António Gedeão)

domingo, 4 de maio de 2008

Poema à mãe


No mais fundo de ti
Eu sei que te traí, mãe.

Tudo porque já não sou
O menino adormecido
No fundo dos teus olhos.
Tudo porque ignoras
Que há leitos onde o frio não se demora
E noites rumorosas de águas matinais.
Por isso, às vezes, as palavras que te digo
São duras, mãe,
E o nosso amor é infeliz.
Tudo porque perdi as rosas brancas
Que apertava junto ao coração
No retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
Talvez não enchesses as horas de pesadelos.
Mas tu esqueceste muita coisa;
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
Que todo o meu corpo cresceu,
E até o meu coração
Ficou enorme, mãe!

Olha - queres ouvir-me?
-Às vezes ainda sou o menino
Que adormeceu nos teus olhos;
Ainda aperto contra o coração
Rosas tão brancas
Como as que tens na moldura;
Ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
No meio do laranjal…

Mas - tu sabes
- a noite é enorme,
E todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
Dei às aves os meus olhos a beber.
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.
(Eugénio de Andrade)

Beijo


Procurei uma explicação para o beijo.
Aquele beijo simplesde todo o dia.
Um beijo rápido.
Será que é por beijar?
É de despedida.
É de chegada.
É beijo que se acostumou?
Fechei os olhos
senti teu beijo,
não tem explicação.
Beijo é beijo.
É tudo.
É conexão.
Juntos nossos lábios em segundos.
Minha alma na tua.
Minha vida na tua.
Meu amor em paixão.
(Ana Mello)

sábado, 3 de maio de 2008

A arte de amar


Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus — ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.
(Manuel Bandeira)

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Ingratidão


Nunca mais me esqueci! ... Eu era criança
E em meu velho quintal, ao sol-nascente,
Plantei, com a minha mão ingênua e mansa,
Uma linda amendoeira adolescente.
Era a mais rútila e íntima esperança...
Cresceu... cresceu... e aos poucos, suavemente,
Pendeu os ramos sobre um muro em frente
E foi frutificar na vizinhança...
Daí por diante, pela vida inteira,
Todas as grandes árvores que em minhas terras,
num sonho esplêndido semeio,
Como aquela magnífica amendoeira,
E florescem nas chácaras vizinhas
E vão dar frutos no pomar alheio...
(Raul de Leoni)

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Amar-te é vir de longe


Amar-te é vir de longe,
descer o rio verde atrás de ti,
abrir os braços longos
desde os sete anos
sobre a lata da ao pé do largo,
guardar o cheiro a figos vistos lá,
a olho nú, ao pé, ao pé de ti,
parar a beber água numa fonte,
um acaso perdido no caminho
onde os vimes me roçam a memória
e te anunciam mãos e te perfazem;
como se o sino à hora de tocar
já fosse o tempo todo badalado,
e a tua boca se abrisse atrás do tojo,
e abaixo dos calções as pernas nuas
se rasgassem só para o pequeno sangue,
tal o pequeno preço que me pedes.
Atrás da curva estavas, és, serias,
nos muros de granito, nas amoras.
Amar-te era lembrança e profecias,
uma porta já feita para abrir,
e encontrar o lar ou música lavada
onde, se nasces, vives, duras, moras
- meu nome exacto e pão
no chão das alegrias.
(Pedro Tamen)

Estrela da tarde


Era a tarde mais longa
de todas as tardes
que me acontecia
Eu esperava por ti,
tu não vinhas,
tardavas e eu entardecia
Era tarde, tão tarde,
que a boca tardando-lhe
o beijo morria.
Quando à boca da noite
surgiste na tarde
qual rosa tardia
Quando nós nos olhámos,
tardámos no beijo
que a boca pedia
E na tarde ficámos, unidos,
ardendo na luz que morria
Em nós dois nessa tarde
em que tanto tardaste
o sol amanhecia
Era tarde de mais
para haver outra noite,
para haver outro dia.
(Ary dos Santos)

Na palma da mão


Não tenho vocação para a saudade
é o agora que amo
em cada gesto em cada cheiro
em cada cor em cada choro.
É o brilho das coisas e a neblina
o claro e o escuro
da condensada noite,
e a fluidez da manhã
acordada sozinha.

É o mistério das coisas que contemplo
olhos para o futuro que trago comigo
desde que nasci.
(Angela Leite)