segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Secreta viagem


No barco sem ninguém, anónimo e vazio,
ficámos nós os dois, parados, de mão dada...
Como podem só dois governar um navio?
Melhor desistir e não fazermos nada!
*
Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos,
tornamo-nos reais, e de madeira, à proa...
Que figuras de lenda! Olhos vagos, perdidos...
Por entre nossas mãos, o verde mar se escoa...
*
Aparentes senhores de um barco abandonado,
nós olhamos, sem ver, a longínqua miragem...
Aonde iremos ter? - Com frutos e pecado,
se justifica, enflora, a secreta viagem!
*
Agora sei que és tu quem me fora indicada.
O resto passa, passa... alheio aos meus sentidos.
- Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada,
a eternidade é nossa, em madeira esculpidos!
***
(David Mourão-Ferreira)

Qual é a tarde por achar


Qual é a tarde por achar
Em que teremos todos razão
E respiraremos o bom ar
Da alameda sendo verão,
*
Ou, sendo inverno, baste 'star
Ao pé do sossego ou do fogão?
Qual é a tarde por voltar?
Essa tarde houve, e agora não.
*
Qual é a mão cariciosa
Que há de ser enfermeira minha —
Sem doenças minha vida ousa —
Oh, essa mão é morta e osso...
Só a lembrança me acarinha
O coração com que não posso.
***
(Fernando Pessoa)

Eterno aprendiz


Arriscando
soltar o verbo,
risquei essas mal traçadas linhas,
paralelas,inconstantes,
pequenas letras meninas.
*
Eternamente aprendiz,
sigo pescando verdades,
engolindo mentiras,
vivendo e aprendendo.
*
E quando chegar ao fim,
porque o fim é um meio,
levarei a senha na alma,
riscada no verso de mim.
***
(Amélia de Morais)

O pássaro de bico amarelo...


Abri a janela azul, aquela janela que dá para ver o mundo inteiro.
Tu sabes qual é...
*
Abri aquela janela ali mesmo ao fundo, na sala onde está o sofá velhinho, moldado pelo peso dos nossos corpos.
*
Abri a janela azul e entrou de rompante um estranho pássaro azul, de bico amarelo...
*
Entregou-me um livro de capa creme.
*
Falava de campos azuis, névoas matinais, maresias coloridas.
*
Falava de sóis de dióspiro caindo de mansinho na linha do horizonte.
*
Já não sei se o pássaro de bico amarelo se enganou ao entrar na minha janela azul.
*
Afinal também se enganam no voo os pássaros!
*
Porque, o pássaro de bico amarelo não trazia a indicação do remetente, nem aviso de recepção!
*
Seria um pássaro verde?...
*
Seria mesmo um pássaro de bico amarelo?
*
Mas não era madrugada.
*
E o sol de dióspiro estava lá... poisado no horizonte...
da minha janela azul.
***
(Arroba)
---
(Com um enorme agradecimento à autora pela amabilidade e simpatia com que atendeu o meu pedido para usar as suas lindas palavras e assim me ajudar a "florir" este jardim de poesia)

O que temos


Deixei contigo o meu amor,
música de açúcar a meio da tarde,
um botão de vestido por apertar
e o da vida por desapertar,
a flor que secou nas páginas de um livro,
tantas palavras por dizer
e a pressa de chegar
com o azul do céu à saída,
por entre cafés fechados e um por abrir.
*
Mas trouxe comigo o teu amor,
os murmúrios que o dizem quando os lembro,
a supresa de um brilho no olhar,
brinco perdido em secreto campo,
o remorso de partir ao chegar
e tudo descobrir de cada vez,
mesmo que seja igual ao que vês
neste caminho por encontrar
em que só tu me consegues guiar.
*
Por isso tenho tudo o que preciso,
mesmo que nada nos seja dado;
e basta-me lembrar o teu sorriso
para te sentir ao meu lado.
***
(Nuno Júdice)

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Agora!


A luz que dá o teu rosto
É a luz da madrugada,
Mas vi-a quase ao sol posto
De uma vida amargurada…
Tão tarde vi o teu rosto!
*
Oh! Se na manhã da vida
Me raia logo essa aurora,
Quando folha e flor caída
me embelezara inda agora
O triste arbusto da vida!
*
Mas andei sempre às escuras…
Por onde nem se lobriga
Luz de estrelas nas alturas,
Quanto mais em face amiga…
Eu andei sempre às escuras!
*
E agora vendo a beleza
Dessa luz que me alumia,
Não sei se minha tristeza
É mais do que a minha alegria…
Vendo agora essa beleza!
***
(João de Deus)

Cantiga


Deixa-te estar na minha vida
Como um navio sobre o mar.
Se o vento sopra e rasga as velas
E a noite é gélida e comprida
E a voz ecoa das procelas,
Deixa-te estar na minha vida.
Se erguem as ondas mãos de espuma
Aos céus, em cólera incontida,
E o ar se tolda e cresce a bruma,
Deixa-te estar na minha vida.
À praia, um dia, erma e esquecida,
Hei, com amor, de te levar.
Deixa-te estar na minha vida.
Como um navio sobre o mar.
***
(João Cabral do Nascimento)

A vida não é de abrolhos


A vida não é de abrolhos.
É de abr'olhos.
A vida não é de escolhos.
É de escolhas.
Por que me olhas e m'olhas?
Por que me forras a alma
com o relento de um sentimento?
Serei eu a tua escolha?
Abre os olhos e olha,
que eu já me escolhi em ti!
***
(Alexandre O'Neill)

Mais um fado no fado


Eu sei que esperas por mim
Como sempre, como dantes
Nos braços da madrugada...
Eu sei que em nós não há fim,
Somos eternos amantes,
Que não amaram mais nada.
*
Eu sei que me querem bem,
Eu sei que há outros amores
Para bordar no meu peito.
Mas eu não vejo ninguém,
Porque não quero mais dores
Nem mais baton no meu leito.
*
Nem beijos que não são teus,
Nem perfumes duvidosos,
Nem carícias perturbantes,
E nem infernos nem céus,
Nem sol nos dias chuvosos,
Porque inda somos amantes.
*
Mas Deus quer mais sofrimento,
Quer mais rugas no meu rosto
E o meu corpo mais quebrado...
Mais requintado tormento,
Mais velhice, mais desgosto,
E mais um fado no fado.
***
(Júlio de Sousa)

oceanos entre mim e mim


oceanos largos entre mim e mim, afastam-me,
enfim, tal como continentes distantes,
mas o leme forte faz-me flutuar entre ambos
rumo ao porto, livre de procelas, que anseio.
mares como o sangue que flui por minhas veias
num mergulho adiante da felicidades superficial
à frente da beleza da aparência subconsciente
expondo, nessa aventura, meu íntimo sem receio.
não ostra aberta à força pela faca que interrompe
o gozo de expelir a pérola madura e pura,
mas consciente da importância no equilíbrio todo.
entre mim e mim, livre da vontade do meu querer,
na errância entre corpo e... alma? nada pode ser nada,
contraditório abandono em calma, além do mistério de viver,
emergi no regresso amargo das respostas não encontradas.
singro meus desejos contidos alando asas aos ventos
que encrespam os oceanos e dissipam a nuvem grácil
e no orgasmo que estremece meu ser como mar aberto,
há coisa ainda estranha e imponderável, por certo,
que paira sobre o meu corpo transitório e frágil.
***
(António Miranda Fernandes)

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Palavras impossíveis


Deram-me o silêncio para eu guardar dentro de mim
A vida que não se troca por palavras.
Deram-mo para eu guardar dentro de mim
As vozes que só em mim são verdadeiras.
Deram-mo para eu guardar dentro de mim
A impossível palavra da verdade.
Deram-me o silêncio como uma palavra impossível,
Nua e clara como o fulgor duma lâmina invencível,
Para eu guardar dentro de mim,
Para eu ignorar dentro de mim
A única palavra sem disfarce -
A palavra que nunca se profere.
***
(Adolfo Casais Monteiro)

Luar de Janeiro


O luar quando bate na relva
Não sei que cousa me lembra...
Lembra-me a voz da criada velha
Contando-me contos de fadas.
E de como Nossa Senhora vestida de mendiga
Andava à noite nas estradas
Socorrendo as crianças maltratadas...
Se eu já não posso crer que isso é verdade,
Para que bate o luar na relva?
***
(Alberto Caeiro)

O sangue dos segredos


Eu contarei a beleza das estátuas
- Seus gestos imóveis ordenados e frios -
E falarei do rosto dos navios
Sem que ninguém desvende outros segredos
Que nos meus braços correm como rios
E enchem de sangue a ponta dos meus dedos
***
(Sophia de Mello Breyner Andresen)

(Re-truque)


Traga
apenas
o que me apraz

nas mãos o vento
tão morno e doce
como se
prelúdio ele fosse
de um beijo audaz

Traga nos olhos
a somente única
(não minta.
o meu olhar não mente)
rosa rubra
de pólen repleta
que nas pupilas floresce
e a mim oferte,
se quiser me amar

Caso não queira,
não fustigue
nem me assanhe
Não sou do tipo normal
Jogo o corpo na ventania
depois aguardo
Se fui bem...se fui mal...
***
(Jeanete Ruaro)

Primeiro encontro



Veio da virtual imensidão
Como quem sai dum sonho ao acordar.
Ofereceu-me a face, para a beijar,
Com o rubor feliz duma emoção.
Convidei-a prá minha refeição.
E as velas sobre a mesa do jantar
Brilhavam no azul do seu olhar
Como estrelas no Céu duma ilusão.
O que comemos? Sei lá se comemos,
Que em profundos olhares nos perdemos
Como quem enlouquece a pouco e pouco.
Nem sei sequer se lhe falei de amor
Nesse meu derradeiro esplendor:
Última lucidez de quem está louco.
***
(Cândido Felisteu)


Nas estantes os livros ficam
(até se dispersarem ou desfazerem)
enquanto tudo passa.
O pó acumula-se e depois de limpo
torna a acumular-se no cimo das lombadas.
Quando a cidade está suja (obras, carros, poeiras)
o pó é mais negro e por vezes espesso.
Os livros ficam, valem mais que tudo,
mas apesar do amor
(amor das coisas mudas que sussurram)
e do cuidado doméstico fica sempre, em baixo,
do lado oposto à lombada,
uma pequena marca negra do pó nas páginas.
A marca faz parte dos livros.
Estão marcados.
Nós também.
***
(Pedro Mexia)

Os amantes


As palavras amendoam o sorriso, amado, amada
conversam e conversam, deitados lado a lado
depois, e devagar, maciamente
passam à pele absoluta do silêncio
***
(Isabel Cristina Pires)

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Feminina

Não lavei os seios
pois tinham o calor da tua mão.
Não lavei as mãos
pois tinham os sons do teu corpo.
Não lavei o corpo
pois tinha os rastros dos teus gestos;
tinha também, o meu corpo,
a sagrada profanação
do teu olhar que não lavei.
Nem aqueles lençóis,
não os lavei,
nem os espelhos,
que continuam
onde sempre estiveram:
porque eles nos viram cúmplices,
e a paixão no paraíso parece que era.
Lavei, sim,
lavei e perfumei a alma em jasmim,
que é só tua
para te esperar
como se nunca tivesses ido
a nenhum lugar:
donde apaguei todas as ausências
que apaguei do teu olhar.
***
(Soares Feitosa)




A sul de ti


"Talvez amor
a sul de ti
descubra as cores que me ilustram o teu sorriso
as frases que me receitam o teu precioso sorriso:
250 gr de azul
150 gr de dourado
2 dl de arco íris
4 de aconchego
e outros tantos libertinos litros de qualquer coisa
qualquer coisa amor, do sul
para ti."
***
(Jorge Serafim)

O corpo


"Nunca estive tão só diz o meu corpo e eu rio-me
porque o corpo é o corpo
não tem nada a fazer
não tem para onde ir
não lembra
não se lembra
quer estar sempre agarrado
suprimido
apertado
e se é belo é pior
vive num amarrote permanente"
***
(Mário Cesariny)

Verão, Outono


"Antigamente havia em mim um nome gravado a fogo
eu morria por ele.
Eu fechava os olhos e o nome pedia-me a luz,
a manhã, a música.
Antigamente eu imaginava a delicadeza,
as florestas, os bosques reduzidos ao silêncio
pelos subterrâneos da tarde,
e ser tocado no rosto era ser ferido por uma imensa
beleza, pelos olhos da planície, como um animal adormecido,
como um lugar onde deitar a cabeça
e adormecer sonhando com o deserto.
No deserto eu estava a salvo, caminhando nos
declives e havia palavras imensas,
palavras como o trigo e o mar
e as raízes e os relâmpagos
e um rosto e os campos do Outono
e isso era como ficar cego no meio da luz
estremecendo entre
as poeiras, as cores da manhã, as veredas dos bosques.
E eu olho fixamente esse rosto de fogo,
toco uma vez essas mãos,
amo demoradamente a distância,
comovo-me perdido na sua voz,
enquanto passa no mundo uma estranha ventania."
***
(Francisco José Viegas)

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Pequeno diário da palavra


Toda palavra tem um oco
uma fenda uma avessa claridade
de onde as formigas emigram.
*
Há gravetos, conchas vocabulares,
acentos à paisana, vírgulas úmidas e bivalves.
Um vento antigo
tange as crases desse poema, arrasta
os pontos de exclamação pelos cabelos.
Estende-os para secar
o sol mais triste de seu nome.
*
O meio-dia a esmo
bate a sua orelha na cancela.
*
Toda palavra tem sexo e sintaxe,
um amarelo em luta
com as folhas mortas do terreiro.
Alfabeto crivado de dízimos
onde não se pode tagarelar sem doer um grão de arroz
por sob a língua.
*
Palavra carece de pátria
lugar de raiz e eleição.
*
Onde adensa sua espera, duas borboletas
grifam a giz a paisagem.
***
(Iacyr Anderson Freitas)

P de palavra e pedra


Palavras às vezes pesam como pedras
ferem a boca como pedra que se mastiga.
Agudas, acertam rápidas como pedras
dirigidas
esfriam como pedras frias na boca
ressentida
pensam e pedram como pedras no caminho.
***
(Ieda Estergilda de Abreu)

Sofrimento


No oceano integra-se (bem pouco)
uma pedra de sal.
*
Ficou o espírito, mais livre
que o corpo.
*
A música, muito além
do instrumento.
*
Da alavanca,
sua razão de ser: o impulso,
*
Ficou o selo, o remate
da obra.
*
A luz que sobrevive à estrela
e é sua coroa.
*
O maravilhoso.
O imortal.
*
O que se perdeu foi pouco.
Mas era o que eu mais amava.
***
(Henriqueta Lisboa)

As flores do mal


Teu ar, teu gesto, tua fronte
São belos qual bela paisagem;
O riso brinca em tua imagem
Qual vento fresco no horizonte.
*
A mágoa que te roça os passos
Sucumbe à tua mocidade,
À tua flama, à claridade
Dos teus ombros e dos teus braços.
*
As fulgurantes, vivas cores
De tua vestes indiscretas
Lançam no espírito dos poetas
A imagem de um balé de flores.
*
Tais vestes loucas são o emblema
De teu espírito travesso;
Ó louca por quem enlouqueço,
Te odeio e te amo, eis meu dilema!
*
Certa vez, num belo jardim,
Ao arrastar minha atonia,
Senti, como cruel ironia,
O sol erguer-se contra mim;
*
E humilhado pela beleza
Da primavera ébria de cor,
Ali castiguei numa flor
A insolência da Natureza.
*
Assim eu quisera uma noite,
Quando a hora da volúpia soa,
Às frondes de tua pessoa
Subir, tendo à mão um açoite,
*
Punir-te a carne embevecida,
Magoar o teu peito perdoado
E abrir em teu flanco assustado
Uma larga e funda ferida,
*
E, como êxtase supremo,
Por entre esses lábios frementes,
Mais deslumbrantes, mais ridentes,
Infundir-te, irmã, meu veneno!
***
(Charles Baudelaire)

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Este nunca se dar


Este nunca se dar
agora nos vermelhos
como ferros em brasa
que entretanto se esfumam
*
Nunca se dar, em negros,
só, entre lobo e cão,
branco como parede
nem ao menos um ocre
*
Ser que se escamoteia
entre o roxo e seu não
-os intervalos flavos,
glauco estar mas em vão
*
Nunca, sequer em tons,
quebram-se, lascas roxas,
sons se afogam na boca,
nesta troca de nãos.
***
(Régis Bonvicino)

Alguém corre. Uma pessoa qualquer


Corre, foge, tropeça cai
fica no chão. Lábios e língua
movem a última imagem,
alguém, o seu próprio nome.
(Na nuca a mão, na mão um revólver, na cabeça uma bala.)
Que dia era aquele?
Cheiro a pó?
***
(Bruno Weinhals)

Roupa


Aquela saia roda
como o topo do moinho de pás,
o que em mim confirma agora
que o vento me reveste.
*
Quando depois do nascimento me vestiram,
a roupa então em mim resplandeceu.
Mas estava nua, sem cambraia
ou a memória simples dela nos sentidos.
Nua e solene, com a roupa alheia
em tomo do meu corpo.
E ignorava
valor, matéria e as pompas
que entregam roupas e versos ao comércio.
Acreditava só que o gesto amado
de me cobrirem de panos ao nascer
seria a minha glória.
*
Tão devagar cosia pelo traço do giz
a máquina que os pés moveram balançando
quanto os meus olhos devagar seguiram
o traçado dos pontos e o meu espanto
de ver a ordem surgir dos riscos soltos.
O rosto atento caía sobre o pano
que pouco a pouco me tomava a forma
do meu corpo tocado pela luxúria
de tão belos cetins, veludos
inverosímeis e, como tudo o que
a memória gera, fontes de dores.
*
O tépido calor cobre-me
por fora de tules em flor.
As folhas do loureiro ridentes
assemelham-se ao meu vestido
de verde cassa.
Agradeço, pois, às bocas
de parentes os nomes ditos.
*
Todas as roupas usadas
próprias do Verão são aquele
vestido único, porque me haviam dito
que ao entrar pelos olhos
ele me cobria de fulgor.
*
Com a saia de tobralco leve passei
entre as nossas hortas, águas do poço,
coisas da quinta tão diversas todas.
E amei cada um dos vários nomes,
e também as palavras especiosas
que na retrosaria designam o belo fio
e aquelas que me mostravam os tecidos
em sequências de alucinações novas.
***
(Fiama Hassa Pais Brandão)

Quantas vezes, Amor, me tens ferido?


Quantas vezes, Amor, me tens ferido?
Quantas vezes, Razão, me tens curado?
Quão fácil de um estado a outro estado
O mortal sem querer é conduzido!
*
Tal, que em grau venerando, alto e luzido,
Como que até regia a mão do fado,
Onde o Sol, bem de todos, lhe é vedado,
Depois com ferros vis se vê cingido:
*
Para que o nosso orgulho as asas corte,
Que variedade inclui esta medida,
Este intervalo da existência à morte!
*
Travam-se gosto, e dor; sossego e lida;
É lei da natureza, é lei da sorte,
Que seja o mal e o bem matiz da vida.
***
(Bocage)

As ondas


Entre as trêmulas mornas ardentias,
A noite no alto-mar anima as ondas.
Sobem das fundas úmidas Golcondas,
Pérolas vivas, as nereidas frias:
*
Entrelaçam-se, correm fugidias,
Voltam, cruzando-se; e, em lascivas rondas,
Vestem as formas alvas e redondas
De algas roxas e glaucas pedrarias.
*
Coxas de vago ônix, ventres polidos
De alabastro, quadris de argêntea espuma,
Seios de dúbia opala ardem na treva;
*
E bocas verdes, cheias de gemidos,
Que o fósforo incendeia e o âmbar perfuma,
Soluçam beijos vãos que o vento leva...
***
(Olavo Bilac)

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Amor é síntese


Amor é síntese
Por favor não me analise,
Não fique procurando cada ponto fraco meu,
Se ninguém resiste a uma análise profunda,
Quanto mais eu
Ciumento, exigente, inseguro, carente,
Todo cheio de marcas que a vida deixou.
Vejo em cada grito de exigência
Um pedido de carência, um pedido de amor.
Amor é síntese,
É uma integração de dados,
Não há que tirar nem pôr.
Não me corte em fatias,
Ninguém consegue abraçar um pedaço,
Me envolva todo em seus braços
E eu serei perfeito, amor.
***
(Mário Quintana)
(Dedicado a todos os apaixonados, mas a dois em especial)

Deixe estar


Deixe estar
Teus olhos pousados além da brisa
Nossas mãos dadas na sacada do prédio
Olhando os templos acinzentados da cidade.
*
Deixe estar
Nossos corpos brincando de equilibrista
Na cama de lençol desarrumado
No quarto esquecido, silencioso, abandonado
Pequeno. A fim de abrigar nossos risos.
*
Deixe passar
Nuvem após nuvem, pois o teu sorriso
É como um clarão da primavera no paraíso.
É o porto que eu queria atracar
Por isso, por isso deixe estar...
E deixe...
*
Que minha alma novamente sonhe contigo
Que as buzinas e os pombos me despertem neste lugar.
Quando chegar a aurora.
E eu ver que sem você não sou nada.
Então deixe estar...
O poeta só.
***
(Heitor Henrique)

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Os prazeres da leitura


No seu leito de moribundo o meu pai lê
As memórias de Casanova.
Eu vejo a noite cair,
Algumas janelas que se iluminam na rua.
Numa delas uma jovem lê
Junto ao vidro.
Há muito tempo que não ergue os olhos,
Mesmo com a escuridão a chegar.
*
Enquanto ainda há um resto de luz,
Desejo que ela levante a cabeça,
E eu consiga ver-lhe a cara
Que já consigo imaginar,
Mas o livro deve ser intrigante.
Além disso, que silêncio,
Cada vez que volta uma página,
Consigo ouvir o meu pai, que também volta uma,
Como se eles lessem o mesmo livro.
***
(Charles Simic)**
** Tradução de José Alberto Oliveira

Um amigo


Há uma casa no olhar de um amigo.
Nela entramos sacudindo a chuva.
Deixamos no cabide o casaco
fumegando ainda dos incêndios do dia.
Nas fontes e nos jardins
das palavras que trazemos
o amigo ergue o cálice
e o verão das sementes.
Então abre as janelas das mãos
para que cantem a claridade,
a água e as pontes da sua voz
onde dançam os mais árduos esplendores.
Um amigo somos nós, atravessando o olhar
e os véus de linho sobre o rosto da vida
nas tardes de relâmpagos e nos exílios,
onde a ira nómada da cidade arde
como um cego em busca de luz.
***
(Eduardo Bettencourt Pinto)

Sabíamos do mar sem o sabermos


Sabíamos do mar sem o sabermos,
do mar dos mapas, da cor azul do mar,
dos naufrágios no mar,
do sol solto no mar.
*
Sabíamos do mar sem o sentirmos
nos poros dilatados pelo mar,
o verdejante mar escalando as montanhas
tão bruscas como o sal.
*
Sabíamos do mar em sinuosos sinos
assinalando a noite
com corações arrepiados,
abertos como mãos
sulcadas de cabelos e molhadas
de rugas e escamas.
*
Sabíamos do mar em signos,
símbolos, tropos e metáforas.
Sabíamos do mar?
Sabíamos o mar.
Sabíamos a mar.
***
(António Rebordão Navarro)

Vagos


Eu sei
Que já é tarde pra fazer declarações.
Talvez o vento tenha levado as paixões
dos mais belos românticos...
Eu sei
que a vida é um abismo em trevas e somente
as alegrias plantadas dão sementes
dentro de outros corações
como o meu...
*
Eu sei
que já é tarde pra fazer declarações
Você está comendo pizza num sexta a noite
e eu estou lembrando que os campos de trigo
não são mais belos que o teu sorriso...
E entendo
que a canção pode ter chegado ao fim
e o abismo que é a vida se contradisse
pois estou feliz agora
Ainda te tenho dentro de mim.
*
E eu sei
que já é tarde pra fazer declarações
já não nos resta mais lampejos de paixões.
Foram-se todos com o vento que deixou
nossa vil lembrança plantada como semente
dentro de um pedaço nosso
meio carente, meio contente
dentro e somente, dos nossos vagos corações.
E eu sei."
***
(Heitor Henrique)

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Quando me quer enganar


Quando me quer enganar
A minha bela perjura,
Pera mais me confirmar
O que quer certificar,
Pelos seus olhos mo jura.
Como meu contentamento
Todo se rege por eles,
Imagina o pensamento
Que se faz agravo a eles
Não crer tão grão juramento.
*
Porém, como em casos tais
Ando já visto e corrente,
Sem outros certos sinais,
Quanto me ela jura mais,
Tanto mais cuido que mente.
Então, vendo-lhe ofender
Uns tais olhos como aqueles,
Deixo-me antes tudo crer,
Só pela não constranger
A jurar falso por eles.
***
(Luís Vaz de Camões)

Minha mãe



Quando a minha alma estende o olhar ansioso
por esse mundo a que inda não pertenço,
das vagas ondas desse mar imenso
destaca-se-me um vulto mais formoso.
*
É minha santa mãe, berço mimoso
donde na minha infância andei suspenso;
é minha santa mãe, que vejo, e penso
verei sempre, se Deus é piedoso.
*
Como línguas de fogo que se atraem,
avidamente os braços despedimos
um para o outro, mas os braços caem...
*
porque é então que olhamos e medimos
a imensa distância donde saem
os ais da saudade que sentimos!
***
(João de Deus)

Cama


Podia ser uma cama aberta no horizonte
e os teus cabelos num poente incendiado.
Podia ser o teu sexo num cume de monte,
e os teus seios despidos sobre este prado.
*
A mão que esconde mais do que oferece,
os olhos de presa dominando o caçador.
E os teus lábios que murmuram a prece
de quem só reza no instante do amor.
*
E se falasse dos teus olhos, dos teus braços
desse corpo em que me perco e te ganho,
não mais acabaria o que tem de acabar;
*
uma respiração de suspiros e de abraços
neste canto em que és tudo o que eu tenho,
nesta viagem em que não tem fundo o mar.
***
(Nuno Júdice)

Poema


vê como o verão
subitamente
se faz água no teu peito,
e a noite se faz barco,
e a minha mão marinheiro.
***
(Eugénio de Andrade)

Se eu fosse


Se eu fosse um descascador de canela
deitar-me-ia na tua cama
e deixaria o pó amarelo da casca
na tua almofada.
Os teus seios e os teus ombros cheirariam a canela
nunca mais poderias passar no mercado
sem a profissão dos meus dedos
flutuando por cima de ti. O cego tropeçaria
certo de quem se aproximava
mesmo que tomasses banho
na chuva das calhas, na monção.
Aqui no cimo da coxa
neste macio pasto
vizinho do teu cabelo
ou do sulco
que te divide as costas. Este tornozelo.
Serás conhecida entre os estranhos
como a mulher do descascador de canela.
Só a custo te podia ver
antes do casamento
nunca te toquei
- a tua mãe nariguda, os teus irmãos tão brutos.
Enterrei as minhas mãos
em açafrão, disfarcei-as com
alcatrão de tabaco
ajudei os apicultores a colher o mel…
Uma vez que estávamos a nadar
toquei-te na água
e os nossos corpos permaneceram livres,
podias segurar-me e ser cega de cheiro
Saltaste a margem e disseste
isto é como tu tocas as outras mulheres
a mulher do cortador de relva, a filha do queimador de limão
E procuraste nas tuas mãos
o perfume desaparecido
e soubeste
como é bom
ser a filha do queimador de lima
deixada sem marca
como se lhe tivessem falado no acto do amor
como se ferida sem o prazer de uma cicatriz
Roçaste o teu ventre nas minhas mãos
no ar seco e disseste
sou a mulher do descascador
de canela.
Cheira-me.
***
(Michael Ondaatje)

Olho a sua boca


Olho a sua boca.
Tanto que vem o punhal da luz
levar-me os olhos.
O carvão, a cinza dos
meus olhos.Os seus.
A sua boca,o sulco
onde me pergunta e eu
respondo. A morrer,
a olhar anavalhado
o seu brilho bravio.
Sons de sirenes, uivos,
estrondos, desabamentos,
ravinas donde rompe
o amor.
A sua boca.
***
(Joaquim Manuel Magalhães)